sexta-feira, 11 de julho de 2014

Cristina Flores: “Uma crueza muito maravilhosa, quando você fica diante de um jardim crescendo” (Entrevista Parte 1 de 2).



 Por Lucas Matos

No dia seguinte à derrota e desclassificação da Seleção Brasileira na Copa do Mundo, Cristina Flores me recebeu em seu apartamento em Copacabana para conversarmos sobre Jardins Portáteis, acontecimento poético, cujas experiências iniciais começaram no final do ano passado a partir de apresentações pontuais, e que agora inicia uma temporada de dois meses na Sede das Companhias, localizada na Escadaria do Selarón, na Lapa, Rio de Janeiro. Lá, num espaço povoado por plantas, Cristina, junto de Eduardo Sande e João Marcelo Iglesias apresentam seus blocos de invenções textuais, cênicas, musicais. Além deles, a experiência se desdobra em atravessamentos, nome idealizado para falar das apresentações de outros artistas, como, por exemplo, o músico e compositor Dimitri BR, ou o grupo dos Maus poetas de Pondichéry, artistas que desenvolvem poemas ou canções cenicamente.



Logo que me recebeu, Cristina comentou as matérias do jornal do dia, demonstrando satisfação com o fato de elas mencionarem os gastos com os estádios, como com o Maracanã, sugerindo que a derrota no campo de futebol poderia nos fazer ter de lidar com a realidade. Esse traço parece marcar algum dos movimentos comuns do seu pensamento, numa espécie de se voltar contínuo para a atenção com espaço em que estamos, e em como ele se encontra, quase como se houvesse uma linha em que se ligasse sua necessidade de observar a falta de cuidado com as árvores nas ruas, o projeto dos Jardins Portáteis e a política violenta na administração da cidade que busca favorecer o turismo e sufoca, ou remove os cidadãos. Uma das curiosidades que me ocorreu constantemente ao longo da entrevista era seu uso peculiar da palavra “lugar”, que oscilava em designar uma posição num campo de sentido (conceitual, discursivo) e uma ocupação física do espaço, e às vezes era um misto de ambos os sentidos, ou outras opções que eu não conseguia perceber completamente.



A entrevista ocorreu entre a cozinha e a sala, enquanto ela cozinhava batatas com alecrim e sal grosso. Paramos apenas quando precisei comprar novas pilhas e quando tive de esvaziar o conteúdo do aparelho eletrônico em que se gravava o áudio. Foram gravadas cerca de 2 horas e meia sobre Jardins, teatro, a Companhia Os Dezequilibrados, arte e corpo. Parte do material foi editada para melhor caber nas duas postagens que apresentamos a partir de agora.



Apresentamos, além da entrevista, fotos e vídeos dos Jardins Portáteis, produzidos pela vídeoartista Flor Brazil.




JARDINS PORTÁTEIS



Direção e dramaturgia: Cristina Flores. Criação e atuação: Cristina Flores, Eduardo Sande, João Marcelo Iglesias. Estética da Gambiarra: Eloy Machado. Luz: Dani Sanchez. Fotos e vídeo-poema: Flor Brazil.

SEDE DAS CIAS

Rua Manuel Carneiro, 12 – Lapa (Escadaria Selarón)

De sábado a segunda, às 20h.

De 05 de julho a 25 de agosto.


***




Bliss Não Tem Bis: Então, é, primeiro eu queria que você só dissesse seu nome completo e se você gosta do seu nome.


Cristina Flores: Cristina Flores Rodrigues. Gosto, porque acho que Rodrigues é dramático. Rodrigues. E o Nelson Rodrigues. Gosto. Eu acho que Rodrigues para mim é meio dramático, assim, é uma palavra que eu acho graça. E o Flores porque sempre foi um nome que as pessoas escolheram ao longo da vida. No colégio, eu era Cristina Flores. Eu gosto do meu nome, eu gosto de Cristina, também gosto de Cris, eu gosto do meu nome. Teve uma fase da minha vida que várias pessoas me chamavam de Patrícia.



BTNB: E isso te incomodava?



