terça-feira, 29 de outubro de 2013

“Uma vez mais a dilaceração fascinante”: A Antologia de Poesia Surrealista Traduzida por Carlos Lima.

Por Clarissa Freitas

Toda essa postagem veio numa maleta surrada e mais bela por ser surrada e mais importante por ser surrada e de Carlos Lima. Carlos Lima, Luiz, é meu professor, poeta e amigo. Luiz entrega presentes como entrega verdades: vão te cortar, vão te modificar e vão te fazer sorrir. Carlos Lima é também um dos heroicos editores da revista Alguma poesia, que viveu entre 1978 e 1986, e que tem entre seu acervo um importante ensaio de Ana Cristina Cesar sobre tradução, publicações de diversos contemporâneos da década de 70 e traduções de poetas e escritores internacionais pouco divulgados no Brasil até hoje. Em 1982, seu Anatomia da Melancolia foi premiado pela Associação Paulista dos Críticos de Arte na categoria Revelação.
Um belo dia, Luiz me tirou da maleta uma antologia de traduções suas de poetas surrealistas junto com alguns ensaios importantíssimos sobre o tema. Aqui, uma pequena (talvez primeira) parte dessa antologia – o paladar do surrealismo pela leitura e tradução de Carlos Lima.

***

Trechos do Ensaio Vanguarda e Utopia: Surrealismo e Modernismo no Brasil (Carlos Lima).

A utopia é o coração da modernidade. Somente relacionando a arte com a utopia, e utopia aqui é sinônimo de revolução, é que poderemos compreender a arte do período que acostumamo-nos a chamar de modernidade. A luta por um mundo mais justo e uma sociedade livre da maldição da miséria foi a verdade que reuniu os mais importantes artistas, poetas e escritores das mais diversas correntes estéticas da arte no início deste século.
Dos olhos de “Nadja” ao “Camponês de Paris”, os caminhos da revolta entrecruzaram-se com os caminhos do surrealismo com os caminhos da revolução. É preciso assinalar que a aventura terrestre do surrealismo fundou a sua ação na construção da utopia concreta de uma literatura livre numa sociedade igualmente livre. Da superação da vanguarda positivista futurista é que o surrealismo consegue elaborar a construção da sua poética da utopia. Já o primeiro manifesto surrealista afirmava: “Viver ou deixar de viver são soluções imaginárias. A existência está em outra parte”. Amor, Poesia, Liberdade – três palavras incandescentes, prontas para criar o homem novo, a nova mulher, o mundo novo. Mudar a vida, transformar o mundo eram as palavras de ordem dos poetas e artistas no front da utopia estético-revolucionária. Revolução na arte, arte a serviço da revolução. Por isso Breton pode escrever: “Liberdade, cor do homem”. Isto é surrealismo, filho bastardo da França católica positivista; filho legítimo da Comuna de Paris e dos seus verdadeiros poetas, Rimbaud e Lautréamont, que forneceram os principais elementos da poesia futura e de uma poética da utopia:

1) É preciso mudar a vida (Rimbaud)
2) É preciso reinventar o amor (Rimbaud)
3) O Eu é um outo (Rimbaud)
4) É preciso ser absolutamente moderno (Rimbaud)
5) O poeta tem que se tornar vidente. O poeta torna-se vidente através de um longo, imenso e estudado desregramento de todos os sentidos. (Rimbaud)
6) A poesia deve ser feita por todos, não apenas por um. (Lautréamont)
7) Belo como o encontro fortuito de uma máquina de costura e um guarda-chuva sobre uma mesa de cirurgia. (Lautréamont)
8) A beleza será convulsiva ou não será. (Breton)
9) O olho existe em estado selvagem. (Breton)
10) Liberdade, cor do homem. (Breton)
Que os surrealistas pretenderam transformar o mundo é mais que sabido. Basta que pensemos o que foi a ação surrealista no domínio da arte deste século. Na poesia, na literatura, na pintura, no teatro, no cinema, o surrealismo sempre esteve a serviço da revolução. Podemos repetir o primeiro manifesto, “nunca o medo da loucura nos fará baixar a bandeira da imaginação”.

