quinta-feira, 31 de julho de 2014

Manuel de Freitas: “Muito raramente, duas vozes se encontram tão perto do silêncio”.

A poesia de Manuel de Freitas aparece em vozes que se confundem com o silêncio. Com os sons que quase não se escutam nas barulheiras das tabernas. Uma espécie de exercício do som com a morte, o som contra a morte. Seja no livro que dedica à cantora de um único disco, Marilyn Moore, seja nas suas duas Jukeboxes seja nos poemas que reúne como notas finais de livros, sempre endereçados a alguém, tem-se a invariável impressão de estar diante de cacos sonoros. Não cacofonias, são pedaços de sons quebrados. Aquilo que se recolhe depois de um show, os restos de cada canção.

O poeta português, nascido em 1972, publicou seu primeiro livro em 2000, Todos contentes e eu também, e até agora no Brasil teve uma edição da Oficina Raquel, lançada em 2007, o volume Poemas de Manuel de Freitas. Hoje, vive em Lisboa.

Publicamos, junto a seus poemas, uma das imagens de Adriana Molder que acompanhou a edição numerada de Marilyn Moore, publicado pela Assírio Alvim em 2011. E um vídeo para que se ouça a voz que canta, junto às palavras e sons que seguem a sua extinção.

***


De Marilyn Moore (Assírio Alvim, 2011).


Redhead, da série M, 2011, tinta da china e acrílico sobre papel esquisso, 150x100cm. (Adriana Molder)


OKLAHOMA, 1931

Não foi um ano fácil, na terra
de homens vermelhos e piedosos
em que nasceu, quase por engano, Marilyn.

Acerca dela se poderia apenas
acrescentar que morreu em 1992,
numa espécie de fria e simétrica discrição.

Moody, porém, faz-nos repensar a história,
obriga-nos a escutar o vento.

*

I’M JUST A LUCY SO AND SO

Se enriqueceu, o que é duvidoso,
terá sido de outra maneira,
depois de 1957 – o mesmo ano
em que Billie, sentada, deixava
que filmassem a sua morte.

Ainda assim, Billie gostou de Moody,
percebeu a diferença entre um eco
e uma cópia, a força insuportável do acaso.

Não há imitação em arte, não há caminhos.
Só por milagre, e muito raramente,
duas vozes se encontram tão perto do silêncio.

*

ILL WIND

Se eu fosse Deus – a mais indigna
das profissões –, convidava
Tom Waits para completar este dueto.

Pois o vento, já se sabe, empurra-nos
sempre para a morte.

*

IF LOVE IS TROUBLE

A pergunta nem se coloca, embora
a intensidade do diálogo
supere provisoriamente o abismo.

Parece que a canção se veio a tornar
demasiado real, acendendo
em cada veia aquele sombrio remate:

“Cause if love is trouble
That’s what I’m looking for”.

*


IF YOU IS OR IS YOU AIN’T MY BABY

Encontraram-se no Charlie’s,
por volta de uma da manhã.
Billie largara temporariamente as drogas
e pediu vários martinis, antes de passar ao gin.

Marilyn, de início bastante nervosa,
acabou por lhe confessar que as coisas
não iam nada bem com Al; duvidava
que viessem a gravar juntos outro disco.

Disseram mal dos homens, das mulheres,
do mundo, enquanto alguns olhares censuravam
em silêncio a única mesa do Charlie’s
onde um fato completo não zelava pela moral.

– Essa grande moral americana, de que se riram,
em branco e negro fundido, até que o bar fechasse.
Só não sabiam que a morte depressa
viria selar aquela estranha cumplicidade.

*

BORN TO BLOW THE BLUES

Não se conhecem pormenores, mas
são inequívocas a data de separação,
a partida do “young man with a horn”,
a solidão – nunca mais ouvida – de Marilyn.

A eternidade pode às vezes durar um ano.
E ferir-nos, num grito calado, a vida inteira.

*

LOVER COME BACK TO ME

Na cama do hotel, em Tulsa, limitava-se
a trautear a canção que prometera
dar o seu melhor, num esboço de epitáfio.

Percebia agora que há temas
que cantamos melhor deitados,
longe de qualquer palco.
Bebeu um copo de Woodford,
para trazer um pouco mais de sombra à voz.

Não podia adivinhar, em Tulsa, que
a volúpia em breve se tornaria uma súplica,
o género de coisas que só dizemos a ninguém.