C: Não. Mas é interessante, sabe? Uma confluência. Acabou isso. Engraçado. Eu ia contar como se fosse uma coisa atual, mas não é. Eu era nova. Parece que foi aí é para sempre agora. Eu tinha 18 anos, 19. Pessoas diferentes no ano me chamavam de Patrícia. (risos). Mas parou. Que bom. Parou.



BTNB: Você diria que você se vê como atriz, como performer, como poeta, como artista? Como você se vê?



C: Eu sou atriz. Isso, para mim, é um encantamento que eu não abro mão. Eu não tenho uma família de artista. Então, é um espanto para mim mesma ter sido artista, me vê como adulta viabilizada no sentido de. (ri). Eu vou me rindo, né? Viabilizada! (ri). Mas sim, me pretendo como artista.



BTNB: Mas você respondeu primeiro atriz, por que esse atriz vem antes?



C: Não, porque atriz é delícia de ser. Eu acho que é uma delícia, o ato é uma delícia. É uma síntese que acontece no nosso corpo, ainda por cima. Sabe? É muito legal, é muito legal ser sem ter face. E ser uma autoria enorme também, porque importa o que você quer falar das coisas. Como atriz, eu sempre pude falar coisas muito fantásticas. E contar a minha vida. É muito maluco isso, agora é muito impressionante porque eu estou fazendo um texto que é meu. Então, um texto que é meu, é meu. Um texto que é meu está me implicando em uma série de outras coisas como atriz, [a gente] pode até falar sobre elas, mas assim, o texto sempre foi meu, sabe? Porque eu sempre escolhi e quando [você] fala eu escolhi e você pensa sobre isso, do que se trata escolher alguma coisa? Criar oportunidade para isso, sem dúvida. Mas tem tanto de acaso nessa porra, sabe? E o meu lugar era nessas situações de atriz de estar ali, só que rolou de serem coisas que eu queria muito viver, que eu precisava muito viver, entendi muito através daquilo várias coisas.



Eu não sou mística, eu sou bem dura, na verdade, em relação a muita coisa, eu acredito no mistério pessoalmente, mas nunca dou nome a ele. Mas eu acredito muito na sincronicidade das coisas e (ri). E aí quando [você] pergunta o que eu sou, não sei, eu sou eu, e aí quando você perguntou antes se eu gosto do meu nome, eu gosto do meu nome e eu gosto do meu caminho. O que eu queria de pequena era ser cantora, atriz, e jogadora de futebol e tudo isso eu sou, sabe? (risos). Eu não jogo futebol, não, mas também jogo. Eu gosto de fazer o que eu gosto de fazer, eu gosto que aconteça o que acontece na minha vida, e provoco o que aconteça. Acho que todo mundo é artista nesse lugar, sabe, de inventar a si próprio, esse lugar do inventor.



Justamente agora, quando as coisas, o espetáculo sobre a ilha, a Lygia [Clark, referência ao espetáculo Cosmocartas, baseado na correspondência entre a artista Lygia Clark e o artista Hélio Oiticica]. A ilha. Que lindo esse ato: chamar a Lygia de ilha. Então, a Lygia e o Hélio, são muito importantes também porque me ajudaram a pensar sobre coisas que eu já intuitivamente intentava como artista. Só para responder, eu falei que sou atriz, eu sou artista, né? Não sei, eu sou uma pessoa que quero falar sobre algumas coisas, e que cria esses espaços para isso, ou quero que se fale, também.



Eu tinha um projeto como atriz, que era fazer Crime e Castigo, e eu queria fazer Crime e Castigo porque eu me identificava muito com o Raskolnikov, e eu nunca fiz o Raskolnikov, mas eu nunca fiz o Raskolnikov e toda noite eu ouvia o Junior [Lucas Gouvêa, ator da companhia Os Dezequilibrados] fazendo o Raskolnikov. O Raskolnikov toda noite era para mim, então, eu fazia Raskolnikov através dele, sendo a Sônia.