*

De André Breton

A união livre

Minha mulher com a cabeleira de fogo dos bosques
Com pensamentos faiscantes de calor
Da altura da ampulheta
Minha mulher do tamanho da lontra entre os dentes do tigre
Minha mulher de boca de fita e ramo de estrelas de última grandeza
Com dentes marcados por um sorriso branco sobre a terra branca
Com uma língua de âmbar e de vidros polidos
Minha mulher com a língua de hóstia apunhalada
Com a língua de boneca que abre e fecha os olhos
Com a língua de pedra inacreditável
Minha mulher de cílios de lápis de criança
Com sobrancelhas de fímbria de ninho de andorinha
Minha mulher com têmporas de ardósia de teto da serra
E vapor nos vidros
Minha mulher com ombros de champanhe
E com fonte na cabeça de golfinhos sob o gelo
Minha mulher com dedos de acaso e ás de copas
Com dedos de feno cortado
Minha mulher com axilas de mármore e de silo
De noite de São João
De alfenas e de ninho de escalares
Com braços de espuma do mar e açude
E de mistura de trigo e moinho
Minha mulher com pernas de fusa
Com movimentos de relojoaria e de desespero
Minha mulher com brandas medulas de sabugueiro
Minha mulher de pés iniciáticos
Com pés de pequenos estojos aos pés dos calafates que bebem
Minha mulher com pescoço de cevada desnuda
Minha mulher com pescoço do Vale do Ouro
De encontros no leito da torrente
No seio da noite
Minha mulher com seios de abismos marinhos
Minha mulher com seios de crisol de rubis
Com seios de espectro da rosa sob o orvalho
Minha mulher com um ventre que agita o leque dos dias
Com um ventre de grifo gigante
Minha mulher com dorso de pássaro que foge verticalmente
Com dorso de mercúrio
Com dorso de luz
Com a nuca de pedra rolante e de giz molhado
E de queda de um copo no qual se bebeu
Minha mulher de ancas de nacela
Com ancas de lustre e penas de flecha
E de tronco de plumas de pavão branco
De balança insensível
Minha mulher de coxas de quartzo e amianto
Minha mulher de coxas de dorso de cisne
Minha mulher de coxas de primavera
De sexo de gladíolo
Minha mulher de sexo arrumado e ornitorrinco
Minha mulher de sexo de alga e bombons antigos
Minha mulher de sexo de espelho
Minha mulher com olhos cheios de lágrimas
Com olhos de panóplia violeta e agulha imantada
Minha mulher com olhos de savana
Minha mulher com olhos de água para beber na prisão
Minha mulher com olhos de floresta sempre sob a acha
No nível da água no nível do ar da terra e do fogo

Sou eu abra

As vidraças se quebram a sua volta
Não há mais espelhos há muito tempo
E as mulheres se desculpam por serem tão belas
À aproximação dos pássaros que vão pousar nas suas costas
Elas voltam docemente a cabeça
O assoalho e os móveis sangram
Uma aranha lança sua teia sobre uma moldura vazia
Crianças com uma luz vagam nos bosques
Pedindo sombra aos lagos e às folhas
Mas os lagos silenciosos são muito atraentes
Vê-se logo na superfície apenas uma pequena luz que baixa
Sobre as três portas da casa estão pregadas três corujas brancas
Em memória de amores desta hora
A extremidade de suas asas é dourada com as coroas de papel
                                                   / que tombam girando das árvores mortas
A voz desses estudos põe cardos nos lábios
Sob a neve o para-raios atrai as estrelas gaviões

O mata-borrão de cinzas
                                        a Robert Desnos

Os pássaros se aborreciam

Se eu esquecesse alguma coisa

Soai o sinal dessas saídas de escola no mar
O que nós chamaremos de plantas medicinais

Começa a sair o resultado do concurso
Para saber quantas lágrimas cabem nas mãos de uma mulher
1- Tão pequena quanto possível
2- Numa mão média

Enquanto eu amasso este jornal estrelado
E as carnes eternas entram para sempre
                                           Em posse do cimo das montanhas
Eu habito selvagemente uma pequena casa em Vaucluse