*

YOU’RE DRIVING ME CRAZY

Perder Al tornara-se uma evidência.
Talvez lhe tenha custado mais ver que,
com ele, desapareciam amigos e contratos.
Não desejara assim tão breve a sua passagem pelo mundo.

Billie, entre sucessivos internamentos,
não lhe podia valer, e o orgulho
impedia-a de mendigar junto das orquestras
de Chicago, Kansas City ou New Orleans.

A sua voz pedia quase um murmúrio,
era incompatível com estrépito em voga
e demasiado frágil para atrair os boppers.

Segurava sem paixão um colar de pérolas desfeito,
a certeza de já só ter memórias e nem sequer felizes.

*

TRAV’LIN’ ALL ALONE

Entre o presságio e o fascínio,
muito lhe deve ter doído
aquele solo inicial de saxofone.

Depois, é a sua voz que
vai ficando sozinha,
cada vez mais sozinha.

Até por fim se confundir
com a noite.

*

I CRIED FOR YOU
(NOW IT’S YOUR TURN TO CRY OVER ME)

Tanto quanto se sabe,
o parêntesis nunca aconteceu.

Pode-se envelhecer, sem remédio,
antes mesmo dos trinta anos.

*

LEAVIN’ TOWN

Ao fazer a mala reparou que pouco
levava daquela lúgubre cidade.
Alguns vestidos, as primeiras frésias
que tivera de presente, agora murchas,
uma dezena de exemplares de Moody
que lhe serviam para amortalhar o resto.

Se é que alguma coisa restava, pensou
junto ao aparador, enquanto no espelho
se perdia o fogo ruivo dos cabelos,
sublinhado pelo negrume do olhar.
Ao ajoelhar-se sobre a mala, escreveu,
em vez do seu nome, “Goodbye to love”.

Era também a sua única morada,
até que a morte ou a chuva a apagassem.

*

TROUBLE IS A MAN

Nova Iorque, 1986: sente-se atraída
pela capa de um disco chamado Evol,
onde uma das canções se chama Marilyn Moore.
Não é fácil, para uma morta, ressuscitar
tão inesperadamente. Há, portanto,
quem se lembre do silêncio em tempo de ruído.

Em casa, o disco causa-lhe primeiro horror,
depois uma breve simpatia, e acaba
por reconhecer que a letra é o mais fiel retrato
que alguma vez pôde ter de si própria: “frustrated desire
turns you away/ and turns you insane / over and over”.

Marilyn Moore sabe, finalmente, que já pode morrer.

*

I GOT RHYTHM

Quando eu te conheci, Al, pensei imediatamente
que viríamos a ser uma dessas duplas
tão perfeitas e viscerais que só acontecem de tempos
a tempos, mas ratificam, por breves instantes, a eternidade.
Como Billie e Lester, Duke e Hodges, Pops
e Ella ou Bill Evans com Tony Bennett.

O tempo, porém, foi-nos infiel – e da eternidade
nada quero nem posso dizer. Prefiro
lembrar aqueles pequenos-almoços,
antes de seguirmos para o estúdio,
quando tudo nos fazia acreditar que tu e eu
bastávamos para fazer o melhor disco de sempre.

Dura tão pouco, sempre. Cansaste-te do meu corpo,
talvez da minha voz, das únicas verdades
que tinha para te dar. O mundo, esse, não me interessa.

Antes ou depois da morte, continuas a ser
“My young man with a horn”.
E isso, Al, ninguém poderá calar.

***

De Jukebox 1 (In: Jukebox 1 e 2, Teatro de Vila Real, 2009).

1969, ANÍBAL TROILO

“Siempre, siempre Pichuco fue el peor enemigo de Aníbal Troilo”
A.T.

Chamo-me Aníbal Troilo
e a cocaína não me tornou
menos Pichuco. A tristeza
ficou, fica sempre. Mas de que
é que estávamos à espera?

Já o Polaco me dissera que
a morte não é uma questão de tempo
ou de vontade. Preferi não acreditar,
vestir uma vez mais de seda
o pânico de ter um nome.

Sinto-me agora ultrapassado,
expulso a desoras do meu bairro.
Este rapaz vai dar o que falar,
o Astor. Mas eu sentia as lâminas.

Sempre que tocava, as lâminas
– brilhando num pulso gasto,
nessa noite em que fingi cantar
“las estrellas de la esquina
de la casa de mi vieja”.

