quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Binyavanga Wainaina: Culpe o Ocidente pela situação da África. Mas não seja muito específico.

A Chegada da edição de fevereiro da Revista Piauí trazia um pequeno perfil biográfico do jornalista e escritor queniano Binyavanga Wainaina.  No mês anterior Binyavanga havia feito seu outing numa coluna publicada no site HTTP://africasacountry.com e republicada, dois dias depois, no diário britânico The Guardian.

O texto da Piauí, assinado por Leandro Sarmatz, chamava atenção para a “poderosa conotação política”, que era o gesto de o escritor se declarar gay no momento em que “diversos países africanos – como Nigéria, Quênia e Camarões – endureceram ainda mais o tratamento dispensado a homossexuais, criando um clima de terror, desamparo e tristeza infinita.”

Em 37 dos 54 estados africanos a homossexualidade é crime.  Em países como a Mauritânia e o Sudão, a punição pode chegar a pena de morte. Na Nigéria, uma lei federal proíbe o casamento gay e criminaliza associações, sociedades e encontros de homossexuais com pena de até 14 anos de prisão.

Em Uganda - terra natal da mãe do escritor – um projeto proposto em 2009, intitulado Lei anti-homossexual – prevê 14 anos de prisão para uma primeira condenação e prisão perpétua em caso de reincidência. A mesma pena vale para o caso de um dos parceiros ser menor de 18 anos ou portador do vírus da AIDS. Causou revolta e polêmica a publicação - em 2010, pelo tablóide Rolling Stones  –  de uma lista com o nome e o endereço de “100 figuras homossexuais ugandesas” sob a legenda “Enforquem-nos”. 

Seguindo o texto da Piauí: a voz amplificada de um gay célebre e estimado nos círculos culturais tem ao menos o poder de fazer rodar pelo mundo o despautério africano.  

O gesto de Binyavanga pode ser lido como parte de um esforço maior para que o presidente de Uganda, Yoweri Museveni, não sancionasse a lei anti-homossexual.
                                  
O texto da Piauí, ironicamente entitulado Safari nas trevas, apresenta o escritor e sua trajetória:

Autor do elogiado One day i will write about this place [um dia vou escrever sobre esse lugar], que evoca seus anos de formação entre o Quênia, Uganda e África do Sul, Wainaina ganhou celebridade quando  How to write about áfrica [ como escrever sobre a áfrica] foi publicado na edição 92 da Granta (em 2005). No texto, o autor se apropria ironicamente dos discursos ocidentais sobre a África para elaborar um guia sobre como escrever sobre a África. O texto se tornou um viral. Ganhando uma continuação em 2010 (how to write about áfrica II:  the revenge     [como escrever sobre a áfrica II: a vingança]) publicada na revista Bidoun.

No parágrafo final, Leandro Smartz dá noticia da festa de aniversário do escritor, que completava 43 anos na semana de publicação do texto em que se declarava gay, e que, segundo a cobertura da imprensa africana, teria sido como um baile de debutante, ou coming-out party.

O que a matéria não conta, e nem tinha como saber, é que três semanas depois do outing de Binyavanga (dia 24 de fevereiro) o presidente de Uganda, Yoweri Museveni, sancionou a lei anti-homossexual.

Na última sexta feira (dia 1 de agosto) o Tribunal Constitucional de Uganda, depois de uma ampla mobilização, conseguiu anulá-la. 




Na postagem dessa semana os três textos de Binyavanga Wainaina citados na matéria em traduções de Lucas Matos, junto à vídeo performance de Como escrever sobre a África dirigida por Jesse Dylan e interpretada por Djimon Hounsu (Amistad; Diamante de sangue).


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Como escrever sobre a África (Binyavanga Wainaina)

Tradução: Lucas Matos.