Coração carta de penhor

Sempre pela primeira vez

Sempre pela primeira vez
Mal te conheço de vista
Entras à certa  hora da noite num casa oblíqua à minha janela
Casa completamente imaginada
É aí que num segundo
Na intacta escuridão
Eu espero que se produza uma vez mais a dilaceração fascinante
A dilaceração única
Da fachada e de meu coração
Quanto mais eu me aproximo de você
Em realidade
Mais a chave canta na porta do quarto desconhecido
Onde apareces só
No início estás inteiramente fundida no brilhante
Ângulo fugitivo de uma cortina
É um campo de jasmins que eu contemplei de manhã
                             numa estrada próxima de Grasse
Com suas colhedoras em diagonal
Atrás delas a asa escura pendente das plantas indefesas
Diante delas o esquadro do encanto
A cortina invisivelmente levantada
Entram em tumulto todas as flores
É você possuída por esta hora longa demais
                                nunca tão confusa como o sono
Tu como se pudesses ser
A mesma ou quase que eu não reencontrarei talvez jamais
Pareces não saber que te observo
Assombrosamente não sei mais se sabes
Tua ociosidade me faz chorar
Uma nuvem de explicações cerca cada um dos teus gestos
É uma caça ao mel
Há cadeiras giratórias numa ponte há ramagens que te arranham na floresta
Há um vitrine da rua Notre-Dame-de-Lorette
Duas belas pernas cruzadas possuídas de alto a baixo
Que se abrem no centro de um grande trevo branco
Há uma escada de seda subindo pela hera
Que me inclinar sobre o abismo
Da aliança sem esperança da tua presença e da tua ausência
Achei o segredo
De te amar
Sempre pela primeira vez

O marquês de Sade retornou ao interior do vulcão

O marquês de Sade retornou ao interior do vulcão em erupção
De onde ele veio
Com suas belas mãos ainda rendadas
Seus olhos de menina
E esta razão em flor de salve-se quem puder
Desde que seja ele
Mas do salão fosforescente iluminado de vísceras
Nunca deixou de lançar as ordens misteriosas
Que abrem uma brecha na noite moral
É por esta brecha que eu vejo
As grandes sombras rachadas a velha casca minada
Dissolver-se
Para permitir que eu te ame
Como o primeiro homem amou a primeira mulher
Com toda a liberdade
Esta liberdade
Pela qual o próprio fogo se fez homem
Pela qual o marquês de Sade desafiou os séculos
                                  com suas grandes árvores abstratas
De acrobatas trágicos
Capturados no fio virgem do desejo

*

De Robert Desnos

O anel de Moebius

O caminho que percorro
Não será o mesmo no retorno
Eu gosto segui-lo reto
Que me leva a outro mais perto
Eu giro em círculo e o céu cansa
Ontem eu era uma criança
Sou um homem agora
O mundo é uma piada sem hora
E a rosa entre as rosas
Nunca é igual a outra rosa.

Não visto

Não visto o cometa
Não vista a bela estrela
Não visto tudo isto

Não visto o mar em flocos
Não vista a montanha ao contrário
Não visto tanto quanto isto

Mas visto dois belos olhos
Vista uma bela boca brilhante
Visto muito mais que isto

*

De Paul Éluard

Entre alguns poucos
                          a Phillippe Soupault

Seus olhos são todo um céu de lágrimas.
Nem suas pálpebras, nem suas mãos
São uma noite suficiente
Para que sua dor se esconda.
Ele vai perguntar
Ao conselho dos rostos
Se ainda é capaz
De jogar sua juventude
E ser na planície
O piloto do vento.
É uma questão de experiência:
Ele pega sua vida pelo meio.
Só que os pratos da balança...


A sombra dos suspiros

Sono leve, pequena hélice,
Pequena, tépida, coração no ar.
O amor do prestidigitador.
Céu pesado de mãos, faíscas nas veias,
Correndo nas ruas sem cores,
Toma nos seus passos as calçadas,
Solta o último pássaro
De sua auréola de ontem –
Em cada poço uma só serpente
No entanto sonha abrir as portas do mar.