*

1979, LEONARD COHEN

Era bem claro, nessa noite,
o quanto a sua música
se afastava de “other forms
of boredom advertised as poetry”,
denúncia que se mantém válida.

Não serão bússolas duradouras
– tudo, enfim, falece –,
mas são palavras que nos protegem
da avalanche dos dias e dos meses,
destas poucas horas a que chamamos nossas.

Uma maneira de voltar a morrer?
Talvez,
quando até nas cinzas encontrarmos lume.

*

1982, AMÁLIA
para o João Ferro

Dizem que chegou indisposta,
cansada de esperar a morte,
ao Harry’s Bar
(mas eu não estava lá).

O Joãozinho pediu-lhe calma,
deu-lhe de beber à inapagável dor
e sentou-se ao seu lado,
no último sofá de Lisboa inteira.

Foi então (repito: eu não estava
lá) que Dona Amália cantou,
esquecendo o jardim parado,
casas mortas já sem cores.

Por exemplo a da Mariquinhas:
túmulo de pureza, ou surda festa de enganos.
O Joãozinho, diz-se, pagou-lhe
o táxi, levou-a a um quarto vazio.

Tudo o que podemos esperar.

*

1988, CHET BAKER

Prometeu que tocaria My
funny valentine como nunca
o fizera. E foi, também na voz,
verdade (a verdade é sempre
uma coisa muito triste;
faltavam-lhe duas semanas para morrer).

Comprei o disco quase vinte anos
depois, e só por difícil acaso
o fiz naquela cidade, com a
mesma ou nenhuma vontade de morrer,
agora que volta a dizer “Stay
little valentine” e a chuva torna
as bicicletas uma metáfora evitável,
contrária à ferrugem do que sinto.

Sim, é isso: ninguém nos espera
– e nem todos sabemos voar, sofrer,
cantar assim o desconforto.
Nada deveria ser tão triste,
até porque nada deveria ser.

Mas não me roubem, por favor, esta canção.

*

1988, NICK CAVE & THE BAD SEEDS
Para o Lex
O concerto, embora excelente,
não foi o melhor da noite.
Preferi, a desoras, aquela
ida à Jukebox, onde ouvimos
Birthday Party e levámos (God
save the punks) muitíssimos pontapés.

Fazia parte desses anos
uma certa violência
cuja ternura se perdeu.
Como se perdem amigos,
lugares, súbitas canções.
Penso às vezes que mais valia
ter-te deixado ali, no chão do bar,
poupando-te ao massacre futuro.

Mas é assim, a juventude. Demasiado
impulsiva, excessivamente fugaz.
E faltava ainda, para qualquer de nós,
a pior sova, aquela que nem rosto tem.

*

1988, LOU REED

Foi tão estranho. O barulho
do nada sobrepunha-se
nas mais diversas línguas
àquela frágil tentativa de concerto.

Enquanto nós, trio deveras
implausível, comprávamos
vinho mau e sandes de chouriço.
Não era bem o apogeu de Lisboa;
seria antes o princípio da morte,
indiferente aos fogos de artifício
que haveriam de selar o desencontro.

Preferíamos, sem dúvida,
uns restos de magia,
uma desculpa qualquer para estarmos
efectivamente ali, depois de poluídos
– e só mais tarde rasgados –
os lençóis que nos cobriram.
(That’s the story of my life).

O Tejo, talvez por vossa causa,
nunca me pareceu tão triste.

***

De Jukebox 2 (In: Jukebox 1 e 2, Teatro de Vila Real, 2009).

2001, NICK CAVE & THE BAD SEEDS

Agora que Nick Cave já passou
dos quarenta (e a nós, Rui,
pouco nos falta), nem vale a pena
reparar na dança irrequieta do violino
ou dos actorzinhos de merda,
que vieram substituir os punks,
os skins, outras modas igualmente tristes.

Vinte anos depois – como tu gostas
de sublinhar –, não sabemos já o que fazer
à morte, a este inútil sobejo de vida que
deixámos de mostrar aos porteiros da noite

ou do inferno, coisas que podemos enfim
sorrir. Mas as lágrimas, de
há vinte anos, talvez fossem preferíveis.

*

2007, DALAI LAMA

Não comprei bilhete.

*

2008, MEREDITH MONK

Por estes dias sobre a terra
em que pudemos ouvir
a voz do vento,

a alegria decepada
ou reconstruída
em cada gesto,

je vous salue, Meredith.

*

2008, PINA BAUSCH

Müller,
Café Müller.

A morte sabe onde fica.