Como eu também sou de uma Companhia de teatro [Cristina faz parte da Companhia Os Dezequilibrados], eu me envolvo, se envolver com tudo nunca foi mais do que a minha obrigação. E aí, como é que eu faço para trabalhar para mim mesma? Eu acho muito difícil sempre, para todo mundo. Eu crio compromisso com os outros. Por exemplo, meu compromisso com a Companhia dura até hoje, eu estou com 38 anos, comecei na Companhia com vinte e poucos, e a Companhia está fazendo esse ano 18 anos. O meu compromisso com a Companhia me fez dar vários passos que eu não daria sem a companhia. Então, a Companhia, para você ver, é a companhia mesmo. Criar esses compromissos com o outro tem ajudado a eu trabalhar para mim, sabe, porque senão eu falto, eu me falto, porque é difícil, a gente não está quando a gente precisa necessariamente. Às vezes é mais fácil estar quando os outros precisam.



BTNB: Você falou uma coisa sobre ser atriz que eu achei curioso, que eu queria saber se você pudesse me explicar melhor, que você falou que é ser sem face.



C: Sem face, eu falei isso?



BTNB: Falou.



C: Ah, meu deus. (risos) Que é do ato, né? É, ah, não sei, não sei. Eu acho que você veste um sei lá um sentido, como se fosse, como morasse nas palavras. Eu não sei, eu não sei.



Eu procuro ir muito em direção ao que me interessa bastante. Então as coisas que eu faço têm a ver uma com a outra, mas eu também sinto diferença, até porque eu mudo de vontade, porque como eu vivo muito, eu enjoo. É isso, quando eu fiz Dostoieviski, eu li, li tudo sobre ele, e isso é muito bom, porque foi ótimo, porque eu me dediquei, mas assim eu percebo que desde pequena é como yakut. Só podia 1, e isso me provocou demais, um dia eu comi todos os yakuts. Eu acho que eu tenho uma coisa da saturação.



BTNB: Calma. Conta como é que era o yakut.



C: Não, só podia 1 yakut porque [senão] ia passar mal, né? Bem, é. Eu ficava só pode 1, e ao mesmo tempo era lactobacilos vivos.  Eu achava tão interessante, eu achava aquilo muito bom, e eu sempre tive essa desconfiança. Percebia que havia alguma coisa: o que era bom era proibido. Num dia desses no final eu: “Ah, entendi não pode porque é bom”.



Na peça, nos Jardins, eu estava muito cansada porque eu estava no teatro, eu trabalho para caramba e, até por uma questão de grana, eu não consigo parar. É uma situação literal, você não está muito de férias, quando você é um artista, um freela, o esquema aqui é esse. Agora minha mãe me ofereceu, tem me oferecido da gente ir para Paris há mó tempão, que ela adora e tem um esquema de trocar o apartamento e de ficar lá um mês por ano, eu nunca fui e nunca fui com ela. E aí ela há anos me chama e eu há anos não vou. Até me lembrou uma história que parece que foi uma época acho que foi o Molière, o Prêmio Molière que dava uma passagem para Paris, e aí o Ítalo Rossi ganhou. Tudo isso pode ser mentira e eu não faço a menor ideia de quem seja ou de onde veio essa história: era um prêmio que tinha, e [se] ganhava essa passagem, que [se] falou que as pessoas não usavam porque: “Como é que você se ausenta?     Aí nesse tempo você não está trabalhando e ao mesmo tempo você não está articulando, e como é que você volta?”.



Mas o Jardins, eu tava muito cansada. Fui fazer várias peças por ano, tive esse acúmulo de uma vez me tocar que estava fazendo cinco peças ao mesmo tempo em dois meses. Era muito maneiro também, porque essa quantidade de texto que te habita é extraordinário. Todo mundo que já decorou alguma coisa sabe que essa coisa se volta, e te ocorre, você está pensando outra coisa, alguém te falou sei lá o quê: e aí eu sentia a maior galera, a maior galera, era muito esquisito e assim muito interessante para mim mesma que tava diante daquela quantidade de outras pessoas. Porque sou eu sempre, mas outras construções de pensamento.



E aí eu fui fazer jardinagem porque eu tava cansadaça. Eu tava começando a fazer em contrapartida a todas essas palavras retiro de silêncio no final do ano. Fiz alguns. E é fantástico, eu recomendo.



BTNB: Mas como é que era para você?