Sempre use a palavra ‘África’ ou ‘Trevas’ ou ‘Safári’ no título. Subtítulos podem incluir ‘Zanzibar’, ‘Masai’, ‘Zulu’, ‘Zambezi’, ‘Congo’, ‘Nilo’, ‘Grande’, ‘Céu’, ‘Sombra’, ‘Tambor’, ‘Sol’ ou ‘Passado’. Também são úteis palavras como ‘Guerrilha’, ‘Atemporal’, ‘Primordial’ e ‘Tribal’. Perceba que ‘Pessoas’ quer dizer africanos que não são pretos, enquanto ‘Povo’ quer dizer africanos pretos.

Nunca apresente uma foto de um africano bem ajustado na capa do seu livro, ou dentro dele, a não ser que o africano tenha ganhado o prêmio Nobel. Uma AK-47, costelas proeminentes, seios nus: use isso. Se for necessário incluir um africano, assegure-se de que será alguém em trajes dos Masai, Zulus, ou Dogons.

No seu texto, trate a África como um país. É quente e empoeirado com campinas ondulantes, hordas imensas de animais e pessoas altas, magras, que estão passando fome. Ou então é quente e enevoado com pessoas pequeninas que comem primatas. Não se atole em descrições precisas. A África é grande: cinquenta e quatro países, 900 milhões de habitantes que estão muito ocupados passando fome, morrendo, guerreando e emigrando, para ler o seu livro. O continente está cheio de desertos, selvas, chapadas, savanas e muitas outras coisas, mas o seu leitor não liga para nada disso, então mantenha suas descrições romanceadas, e evocativas, e gerais.

Certifique-se de que mostrará como africanos possuem música e ritmo arraigados na alma, e comem coisas que nenhum outro humano come. Não mencione arroz, nem bife, nem trigo; miolo de macaco é o prato africano predileto, junto com bode, cobra, vermes e besouros, e todo tipo de carne de caça. Certifique-se de mostrar que você é capaz de comer tal comida sem torcer o nariz e descreva como você aprendeu a apreciá-la – porque você se importa.

Assuntos tabus: cenas domésticas cotidianas, amor entre africanos (a não ser que tenha morte no meio), referências a escritores ou intelectuais africanos, menção a crianças na escola que não sofrem por causa de bouba, ebola, ou laceração da genitália feminina.

Ao longo do livro, adote uma voz sussurrada, em cumplicidade com o leitor, e um tom triste de eu tinha tantas expectativas. Deixe estabelecido bem cedo que sua atitude liberal é impecável, e mencione perto do início o quanto você ama a África, como você se apaixonou pelo lugar e não pode viver sem ela. A África é o único continente que você pode amar – tire vantagem disso. Se você é homem, se aventure pelas úmidas florestas virgens. Se é mulher, trate a África como um homem que usa uma jaqueta no estilo safári e some no horizonte ao pôr-do-sol. Há África para que a gente se compadeça, adore ou domine. Qualquer ângulo que escolher, certifique-se de deixar a forte impressão de que sem sua intervenção e seu importante livro, a África está condenada.

Os personagens africanos podem incluir guerreiros nus, empregados leais, adivinhadores e videntes, antigos sábios vivendo num esplendor ermitão. Ou políticos corruptos, inaptos guias de viagem polígamos, e prostitutas com quem você se deitou. O Empregado Leal sempre se comporta como uma criança de sete anos e precisa de uma mão firme; ele tem medo de cobras, leva jeito com as crianças e está sempre te envolvendo em complexos dramas familiares. O Antigo Sábio sempre vem de uma tribo nobre (não as tribos papa-grana como os Kikuyu, os Igbos, ou os Xonas). Ele tem olhos remelentos e é próximo da Terra. O Africano Moderno é um gordo que rouba e trabalha no escritório de vistos, recusando-se a dar autorização para Ocidentais qualificados que se importam realmente com a África. Ele é um inimigo do desenvolvimento, sempre usando seu cargo público para dificultar que expatriados pragmáticos e de bom coração implementem ONGs ou Áreas de Conservação Urbana. Ou ele é um intelectual formado em Oxford que se transformou num político assassino em série com terno da Savile Row. Ele é um canibal que gosta de champanhe Cristal, e sua mãe é uma rica médica-curandeira que é quem manda mesmo no país.