*

2008, TOM WAITS

Make it rain, disse ele.

E as estrelas de Paris obedeceram.

*

2009, PINA BAUSCH

“As eleições de domingo no Benfica
estão comprometidas; morreu
Pina Bausch, a coreógrafa alemã”. – foi assim,
de rajada, numa frase única a colar-se
ao vidro do táxi, que fiquei a saber de sua morte.

E tive pena, recordei enquanto não pedia troco
a tristeza feliz de a ver dançar Café Müller


Mas já não tenho poemas.
Nem mesmo para si, Pina Bausch.

***

De Cólofon (Farenheit 451, 2012).

OS POETAS
para o Ricardo Álvaro

Fevereiro de 2011: fiquei a saber,
por uma revista de merda, que
“os poetas não são tipos normais”
(vinha na capa da tal revista).

É um bocadinho discutível;
os poetas fodem, cagam,
gostam ou não gostam
de francesinhas e marujos.
Têm, como toda a gente, de vigiar
o colesterol e de pagar os impostos.

Porém, e antes mesmo de haver verbo,
há poetas e puetas. Há-os
gestores, contentinhos, polivalentes
– assim como os há revoltados,
insubmissos, crus e sem saída.

Uns acreditam nas palavras,
outros calam-se. Uns ministros,
outros deputados, mas capazes
(quase todos) de prefaciar mendigos
que olharam de frente o sol.

Os poetas morrem – e isso,
à falta de melhor, torna-os bastante normais.

*

FORTE DE SÃO MIGUEL
in memoriam A.F.

Ainda não enlouqueci e julgo-me até
capaz de reconhecer a beleza, quando a vejo.
Esta noite, por exemplo, era de prata,
sonora, o mar que se erguia na varanda do hotel.
Acordei-te; és agora a única testemunha
deste poema – e da minha vida.

Antes, logo de manhã, coube-nos lançar
ao mar as cinzas do meu pai.
Não foi fácil, tecnicamente falando.
A tampa de metal teimava em não abrir,
tivemos de recorrer a uma ponta de corrimão
das escadas velhas do Forte. E assim,
sem preparo nem rigor, há-de chegar ao oceano
o que sobrou, fisicamente, do meu pai.

Custou-me lavar as mãos, sujas
– pela última vez – da carne que me gerou.
A alma, se existe, não a sei lavar, embora
as lulas estufadas e o vinho branco
voltassem a tornar recomendável a Casa Pires.

Adeus, pai. Acho que foi mesmo
a única vez que me sujaste as mãos.

***

sexta-feira, 25 de julho de 2014

Leonardo Davino: o pacto entre poeta e sereia, pequenos mistérios do canto.



Leonardo Davino tem construído um caminho de reflexões consistentes sobre o estatuto da canção enquanto objeto sonoro/poético e sobre a experiência da escuta no percurso afetivo, estético, ético dos falantes-ouvintes brasileiros. Talvez caiba apontar, ainda que de modo talvez muito resumido, a pequena mudança de sua pesquisa que antes, ao abordar a musa híbrida de Caetano Veloso, se detinha sobre a canção de um modo geral e agora se foca, ou se desdobra em perguntas que insistem sobre os aspectos comumente menos considerados na reflexão crítica sobre a canção: a performance vocal. O ato de cantar, haver alguém cantando, ouvir alguém cantando pode passar a ser a base de uma reflexão sobre o que quer, o que faz, onde vai a canção (morta, viva, zumbi, etc.)? Leonardo revisita a cena das sereias, e busca traçar, ou mapear a dispersão de suas unidades mitopoéticas, no imaginário musical e vocal brasileiros.



Hoje, apresentamos um de seus textos em que essa perspectiva se faz a partir de um uso de uma escuta narrativa, em que o gesto criador de Maria Bethânia, em seu disco de homenagem ao poeta Vinícius de Moraes, é lido num duplo entre o drama e o lírico, de como o poeta inventa a sereia, e vice-versa. Seguimos acompanhando Leonardo, conforme ele nos aponta esses pequenos mistérios do canto, abrindo espaço a vozes diversas, e tempo para a audição.