C: Você não fala e fica num lugar muito colaborativo. Você fica em relação às pessoas, mas cozinhando com elas, e estando no presente. Então tem uma roda para comer, e vocês se olham e estão. Aí tem o espaço de meditação quatro vezes por dia, você vai numa espécie de pirâmide de vime, um espaço nesse formato que parece que favorece. Como eu disse, eu não compreendo, assim, eu respeito tudo isso como mistério e fico elegendo o que me interessa, o que me faz bem. E nesse caso, me fazia muito bem. É contraditório ter um retiro de silêncio no meio de toda essa balbúrdia que eu me colocava, e era muito bom estar vivendo assim dentro desse núcleo.



Eu Joyce, Beatrice do Joyce, Exilados do Joyce, sabe ao mesmo tempo que outra [peça] com a Clarice Niskier, e eram umas coisas muito maneiras. Eu sou uma intérprete muito feliz, me acredito autora nessas investidas tanto quanto num texto meu. Eu não faço diferença. E aí, além dessa medida do silêncio, eu falei: “Poxa, ao mesmo tempo, eu quero ter durante o ano alguma prática que me livrasse de mim, do que eu tenho feito até agora, que é um lugar muito amplo”. Isso veio ao mesmo tempo que um projeto pro CEP 20.000, que eu acho que é um palco muito maravilhoso na cidade. O Sérgio Porto é um teatro fantástico, o Ricardo Chacal me encorajou muito sabe nessa coisa de me oferecer como a todo mundo, um palco, e aí eu fiz várias experiências que virou Tudo é Desse Mundo, que foi uma experiência com o Gabriel Fomm.



Eduardo Sande, Cristina Flores, João Marcelo Iglesias, nos Jardins Portáteis. Foto por Flor Brazil.


BTNB: Mas você já tinha começado a fazer as aulas de jardinagem ou não?



C: Não. [risos generalizados]. Isso é antes. É porque que também é uma espécie de começo dos Jardins Portáteis, porque é um começo estético, porque era um híbrido, já aí, de show e dramaturgia. Daí que vem: isso tudo foi pensado com o Gabriel Fomm e experimentado no CEP. Esse show foi ótimo, acabou que rolou, a gente fez em vários teatros no Rio. Eu voltei ao CEP e falei: “Cara, eu quero fazer outra coisa agora. O que eu vou fazer agora?”. Aí eu pensei: “Vou fazer Como destruir amores perfeitos, ah rá rá”. Achei essa ideia muito boa. Óbvio, ideia idiota.



Só que sou aplicada, ainda bem que eu sou estúpida, mas aplicada. Diante da minha própria ideia, eu falei: “Eu vou estudar isso”. Não sei por que eu fui. Eu fui estudar planta para destruir uma. Aí, cara, eu fui ler, e eu gostava mas não tinha batido, não era frequentadora. Não tinha outro vínculo. E aí, me apaixonei, e isso me fez Como criar amores perfeitos, que é um texto que tem. Assim, e é cafona e não é, é muito simples. É muito esse lugar da poesia, ele é uma crueza muito maravilhosa, quando você fica diante de um jardim, por exemplo, crescendo.



Eu fiquei apaixonada por esse conceito: os Jardins Portáteis; eu fiquei muito apaixonada por essa ideia primeiramente. “Os Jardins Portáteis nascem”, a professora do Jardim Botânico falou essa frase, o nome dela era Gina – e eu achei aquilo fantástico, sexy, né, a Gina, uma mulher –, “quando as pessoas vão embora, nascem das fugas das pessoas”. E elas indo embora, querem levar com elas as paisagens e então elas levavam a árvore, levavam aquela planta, daí nascem os jardins-vaso. E eu pensei nesse lugar de fuga para mim que era a jardinagem naquele momento.



Sempre foi sabe, e está sendo. É muito factual, é muito forte você pegar na terra, você transplantar, eu tenho plantado coisas. Planto abóbora, planto jabuticabeira na cômoda da minha avó. Pedi para um moço chamado Cabeção, que é um cara incrível que trabalha com o Raul Morão [artista plástico], por exemplo, trabalha com artistas da Lapa, o Cabeção é um artista que viabilizou todos os projetos. Fez esse vaso com a cômoda da vovó, que também é do Eloy Machado, que é meu parceiro, diretor de arte. A gente chama ele de Estética da Gambiarra dos Jardins. Ele desenhou a escada, que há muito eu tinha vontade de ter uma escada de salva-vidas, desde pequena. Minha fantasia, uma escada de salva-vidas. E aí para mim fez muito sentido ter uma escada de salva-vidas com rodinhas.