Entre os seus personagens você deve incluir sempre a Africana Faminta, que anda por campos de refugiados quase nua, e espera pela benevolência do Ocidente. Há moscas sobre as pálpebras de seus filhos, e eles têm barriga d’água; os seios dela são magros e vazios. Deve parecer completamente desesperada. Não pode ter um passado, nem história; tais diversões arruínam o momento dramático. Gemidos são bons. Ela nunca deve falar qualquer coisa sobre si mesma no diálogo, exceto para dizer de seu sofrimento (indizível). Também certifique-se de incluir uma mulher calorosa e maternal que tenha uma risada contagiante e que se preocupe com o seu bem estar. Chame-a simplesmente de Mamã. Seus filhos são todos delinquentes. Esses personagens devem pairar ao redor de seu herói, fazendo ele parecer bom. Seus herói pode ensiná-los, dar comida para eles, dar banho neles; ele carrega muitos bebês e já viu a morte de perto. Seu herói é você (se for reportagem), ou uma bela, trágica celebridade/aristocrata internacional que agora se importa com animais (se ficção).

Personagens maus do Ocidente podem ser filhos de ministros do partido Tory, africâneres, empregados do Banco Mundial. Quando falar de exploração estrangeira da África, mencione negociantes chineses e indianos. Culpe o Ocidente pela situação da África. Mas não seja muito específico.

Pinceladas abrangentes do começo ao fim são boas. Evite apresentar personagens africanos rindo, ou se esforçando para dar educação aos filhos, ou simplesmente se virando em circunstâncias mundanas. Faça com que eles tragam à luz alguma coisa sobre a Europa ou a América, na África. Personagens africanos devem ser coloridos, exóticos, extraordinários – mas vazios por dentro, sem diálogos, sem conflitos ou desfechos em suas tramas, nenhuma profundeza ou peculiaridade que confunda o caso.

Descreva, com detalhes, seios nus (jovens, velhos, conservados, recém-abusados, grandes, pequenos) ou genitálias mutiladas, ou genitálias inchadas. Ou qualquer tipo de genitália. E corpos mortos. Ou melhor: corpos mortos nus. E especialmente corpos mortos nus apodrecendo. Lembre-se, qualquer obra que você produzir na qual as pessoas apareçam imundas e miseráveis será considerada ‘a verdadeira África’, e você quer isso na sua jaqueta empoeirada. Não se enoje quanto a isso: você está tentando ajudá-los a conseguir o socorro do Ocidente. O maior tabu ao escrever sobre a África é descrever ou mostrar brancos mortos ou em sofrimento.

Por outro lado, animais devem ser tratados como personagens complexos, bem desenvolvidos. Eles falam (ou resmungam enquanto agitam com orgulho suas jubas) e têm nomes, ambições e desejos. Também apresentam valores familiares: viu como os leões ensinam seus filhos? Elefantes são ternos, e são boas feministas, ou dignos patriarcas. Idem, para os gorilas. Nunca, jamais diga algo negativo sobre elefantes ou gorilas. Elefantes podem atacar propriedades dos humanos, destruir suas colheitas e até matá-los. Sempre fique do lado do elefante. Grandes felinos falam como estudantes de escola pública. Hienas você pode ofender, e apresentam sotaques vagamente próximos aos do Oriente Médio. Quaisquer africanos pequeninos que vivam na selva ou no deserto podem ser retratados com bom humor (a não ser que eles estejam em conflito com um elefante, ou um chipanzé, ou um gorila, nesse caso eles são a encarnação do mal).