***

 

O poeta e a sereia: a parceria entre a palavra de Vinicius de Morais e a voz de Maria Bethânia



Leonardo Davino de Oliveira



O disco Que falta você me faz (2005) traz uma Maria Bethânia de voz mais contida e introspectiva, menos caudalosa, porém não menos enfática na medida em que investe na personificação dos sujeitos líricos vividos no ato de cantar. Ao invés dos alongamentos vocálicos precisos e típicos de suas interpretações, ela opta por enfatizar o verbo (a palavra cantada) de Vinícius, sentindo cada filigrana das sensações. A sereia parece entender as palavras de Eucannã Ferraz sobre a lírica do poeta:



São marcas de uma poesia moderna, na qual o lirismo se dá de modo concentrado, num jogo bem estruturado de anáforas e emprego de estruturas sintáticas semelhantes, rimas internas, paralelismos, metáforas renovadoras dos mecanismos líricos tradicionais, associações inesperadas, polissemias, tensão entre a intensidade afetiva e a recusa de seu transbordamento, daí resultando um perfeito equilíbrio entre uma atitude poética que articula a novidade e a tradição (FERRAZ: 2008, p. 57).



Interessa-me a sereia que devolve ao poeta, via performance vocal, a condição fundamental do existir. Acredito que este disco de Bethânia guarda na distribuição progressiva do repertório a narrativa exemplar da conjunção e da disjunção lírico-amorosa, matéria do fazer poético-cancional de Vinicius. Ou seja, a sequência do repertório é um roteiro narrativo.

Antes de mergulhar nas canções do disco, acredito ser importante reafirmar que letra de canção – palavra feita para a emissão vocal – não é poesia, e nem quer, nem deve querer ser, isto já está claro, posto que a canção tem funcionamento lógico, ético e estético próprio. A letra precisa dizer o ritmo-melódico. Mas é na dimensão vocoperformática que as intenções se sustentam. Ou seja, nem toda palavra escrita serve à palavra cantada. E vice-versa. A primeira precisa pedir a segunda para que a canção surja. É por isso que letra e poesia são e não são a “mesma coisa”. Para vir a ser canção, a palavra escrita precisa “ter” um “ritmo vocal”, pois é na voz de “alguém cantando” que a canção se realiza. Deste modo a letra de canção também é poesia se tomarmos este termo num sentido mais amplo. No livro Performance, recepção, leitura, Paul Zumthor anota que poesia é “uma arte humana, independente de seus modos de concretização e fundamentada nas estruturas antropológicas mais profundas” (2007, p. 12). A partir disso, podemos lembrar que a poesia antecede a literatura e a escrita e nasce junto com a música nos rituais da antiguidade. Desde sempre, portanto, poesia e música se equilibram, dialogam: engendram canções de manutenção da vida do humano na terra.

         Dito isso, passemos a Que falta você me faz. No encarte do disco um texto de Vinicius de Moraes datado de 03/12/1965 diz: “Maria Bethânia canta como uma jovem árvore que queima / numa trepidação de madeira que se extingue para o alto” e termina afirmando que “Maria Bethânia canta com a liberdade dos pássaros para fora e para cima, mas sem perda dessa intimidade fundamental à comunicação”. Ao que Bethânia, em entrevista à revista Época retribui:



ÉPOCA: Que critérios você usou para escolher o repertório?

Maria Bethânia: Foi dificílimo, eu tinha 250 canções e precisava fazer o menor que pudesse. Fechei pelo menos os parceiros mais importantes e, dentro dessas parcerias, escolhi as canções que mais se adaptassem a minha voz, ao meu estilo, porque não sou cantora bossa-nova. Me dei o direito de fazer porque ele, com o amor dele, as palavras dele, que estão expressas no disco, me autorizou.



É no elogio do poeta à voz da sereia que mora a eficácia da beleza do disco. Poeta e sereia se unem no elogio à musa: a poesia. Aqui pouco importa se a poesia aparece escrita, falada, cantada. Importa apenas que ela surja. Para tanto, a primeira canção do disco é “Modinha”, cujos versos “Vai, triste canção, sai do meu peito / E semeia a emoção / Que chora dentro do meu coração / Coração” condensam e compreendem as mensagens que serão retomadas ao longo do disco: a transformação da melancolia em canção. Além de servir como evocação da canção: da união entre a palavra escrita com a palavra vocalizada. O gesto de evocação da musa sela o encontro da sereia com o poeta. Evocada, a musa-canção, que contém em si a musa-poesia, abre os trabalhos de vocalização das emoções.





 A dimensão lírica do texto escrito por um sujeito de coração dilacerado é potencializada tanto na voz dramática em tons tristes de Bethânia, quanto no acompanhamento do piano. A associação entre a melancolia da letra, reiterada na melodia instrumental compõem a base que dá vida ao sujeito da triste canção do eu que se pronuncia na voz de Bethânia.