BTNB: Por que, desde pequena?



C: Não sei, acho um lugar, (ri) um lugar bonito. Uma cadeira de salva-vidas, eu achava um lugar muito bonito, ficava em lugares bonitos nos lugares. Dava vontade de estar numa cadeira de salva-vidas, era esperançoso esse lugar que tem alguém ali para qualquer coisa ir te salvar. É um objeto bonito, uma escada, eu queria ter. E eu contei essa vontade pro Eloy e ele fez esse projeto que é uma cadeira de salva-vidas para adulto. Além de portátil, como as coisas são no jardim para facilitar fuga, ela é equilibrada por uma planta, o peso da planta equilibra. a gente botou uma braçada de Espada de São Jorge, ali no meio, mas é uma braçada, né, é uma quantidade grande, até num vaso apertadinho.



BTNB: Fala mais da cômoda. O que você plantou nela e qual vó que era?



C: Uma jabuticabeira, uma vó que eu tive que se chamava Dalila. Dalila Velho Rodrigues. O nome de trabalho.



BTNB: Ela é por parte de mãe ou de pai?



C: Por parte de pai, e o meu pai morreu quando eu tinha 8 anos. E a minha avó, e eu já falei várias vezes sobre o meu pai, ao longo da minha vida como artista. É, junto com a minha Companhia, e em projetos, assim, motivada por isso, por essa perda. Já teve vários desdobramentos de lugares emocionais ao longo da minha [vida].



É muito interessante porque morrer não é uma coisa estática. Isso que às vezes eu fico pensando: eu fui formada pela minha mãe que vive até hoje, fui formada pela minha mãe, mas sou muito formada pelo meu pai. Meu pai morreu mil, milhares de vezes ao longo desses anos todos, porque de milhares de vezes eu olhei para isso de maneira diferentes.



Eu já tenho esse lugar, assim, meu primeiro namorado morreu. Tem um lugar, tem umas ausências muito concretas. Isso sempre foi muito uma pulsão de vida para mim no final das contas. Esse meu namorado que morreu veio muito nesse lugar: ele ia ser músico, nós dois éramos apaixonados por arte em geral, assim, estudantes do Pedro II. Eu queria ser atriz, e ele tocava bem pra caralho o violão, e ele acabou muito incerto, acabou fazendo Administração, que ele achou que quando fosse ficar velho, que ele ia ganhar dinheiro antes. Enfim ele me namorou quatro anos. A gente acabou terminando nessa virada, aquele momento que muda de vida e a gente não conseguiu ir junto, mas ele foi muito querido na minha vida. E ele morreu dois anos depois da gente ter terminado, ele, aos 22 anos, e ele morreu sem ter sido. Ele nunca ficou velho, e sei lá, e tudo ficou tão claramente vão, assim sabe, se preparar tanto.



BTNB: Ele morreu de quê?



C: Acidente de carros. A Camila Amado tem uma que me salva direto. Ela fala que é empregada do departamento de milagres, é isso, eu sou empregada de departamento nenhum, e se eu sou, é do departamento de milagres. Eu vou viabilizando existir, como é que eu faço isso, e muitas vezes essa aflição de ter que viabilizar me leva a fazer coisas que talvez eu não quisesse e que são muito boas para mim, eu fico muito feliz de ter feito.



BTNB: Mas você falava da sua avó, qual era a sua relação com ela?



C: Ah, da vovó Dalila, né? Então, eu fico pensando meio assim: eu não tinha muita relação com a minha vó Dalila. Porque... Imagina, tinha muita, assim no meu imaginário, era uma avó que ia na minha casa uma vez por semana; quando meu pai morreu, a minha mãe falou que ela só tinha a gente para beijá-la, que ele era filho único. Então aquilo para mim foi a minha responsabilidade da minha adolescência, que eu tinha que beijar a minha avó.