Depois de celebridades ativistas e humanitários, preservadores ambientais são as pessoas mais importantes da África. Não ofenda nenhum deles. Você precisa que eles te convidem para o seu parque/rancho ou ‘área de preservação’ de 30.000 acres, e é o único jeito de conseguir entrevistar a celebridade ativista. Várias vezes uma capa com um preservador ambiental com aparência de herói faz milagres para as vendas. Qualquer branco, bronzeado, e com trajes cáquis que já teve um antílope de estimação ou uma fazenda é um preservador ambiental, alguém conservando a rica herança da África. Quando fizer uma entrevista com ele ou ela, não pergunte por quanto tem de financiamento; não pergunte quanto ele ganha com a caça. Nunca pergunte quanto ele paga aos seus empregados.

Os leitores vão ficar decepcionados se você não mencionar a luz na África. E o pôr-do-sol, o pôr-do-sol africano é um must. É sempre amplo e vermelho. Há sempre um céu imenso. Grandes extensões vazias são de importância capital – a África é a Terra dos Extensos Espaços Vazios. Quando escrever sobre as condições da fauna e da flora, certifique-se de mencionar que a África é superpopulosa. Quando seu personagem principal estiver no deserto ou na selva vivendo com povos indígenas (qualquer um pequenino), tudo bem mencionar que a África sofreu severa depopulação por causa da Aids e da Guerra (use maiúsculas).
                                                                                       
Você também vai precisar de uma boite chamada Tropicana, onde mercenários, malvados novos ricos africanos, e prostitutas, e guerrilheiros, e expatriados possam curtir a noite.

Sempre encerre seu livro com Nelson Mandela dizendo algo sobre arco-íris ou renascenças [renaissances]. Afinal, você se importa.


Djimon Hounsou lê Como escrever sobre a África

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Como escrever sobre a África II: A Vingança (Binyavanga Wainaina)

Tradução: Lucas Matos.

Romancistas, trabalhadores de ONGs, roqueiros, preservadores ambientais, estudantes e escritores de livros de viagem rastreiam meu e-mail, pedindo: Você pode por favor comentar meu dever de casa/panfleto/conto/pedido de financiamento/haicai/filho adotivo/retrato de genuína sogra africana? Todos que fazem isso são brancos. Ninguém da China pede, ninguém de Cuba, nenhum negro, pretinho, pardo, bege, chocolate, capuccino, mulacto. Escrevi Como escrever sobre a África num jato, um desabafo para ventilar o ar; não era para ver a luz do dia. Agora as pessoas me escrevem para pedir minha permissão para escrever sobre a África. Elas querem que eu diga o que acho, como elas se saíram. Seja franco, dizem, seja sincero. Diga o que pensa. Cheguei a pensar em investir num selo de qualidade.