Na faixa seguinte emerge a voz do poeta parceiro. O soneto “Poética” é declamado por Vinicius de Moraes na clave da poesia falada, mais uma vez chamando a atenção do ouvinte à interação do poeta com a sereia. Ela aproveita as palavras finais dele para engendrar o canto. É assim que o sujeito que antes reclama da tristeza amorosa começa a dar sinais de recuperação ao dizer: “Eu morro ontem // Nasço amanhã / Ando onde há espaço: / - Meu tempo é quando”. Fisgada, a sereia dá continuidade ao projeto de recuperação emocional do sujeito e emenda cantando “O astronauta” – “Quando me pergunto / Se você existe mesmo, amor” – para arrematar “Mas você, sei lá / Você é uma mulher / Sim, você é linda / Porque é”.  Realiza-se desse modo o pacto entre palavra falada e palavra cantada no elogio da musa-poesia feita mulher.






 Diante desta constatação da beleza do outro, desta lindeza que é linda pelo fato de ser linda, além de qualquer intervenção da razão, nasce a possibilidade do enamoramento registrado nos versos de “Minha namorada”. Mais do que uma lista de critérios amorosos, destaco aqui o convite ao pacto: “Você tem que me fazer um juramento / De só ter um pensamento / Ser só minha até morrer / E também de não perder esse jeitinho / De falar devagarinho / Essas histórias de você”. Identifico aqui o pacto das canções, ou seja, o pacto entre o poeta que concebe com a sereia que lhe canta os versos concebidos. “E você tem que ser a estrela derradeira / Minha amiga e companheira / No infinito de nós dois”, conclui o sujeito. Estes versos finais lembram que o tempo da canção, o tempo da duração do pacto entre poeta e sereia, é quando, isto é, dura enquanto dura a emissão vocal: “é como a pluma / Que o vento vai levando pelo ar / Voa tão leve / Mas tem a vida breve / Precisa que haja vento sem parar”, como canta o sujeito de “A felicidade”, quarta canção do disco. O enlace amoroso precisa do sopro da voz da sereia cantando para manter o amor vivo. É por isso que “Tristeza não tem fim / Felicidade sim”.

Apaixonado, animado pelo encontro, o sujeito lírico se retira para uma paradisíaca “Tarde em Itapuã”. Itapuã, com um mar que inaugura infinitamente um verde novinho em folha, é o tempo-espaço “sem ontem nem amanhã” ideal para a vivência do ócio, da vadiação, do “falar de amor”. “Ao sol que arde em Itapuã” arde também o desejo. E o dia passa e chega a lua, a cúmplice simbólica dos enamorados.

“Lamento no morro” e “Monólogo de Orfeu” aprofundam a entrega, o amor. O sujeito narrador desdobra-se para dentro de si, numa investigação lírica adensada. “Mulher amada / Destino meu / É madrugada / Sereno dos meus olhos já correu”, diz o sujeito da primeira, enquanto a melodia alegre vai aos poucos dando espaço à introspecção da voz de Bethânia que muda do canto à fala para declamar o monólogo do amor-maior-que-tudo: Orfeu. E a “mulher amada” transmuta-se em “mulher mais adorada”. Diz o sujeito: “(...) Ah, minha Eurídice / Meu verso, meu silêncio, minha música! / Nunca fujas de mim! Sem ti, sou nada / Sou coisa sem razão, jogada, sou / Pedra rolada. Orfeu menos Eurídice: coisa incompreensível!”. E mais adiante novamente surge a citação da relação entre palavra e música: “Quem poderia pensar que Orfeu: / Orfeu cujo violão é a vida da cidade / E cuja fala, como o vento à flor / Despetala as mulheres – que ele, Orfeu / Ficasse assim rendido aos teus encantos!”.

Lembramos aqui da atuação de Orfeu entre os argonautas quando, usando a lira que ganhou de Apolo, silenciou as sereias e salvou a tripulação de Jasão que estava em busca do tosão de ouro. Desde modo, o Orfeu de Vinicius se opõe ao Orfeu de Apolônio, enquanto este renuncia ao canto, aquele se deixa sucumbir ao amor sirênico. E festeja isso na canção seguinte “Mulher, sempre mulher”: “Mulher, martírio meu / O nosso amor / Deu no que deu / E sendo assim, não insista / Desista, vá fazendo a pista / Chore um bocadinho / E se esqueça de mim / E se esqueça de mim”.