Mas quando ela estava morrendo, foi uma morte muito dura, ela fazia questão de ficar na casa dela. Eu lidei com milhares de coisas na morte da vovó, caralho, é foda. E assim asilo é asilo, asilo é foda. E ela tinha horror a ir, então ela adiou muito, então ela, sei lá, foi muito traumático, essa morte dela. Nesse momento, eu me aproximei, eu frequentei o hospital, eu fiquei mais perto. Quando ela morreu, ela, eu fui na casa dela, e eu olhei para as coisas de novo, e vi muito meu pai através do olhar dela, foi muito interessante, eu peguei isso. E trouxe muito pros Jardins.



O Jardins já existia, nessa hora, mas assim, teve muitas camadas essa noção do Jardins. O Jardins existe na minha vida há dois anos, essa foi uma das últimas. Ela morreu, eu fui lá, e eu fiquei com a cômoda. Aí, muito bom, reclamaram que eu ia fazer a jabuticabeira na cômoda. Porque a primeira reação de todo mundo foi que seria ruim para a cômoda. Eu acho isso maravilhoso, né? Mas por que você vai estragar a cômoda? E as cômodas são estragáveis no tempo, as cômodas não devem prevalecer no tempo apesar de tudo, as cômodas podem ir embora. Está tudo bem, entendeu? Lógico, o Cabeção tratou, transformou num vaso de um jeito muito cuidadoso, mas a raiz está expulsando a parte de trás, e ela vai ter que ser alocada, ela está com bastante terra, está saudável e tal.



Eu peguei as roupas dela, e eu fiquei pensando sobre esse lugar da ficção também. E agora a cadeira dela, eu sento numa cadeira dela. Cara, ela veio para a minha vida de uma maneira. Eu peguei as fotos do filho dela, porque não são as fotos exatamente do meu pai, sabe? Porque a moldura, o jeito, aquela foto, é a foto do filho dela, sabe? É muito interessante ver assim, sabe? E como meu pai é uma figura que eu pouco conheço, é um outro olhar.       E ela era uma mulher, e ela se chama Dalila. Tudo isso, mesmo ela era uma mulher um pouco assustadora também, com alguns pensamentos meio assustadores, ao mesmo tempo, sei lá, tão humana.






BTNB: Ah, é, vou fazer umas perguntas sobre os Jardins, então, porque você já entrou. Você chegou a falar em algum momento no Jardim como um penetrável.



C: O Hélio [Oiticica] fez um ato que chamou Acontecimento Urbano-Poético e eu pensei em replicar e usar, e chamar o meu de Acontecimento Urbano-Poético: Jardim, dois pontos Jardim. Tem tudo a ver, é um penetrável porque é um espaço de convivência. É um espetáculo que é uma desculpa, veio muito do Hélio, veio muito Chacal, tem muito do CEP. Veio muito da Lygia [Clark], pelos Bichos [série de esculturas da artista, feitas em alumínio, possuidora de dobradiças que permitem a flexibilidade e articulação das partes do corpo] todos, pelo que é tocável e modificável com as suas mãos, e com a sua presença e com o seu corpo. Você molda as coisas, a sua presença está. A Lygia, enfim. O Jardim é total fruto de tudo isso. É para ser vivo. E falo minha poesia nele, e faço um recorte, e tem essa ideia de pensar a cidade, coisas que me impressionam, sei lá, de cidade a um monte de coisa, de fazer isso dentro de um ambiente vivo. E dentro de um ambiente vivo que precisa ser cuidado, e que é bonito. Aí eu descobri vários artistas que trabalham com jardins no mundo. Tem estrada para caralho, fiquei com vontade de fazer Botânica, eu estou caminhando para tudo isso. Desde os nomes. Eu brinquei com uns buquês de nomes, uns ajuntamentos de nomes de flores. Tem nomes muito bonitos.



BTNB: Fala um pouco sobre os buquês.