Imaginei que ficaria de pé sobre as fronteiras virtuais da África, um minuteman preto com um carimbo, avaliando pedidos – em que SIM quer dizer “Siga adiante, pague cem dólares”, e NÃO quer dizer “Prenda e deporte”. É quase sexual. Chegam rastejando dos lugares mais incomuns, e pedem para ser chicoteados. Eu sou mau, Senhor Binya, bate em mim. Ah! Mais forte. Ai! Eles parecem um bocado desapontados quando não bato. De vez em quando, faço, e a sensação é boa e ruim, como muito wasabi. Bono mandou um livro de poemas. Alguém escreveu um ensaio “Como escrever sobre o Afeganistão”. Troquei apertos de mãos não com um, mas com dois presidentes europeus que leram meu texto e balançaram as cabeças: que mau, muito mau. Dividi um cigarro em Frankfurt com os guarda-costas de Yar Adua, o presidente da Nigéria, que me disseram que não gostam das academias de Abuja porque as mulheres dos grandões dão em cima deles e causam todo tipo de problemas. Eles preferem as academias nos hotéis da Europa. Mas os cigarros alemães não eram tão bons quanto os nigerianos. Os vegetais alemães não eram tão bons quanto os nigerianos. A cerveja alemã, quando você olhava de verdade, fundo na espuma, não era nem tão leve nem tão dourada quando a nigeriana. No final das contas, disseram, apagando os cigarros e cheirando a colônia francesa, a Nigéria é o melhor dos lugares. Você já esteve em Abuja?, perguntaram. Não, disse. Abuja é ultramoderno, disseram, e todos nós olhamos para os prédios velhos, molhados e cinzas na nossa frente.
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Um dia, um cara que conheço me ligou com alguma agitação. Ele tinha acabado de ler Como escrever sobre a África e queria saber por que eu escreveria sobre ele do modo como tinha feito. Eu tinha dito “Depois de celebridades ativistas e humanitários, preservadores ambientais são as pessoas mais importantes da África. Não ofenda nenhum deles”. Ele ficou ofendido. Não havia mencionado o nome de ninguém, mas ele se sentiu pessoalmente afrontado. Sim, ele é um preservador ambiental, e sim, ele hospedou uma celebridade ou outra – mas ele não lucrava com caça, e pagava muito bem seus trabalhadores. Claro, eu disse. Você passou dos limites, ele disse. Nunca entendi de verdade o que isso significa, onde estão colocados esses limites, e por que uma expressão tão morna promete o Apocalipse interpessoal.
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Como escrever sobre a África surgiu de um e-mail. Num acesso de raiva, talvez com baixa tacha de açúcar no sangue – uma condição familiar – gastei algumas horas de uma noite no meu flat de estudante de pós em Norwich, Inglaterra, escrevendo ao editor da Granta. Era uma resposta à edição África, que era povoada por cada um dos bichos papões literários que qualquer africano conhece desde sempre, uma espécie de “Os Melhores Hits do Coração das Foditrevas”. Não foi a questão sombria que me pegou, foi a estupidez. Não havia nada novo, nenhum insight, mas muitas “reportagens” – Oh, céus, uau, olha, caramba, uh – como se a África e os africanos não fossem parte da conversa, não estivessem, de fato, morando na Inglaterra do outro lado na rua do escritório da Granta. Não, nós estávamos “lá”, onde os bravos homens de cáqui podiam ir e testemunhar. Foda-se isso. Daí eu escrevi um longo – verdadeiramente longo – e-mail desconexo para o editor.

Para minha surpresa, a Granta escreveu de volta imediatamente. O editor, Ian Jack, desaprovava a edição África – aquilo foi antes do tempo dele. Um ano e pouco depois, um outro editor da Granta ligou. Estavam fazendo uma nova edição África, e eles queriam a minha perspectiva. Claro, claro, eu disse. Então esqueci. E me lembrei, me senti culpado, senti o peso de um continente nas minhas costas. Estava com bloqueio sobre bloqueio. Bebi uma Tusker. Afinal, escrevi algo sobre Bob Geldof. Uma merda, disse o editor – não com essas palavras, mas foi o que ele quis dizer, e ele estava certo. Então voltei ao trabalho. O prazo chegou. O prazo se foi. Estava ocupado trabalhando num conto, trabalhando no meu romance. Uma Tusker gelada. O novo número da Kwani. A praia, em Lamu. O editor ligou com uma ideia – por que a gente não publica seu longo e louco e-mail? Um excerto, quer dizer. Claro, disse, distraidamente. Ele me mandou um rascunho. Ufa, pensei, distraidamente. Corta, cola, corta, cola. Poucos floreios aqui e ali. Enviar.

Levou uma hora.

A edição saiu, meu artigo apareceu online. Tornou-se a história mais compartilhada na história da Granta. Comecei a ouvir por amigos, por estranhos; comecei a receber minhas próprias palavras encaminhadas para mim com um título animador, como algo em que eu poderia me interessar, como se eu não o tivesse escrito. Virei viral, virei spam. Comecei a receber convites – para conferências, palestras, conselhos nacionais. Comecei a receber cartas. Agora sou ‘aquele cara’, a consciência da África: eu vou te advertir e te dar absolvição.