Logo em seguida, perdido de si no mar sonoro amoroso e já se ressentindo na disjunção afetiva, o sujeito lírico criado por Bethânia percebe o mundo ao redor e canta a melancólica “Gente humilde” a qual ele se assemelha diante do abandono: “Igual a como quando eu passo no subúrbio / Eu muito bem, vindo de trem, de algum lugar / E aí me dá uma inveja dessa gente / Que vai em frente, sem nem ter com que contar”. Aqui o conteúdo lírico indica o auto-esquecimento do sujeito a fim de elaborar um conteúdo social. O sujeito aponta que a canção não é mera expressão de emoções individuais, mas universal, evidenciando aquilo que todos vivenciam: a certeza de ser só. O mergulho no individualizado transvaloriza o poema lírico ao universal humano. O uso de um acordeon lamurioso figurativiza tal estado do ser. Lírico e universal. Afirmação do desejo e participação no mundo.



Chegamos um pouco mais da metade do disco. A separação entre os amantes se configura através da canção “O mais-que-perfeito”: “Ah, quem me dera amar-te / Sem mais ciúmes / De alguém em algum lugar / Que nem presumes”, diz o sujeito, para depois completar: “Ah, quem me dera ter-te / Morar-te até morrer-te”. Esta sensação de perda e solitude será ratifica nos versos da canção seguinte, “O que tinha de ser”, cujos verbos conjugados no passado agregam valor ao não-arrependimento do sujeito que amou e agradece por ter amado, apesar da tristeza de agora: “Porque foste na vida / A última esperança / Encontrar-te me fez criança (...) Porque foste em minh’alma / como um amanhecer / Porque foste o que tinha de ser”. A relação humana desfeita é o tônico da canção, ou seja, é o estímulo do canto que mantém o sujeito vivo.

E a tristeza cobre o narrador de apatia. Sozinho, apartado da “mulher mais adorada”, distante paradisíaca Itapuã, o luto se instala e com ele o isolamento. Isso é configurado na tristíssima versão de “Bom dia, tristeza”: “(...) Se chegue, tristeza /Se sente comigo / Aqui, nesta mesa de bar / Beba do meu copo / Me dê o seu ombro / Que é para eu chorar / Chorar de tristeza / Tristeza de amar”, canta Bethânia.

A essa sequência impregnada de morte, o sujeito percebe que “pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza” e vocaliza versos rumo ao seu reposicionamento depois do luto, ou seja, passa da fase do isolamento do outro para uma aproximação através do canto do “samba em forma de oração / Porque o samba é a tristeza que balança”, como diz os versos de “Samba da bênção”: “Ponha um pouco de amor numa cadência / E vai ver que ninguém no mundo vence / A beleza que tem um samba, não”. E assim o samba dá sentido à dor e sustenta o sujeito na vida, com “a esperança divina de amar em paz” e “de um dia não ser mais triste não”.

Vem daí, portanto, o entusiasmo do sujeito criado por Bethânia ao cantar “Você e eu”. Alheio aos julgamentos dos outros, o sujeito assume que amou, sofreu, mas que isso basta para seguir vivendo, já que ele consegue responder à vida com vida, com canção. “Podem me chamar / E me pedir / E me rogar / E podem mesmo falar mal / Ficar de mal / Que não faz mal (...) Eu sou mais você e eu”, canta o sujeito que sabe que “todo grande amor só é bem grande se for triste”, como afirma na canção seguinte: “Eu não existo sem você”.

“Eu sei e você sabe que a distância não existe / Que todo grande amor / Só é bem grande se for triste / Por isso, meu amor / Não tenha medo de sofrer / Que todos os caminhos me encaminham pra você // Assim como a canção / Só tem razão se se cantar // Assim como o poeta / Só é grande se sofrer / Assim como viver / Sem ter amor não é viver / Não há você sem mim / E eu não existo sem você”, canta Maria Bethânia coroando esta interdependência entre canção e voz, poeta e dor, viver e amar, entre sereia e poeta.