C: Do que eu tenho lá, já, Allamanda cathartica [ou Alamanda, ou dedal-de-dama, pop.], é uma planta amarela, uma flor amarela, que dá à beça [risos], que é uma trepadeira. Aí você vê essa coisa da trepadeira também é uma coisa muito interessante, essa coisa assim física. A trepadeira precisa de parede e você verifica isso, quando você coloca a trepadeira apoiada assim num local que ela pode se desenvolver, ela se desenvolve muito mais do que não, do que você afastando ela de tudo. Se ela sai de casa, ela adivinha paredes. Se ela está se desenvolvendo numa parede, e tem uma parede depois e está entre obstáculos e ela não vê, ela se dirige a essa parede oculta, ela prevê. Existe intento, existe direção no crescimento.



Uma moça foi nos Jardins, a Paula Barreto, para a chegada dos atravessadores. Esse espaço de convivência. Então, poder de fuga, retornando o meu insigth que me levou a construir esse lugar no Rio de Janeiro e eu ter vontade de levar esse lugar pros lugares. É, meu pensamento foi assim: é um ambiente muito agradável, é um ambiente vivo, sobre ele, as pessoas vão e ficam. A Paula Barreto levou um aparelho que foi inspirado num detector de mentiras. Tem um livro que ficou famoso nos anos 70 chamado A vida secreta das plantas [A vida secreta das plantas (The secret life of plants), de autoria de Peter Tompkins e Cristopher Bird, publicado originalmente em 1973, com tradução em português editada pelo Círculo do Livro em 1976] que é o desenvolvimento desse caso que é o do Doutor Backster [Cleve Backster, especialista norte-americano em detecção de mentiras], que é um nome ótimo, ele descobre isso. Ele está enfadado no escritório e aí bota o detector de mentiras numa planta, uma Dracena [espécie de planta tropical utilizada como ornamental] e aí ela reage a ele botar uma parada quente nela, o café quente. Ele descobre milhares de desdobramentos e a sensibilidade das plantas e que elas estão ligadas a você e que se você cria uma planta desde a raiz, está ligada mesmo. Ela se relaciona com o seu estado de espírito, inclusive.



Aí, a Paula Barreto, por exemplo, foi lá com um aparelho desenvolvido agora por um cara da UFRJ, descendente desse detector de mentiras, que é o Plancton, e ela faz essa verificação da sensibilidade. Você molha com saliva, passa o dedo, e a planta reage, uma loucura! E isso é um tesão de descobrir, está sendo assim, e é muito bonito, flor é uma coisa muito bonita. É bonito de olhar, acalma a mente. Assim, num bom sentido, sabe. Não é à-toa, Goethe, milhares, eu tenho lido coisas sobre outros que caíram por terra, né, pode falar? E tem me feito muito bem conhecer pessoas porque esse espaço de fuga, ele é um jardim, no Rio de Janeiro, que também então, é uma política, cobra pouco [O ingresso custa R$2,00 (dois reais)].


 

BTNB: Eu ia perguntar disso, sobre essa questão disso como uma intervenção no espaço urbano mesmo.



C: Eu acho que esse é o lugar de todo jardim, é, e forçando mais, esse jardim pode ser palco, minha proposta é que seja.



BTNB: Isso é uma coisa interessante. Você pensa nele como jardim e palco?



C: Eu penso nele como um espaço de ato, para ato. E, por exemplo, então meu projeto é: eu vou para Sobral, com uma proposta de Workshop de Jardinagem e Ato, que é uma incubadora de desejo dos outros. Você chega lá e: “Olha, eu tenho feito isso aqui, eu tenho feito isso aqui e estou querendo chegar”, é o “ao vivo”. Eu quero o espaço para o “ao vivo”, que teve sempre aqui com o CEP. Você tem um espaço de convivência em que a pessoa pode sossegar, e aí vai aprender a criar esse espaço juntos. Então eu pego lá o dinheiro que eu pegaria para levar o meu cenário para a cidade, eu uso para fazer lá, eu compro isso em terra, planta, entendeu?



E aí a gente faz junto esse jardim, e o jardim fica. E acho que artistas são sensíveis o suficiente para seguirem regando, que é que faz o jardim viver, para ser palco deles, do interesse daquilo ser palco. E isso é um lugar muito agradável, é muito agradável estar num lugar agradável. Pode ser desagradável também, dá para fazer coisas bem soturnas no jardim, eu sou um pouco mórbida, né.