Se fosse esperto, teria esperado uns anos e transformado num app de iPhone: uma pequena história satírica sobre como escrever sobre a África todo dia, interativa e adaptável, por noventa e nove centavos. Foda-se a Granta... obrigado, Granta.

Estava ocupado trabalhando no meu romance. Daí estava bebendo vodka sabor chili com o editor desta revista, e antes que me desse conta concordei em escrever uma sequência para Como escrever sobre a África. Tudo bem, disse, distraidamente. Bem, aqui estamos.


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Sou homossexual, mãe (Binyavanga Wainaina)

Tradução: Lucas Matos.

11 de Julho de 2000.

Esta não é a versão correta dos fatos.

Ei, mãe. Estava descansando minha cabeça em seu ombro, aquela última tarde antes de morrer. Ela estava deitada na cama do hospital. Kenyatta. Tratamento intensivo. Estado crítico. Lá. Porque dessa vez não estarei longe na África do Sul, fodendo tudo no meu jeito caótico. Vou chegar na hora e estar lá antes de ela morrer. Meu coração chega na hora. Estou segurando a mão de minha mãe morrendo: levanto sua mão. Sua mão deve estar inchada pela diabete. Seus órgãos estão falhando. Ei, mãe. Oooh. Minha mente soluça. Meu coração! Estou sussurrando em seus ouvidos. Ela está desperta, escutando, amor suave calmo, minha cabeça ao alcance de seu hálito. Ela é tão grande – minha mãe, neste mundo, tão próxima do outro mundo, cada respiração lenta, mas estável, como deve ser. Inspira. Ela pode suportar tudo. Vou sussurrar, mais alto, na minha ideia-sopro. Para ela. Ela escuta, mesmo que já não escute. Ela consegue?

Mãe. Vou dizer. Manhê? Vou dizer. Soa tão fácil, um sopro de voz, um barulho vindo da minha boca, e ela expira. Meu coração engasga cortante, e agora minha cabeça grita, cortante, tão tão sentida, tão tão furiosa.

“Nunca te abri meu coração, mãe. Você nunca pediu”.

Só na minha cabeça digo. Isso. Não a minha boca. Mas com certeza o salto na minha respiração e no meu peito, aqui ao lado dela, foi percebido? Ela está mais próxima de mim?

Ninguém, ninguém nunca na minha vida escutou isso. Nunca, mãe. Não confio em você, mãe. E. Eu. Puxo o ar com força, prendo-o embolado ao redor do umbigo, deixo-o sair devagar e constante, limpo e sem tropeços na minha boca, alto e claro, por sobre o ombro, até chegar nos seus ouvidos.

“Sou homossexual, mãe”.

Julho, 2000.

Esta é a versão correta dos fatos.

Estou vivendo na África do Sul, sem ver minha mãe há cinco anos, apesar de ela estar doente, porque estou com medo e vergonha, e porque em breve completo trinta anos e vou ficar sem visto para voltar se sair daqui. Estou transtornando tudo para ajeitar minha vida e poder vê-la. Mas ela está em Nakuru, em colapso, e vão levar seus rins ao Hospital Kenyatta em Naiorobi, onde há um aparelho de diálise e uma tempestade tropical de especialistas esperando por ela.

Parentes vão correr para vê-la, os órgãos vão falhar, e os aparelhos vão entrar em ação. Estou com pressa, ajeitando tudo para sair da África do Sul. Ainda falta dois dias para conseguir deixar o país, pegar um voo internacional, quando, na manhã do dia 11 de julho de 2000, meu tio liga perguntando se estou sentado.

“Ela se foi, Ken”.

Quero ligar para titia Grace na reunião de família em nanossegundos para dar um jeito urgente de chorar no Papai, mas eles dizem que ele está chorando, relampejando e trovejando em seu carro 505 nos contornos de Nairobi porque sua mulher morreu e ninguém consegue encontrá-lo há horas. Três dias atrás, ele me disse que era tarde demais para ir vê-la. Me disse para não correr o risco de perder a autorização para voltar à África do Sul indo para seu funeral. Eu não devia ficar viajando despreocupadamente com esse meu jeito de artista, sem documentos. Kenneth! Ele me repreende no telefone. Não posso arriscar ser deportado, diz, e perder tudo. Mas é a minha mãe.