Já tendo sido cantada por grandes artistas, entre eles, Agostinho dos Santos, Maysa, Ângela Maria e Cauby Peixoto, Rosa Passos e o próprio Tom Jobim, sem esquecer a antológica gravação de Elizete Cardoso no definitivo disco Canção do amor demais, “Eu não existo sem você” expõe uma Maria Bethânia contida, imersa no conteúdo emotivo e intelectivo do sujeito da canção. O processo enunciativo, o “aqui-agora” do sujeito é presentificado na voz e na melodia passional incentivando não apenas a cumplicidade do ouvinte quanto a resignação advinda da certeza que a vida é bonita porque é, apenas e mesmo com a presença da dor, da tristeza. As sereias entendem isso e cantam esta emoção.

Nem Elizete, nem Bethânia são cantoras do estilo cool exigido pela bossa nova, ambas tem vibratos e potências vocais encorpados, de altos volumes. Ambas investem no “calor” resultado das emoções dos sujeitos líricos que cantam. Sobre Elizete e o disco Canção do amor demais, que pelo gosto de Vinicius se chamaria “Eu não existo sem você”, o poetinha escreveu:



Não foi somente por amizade que Elizete Cardoso foi escolhida para cantar este LP. (...) Mas a diversidade dos sambas e canções exigia uma voz particularmente afinada; de timbre popular brasileiro mas podendo respirar acima do puramente popular, com um registro amplo e natural nos graves e agudos e, principalmente, uma voz experiente, com a pungência  dos que amaram e sofreram, crestada pela pátina da vida. (abril de 1958).

         

 Encurtando um pouco os alongamentos vocálicos, Maria Bethânia homenageia a voz de Elizete. Parece querer cantar semelhante à sua referência. Sereia cantando sereia, em gesto artístico promovido pelo poeta. O valor tensivo – entre expressão sonora e conteúdo linguístico – é ratificado e assinado na voz de Bethânia: voz que afirma que ter medo de amar não faz ninguém feliz. Os dois blocos que dividem a canção trabalham na tematização de um sujeito que evoca a natureza e a estetiza para compor seus sentimentos e registrar a interdependência entre ele e o outro.



Bloco 1



Eu sei e você sabe, já que a vida quis assim
Que nada nesse mundo levará você de mim
Eu sei e você sabe que a distância não existe
Que todo grande amor
Só é bem grande se for triste
Por isso, meu amor
Não tenha medo de sofrer
Que todos os caminhos me encaminham pra você



Bloco 2



Assim como o oceano
Só é belo com luar
Assim como a canção
Só tem razão se se cantar
Assim como uma nuvem
Só acontece se chover
Assim como o poeta
Só é grande se sofrer
Assim como viver
Sem ter amor não é viver
Não há você sem mim
E eu não existo sem você



As vozes das duas sereias, nas distintas e dialógicas versões, lidam com o equilíbrio entre o ímpeto do amor e o resfriamento do sofrer, promovendo a junção entre a voz do sujeito lírico e ouvinte. A letra se dilui no encaminhamento vagaroso da melodia. A forma musical se mistura com a voz. Tudo para fazer crer que a sereia não vive sem o poeta; para a aceitação daquilo “que a vida quis assim”.

Por fim, temos o que considero o posfácio e o ponto central do disco: a canção “Nature boy”, cantada em português por Betânhia, num versão feita por Caetano Veloso e em inglês por Vinicius de Moraes, com a sereia dando ao poeta a voz que fecha o disco, o livro, a narrativa e sua poética lírico-amorosa. Afinal, para ela, “Ele ensinou / Nada é maior / Que dar amor / E receber de volta / Amor”.

Para concluir, estou certo que este passeio pela narrativa insinuada no disco Que falta você me faz confirma a intenção de sua criadora, quando afirmou na entrevista de lançamento:



ÉPOCA: O que você pretende passar com o disco Que falta que você me faz?

Maria Bethânia: Tudo o que Vinicius me ensinou, que ensinou para todos nós através de sua poesia e de sua música. Eu tive o privilégio de conviver algumas épocas com ele muito proximamente e herdei mil ensinamentos. Eu queria que ficasse bem nítido no disco todos os jeitos de Vinicius: namorador, conquistador, maravilhoso, um charme puro! Vinícius menino, brincalhão, poeta com a mágoa do mundo, amador, um homem generosíssimo, nos ensinando que não tem graça viver sem generosidade e amor. Que um homem sozinho realmente é triste.



Referências bibliográficas:

FERRAZ, Eucanaã. “A palavra na canção”. In: Vinicius de Moraes. São Paulo: Publifolha, 2006.

MORAES, Vinicius. Samba falado: (crônicas musicais). Org. Jost Miguel, Sérgio Cohn e Simone Campos. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008.

 *