Eu tava tão dispersa que eu achei que podia fazer um número que se chamava Como destruir Amores Perfeitos. Hoje em dia para mim seria impensável matar um ser vivo. Eu tenho vontade de morar em lugares com árvores. Eu tenho vontade de revitalizar, por exemplo a Escadaria do Selarón para o Projeto Jardins Portáteis, ter que revitalizar aquelas banheiras. A ideia é que fosse ali, plantas para chá, para tempero, porque é assim que seduz as pessoas, para regarem. É uma troca é que nem jardim para artistas que vão regar porque é o palco deles. É uma troca, um jeito de um enredamento, de um no outro.



BNTB: Como é que é a sua observação, como é que você nesse lugar percebe as pessoas, você consegue observar quando você está lá atuando?



C: Eu acho que dentro do que é você observar alguém. O que está se passando relativo a sua cabeça, e o que está se passando relativo a minha cabeça, são coisas que nem a gente sabe. Então eu procuro sim, cada vez mais em todos os lugares, inclusive na cena, falar: “Ó, olha ali, vamos lá”. Me perco muito, me perco muito desde. Os Dezequilibrados tem isso: a gente trabalhou muito em espaço não convencional. E aí, onde é que o público vai ficar? Mas será que eles vão entender que é para vir para cá? Então assim, essas perguntas fizeram muito parte da minha vida, e eu gosto de responder. Eu sempre gostei de receber as pessoas, pode ser para depois dar um susto nelas se for o caso. Mas eu gosto de gente, sabe. Eu faço teatro porque eu gosto de ver gente, e é um lugar em que as pessoas vão mais desarmadas, é mais possível.



A Lygia também me libertou muito disso. A Lygia radicaliza o trabalho a ponto de, no final da vida dela, ela ir num consultório, ela atende um por um. Ela pega toda a obra dela, trata as pessoas, faz consultas de um por um. É uma consulta, é um paciente que é um espectador, também não é um espectador, porque ela está em segundo. Mas é uma troca, é um ato compartilhado, então o que eu esquecer disso é do outro, eu não sei. Eu sei da minha intimidade, da minha proposta, é o que eu posso oferecer.



Eu não tenho mais medo da invenção, é isso que eu quero dizer, sabe, o Jardins é muito um brinquedo de invenção, e é um brinquedo de botar pilha nos outros para inventarem também. Então, os atravessadores também podem inventar, e as pessoas que estão lá estão topando ficarem juntas num ambiente vivo, em que acontecem umas coisas estranhas, e outras não. Meio que acontecem umas coisas, é uma prática de acontecimentos, e é um pensamento estético e uma estética de arte, de alguma forma, porque é um acontecimento, é não causal, por uma estrutura que enrede, e não enredo.



Como é que você auxilia esses ecos, essas [dizendo um trecho de um texto da peça] “folhas flaem ferem fissuras flanantes furando o chão das folhas”. Assim parece um amontoado de “efe”, e não. As folhas flanantes ferem fissuras, elas se colocam umas entre outras, vão, superpõem, e tem a ver com placas tectônicas. E aí um rumo diferente, e que silêncio é esse? É um silêncio previsto e é um silêncio que vem da troca de um artista por outro. Eu evito um pouco a apresentação no Jardins, ela pode estar embutida no ato se for necessário, mas ele não prevê o isolamento. E de alguma maneira é isso, esse lugar de estar junto. E minha vontade é vagabunda, é sensibilizar vinte no sábado, vinte no domingo, vinte na segunda. E sensibilizar no sentido de ir lá, encontrar com a gente.



Porque aí tem o atravessamento, que é o projeto, aí entra o Dimitri [BR, cantor, compositor, poeta], a gente está fazendo uma peça juntos na real. E é muito privilégio, porque é um poeta, é muito bonito o trabalho dele, e ele tem essa pesquisa sobre o ato. É muito interessante ver como ele viabiliza isso, como ele cria a situação dele, sabe, é um pouco esse lugar de pesquisa. O Álamo [Facó, parceiro de cena de Cristina em Cosmocartas] já tá superprovocado, já quer levar material para atravessar. É um lugar de pesquisar isso, o acontecimento, esse lugar que o Hélio anos atrás inventou e que se chamava Acontecimento Poético-Urbano. Para o contexto florir.




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