Tenho vinte e nove. É 11 de julho de 2000. Eu, Byniavanga Wainaina, sendo bem honesto, juro que sei que sou homossexual desde que tinha cinco anos. Nunca toquei um homem sexualmente. Já dormi com três mulheres na minha vida. Uma delas, deu tudo certo. Apenas uma vez, e com ela. Mas no dia seguinte, não pude.

Vai levar cinco anos, após a morte da minha mãe, até que eu encontre um homem que me faça uma massagem e um pouco de sexo rápido, pago. Em Earls Court, Londres. E estarei livre, vou contar a meu melhor amigo que vai me surpreender, me compreendendo sem compreender. Vou contar-lhe o que fiz, mas não que eu sou gay. Não consigo dizer a palavra gay até ter trinta e nove, quatro anos depois daquele breve encontro com massagem. Hoje é 18 de janeiro de 2013 e tenho quarenta e três.

De qualquer modo. Não será uma tempestade de diabetes que vai matar a mãe no Centro de Terapia Intensiva do Hospital Keniatta, antes de eu dar os passos para pegar um avião e ir ficar ao seu lado.

Alguém.

A enfermeira?

Vai deixar uma pequena janela aberta na noite antes de ela morrer, no frio de julho do Hospital Kenyatta.

É meu aniversário hoje. 18 de janeiro de 2013. 2 anos atrás, a onze de julho de 2011, meu pai teve um derrame intenso que causou morte cerebral em minutos. Exatamente onze anos depois do dia que minha mãe morreu. Seu coração ainda bateu por quatro dias, mas ele não tinha como saber.

Tenho cinco anos.

Ele está ali, de macacão, embaraçado, seu peito é uma trilha de estrada de ferro com marcas de suor, e pequenas contas de pelos. Tudo nele é lento-suave. Marcas marrons num dente quebrado, um longo sorriso sem fim. Bom para mim o modo lento como se move, porque transpareço ao movimento das pessoas, e posso tropeçar tão facilmente e cair em resmungos e temer junto a estúpidos. Um sorriso longo e fácil, ele me levanta no ar e balança. Ele cheira a diesel, e o mundo em que os outros se movem desapareceu. Estou longe de tudo e de todos pela primeira vez na minha vida, é glorioso, e logo é um túnel de medo. Nada nele trava, como um trator, ele sobe firme e forte qualquer montanha. Se ele for embora agora, comigo, vou com ele para sempre. Sei que se ele me devolver ao chão, minhas pernas não vão poder se mexer. Estou tão envergonhado, me interrompo o abraço. Saio fora de perto dele, e o evito para sempre. Por vinte tantos anos, continuo abraçando sem jeito os homens.

A sensação vai voltar. Mais forte, mais firme. Com sete anos talvez. Certa vez com outro lento, fácil jogador de golfe no Clube de Golfe de Naruku, e estou tremendo porque ele apertou minha mão. Então estou chorando sozinho no banheiro porque o retorno dessa sensação de repente me fez isolado e solitário. A sensação não é sexual. Ela vem e me acerta em cheio. É esmagadora. Ela quer fazer um lar. Vem a cada par de meses, como um surto de malária e me deixa abalado por dias, confuso por meses. Não faço nada quanto a isso.

Tenho cinco anos quando me fecho numa felicidade turva que não pede nada a ninguém. Aéreo. Doce. Estou grato por tanto amor. Dou mais do que recebo, frequentemente. Posso ser egoísta. Me masturbo muito, sem nunca permitir me rachar e deixar crescer o coração. Não toco homens. Leio livros. Amo tanto meu pai, meu coração está aprendendo a se dilatar.

Sou homossexual.

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