O rio

O rio que tenho sob a língua,
A água que não imagina, meu pequeno barco,
E, as cortinas baixas, falemos.

Ao lado

A noite mais longa e a estada mais branca.
Lâmpadas estou mais perto de vós que a luz.
Uma borboleta o pássaro do hábito
Roda quebrada de minha fadiga
De bom humor arrumada
Sinal vazio e sinal
No leque do relógio.

A palavra

Tenho a beleza fácil e sou feliz.
Eu deslizo sobre o teto dos ventos
Eu deslizo sobre o teto dos mares
Eu me tornei sentimental
Eu não conheço mais o condutor
Eu não passo mais seda sobre os espelhos
Eu estou doente de flores e seixos
Eu amo o mais chinês nas nuvens
Eu amo a mais nua nos abrigos dos pássaros
Eu sou velha mas aqui eu sou bela
E a sombra que desce das janelas profundas
Poupa cada noite o coração negro dos meus olhos


terça-feira, 22 de outubro de 2013

Luca Argel & T menos 3 horas: “São vinte e três horas e o poeta irá oferecer uma pequena récita aos postais retornados”. Correspondências Parte 4.

Uma escrita de idas e vindas. Correspondências voltam, planos são adiados, frases se descolam do contexto, deslocam-se partes do corpo, recortam-se pedaços de fotos. E então é absolutamente necessário pensar no diálogo – entre texto e imagem, e material (papel, costura) – como nessa urgência e vontades das coisas se fazerem ao invés de ficar discutindo tiragens e distribuição; então é absolutamente necessário dizer algo para as coisas, recitar para os postais retornados (numa talvez inversão vertiginosa daquela cena que encerra o Luvas de Pelica, da Ana C.?). É dessa costura sutil que se faz a obra Postais Retornados, de Luca Argel e T menos 3 horas, de deslocamentos que insistem em perguntar, em se debruçar sobre as fissuras do tempo, dos nossos hábitos congelados.
         Os livrinhos são feitos pela mesma dupla de Esqueci de fixar o grafite (7 Letras, 2012 - poemas por Luca Argel e imagens por T menos 3 horas) e compõem com ele uma outra forma de reflexão e de diálogo não só sobre a escrita e a imagem, mas sobre esses pedaços de vida que nos atingem, que nos assustam, que vivemos sem nos dar conta, e de repente é incrível descobrir que já estamos passando por isso. A impressão é que, diante deles, sempre nos perguntamos: mas qual a diferença entre um encontro e um desencontro? Como é possível reconhecê-la? Não encontro algo, necessariamente, ao me desencontrar comigo? E assim por diante.
         Além deles, a correspondência entre os autores e os editores desse blog, também com seus caminhos de retornos, de pequenas emendas, e como esse tecido se fez também naturalmente pedindo pausas, intervalos, deslocamentos e descolamentos, até que se chegasse aqui. E então estamos de volta para nossa seção de correspondências. E então de volta para fazer uma récita para esses objetos entre perdidos e novos (guardados para sempre em sua novidade), postais que voltaram, sem chegar ao seu destino.

***

De: Marcio Junqueira
Enviada: Segunda-feira, 7 de Outubro de 2013 03:35
Para: Luca Argel
Assunto: postais retornados

oi luca,

como está? como andam as coisas em portugal?

seguinte: estou te escrevendo porque na nossa pauta para o blog da bliss, tem um post sobre  os "postais retornados", seus e da T.  Esse foi o primeiro trabalho de vocês que eu vi (numa exposição na tijuca, antes mesmo de saber quem eram vocês) e eu acho eles maravilhosos.

lá no blog criamos uma sessão que é de correspondências, baseada no making of, que publicamos na bliss de 2009. minha ideia para o post sobre os "postais retornados", era ter a publicação de um e-mail seu (pode ser a resposta deste, rs), mandando notícias de portugal e fazendo uma espécie de exegese sobre eles + alguns "postais". 

se você topar podemos ir construindo o post e pensar juntos que postais poderiam ser postados (não teve modo de evitar essa duplicação, rs) no facebook.

é isso,

espero que vc esteja bem e com saúde

beijos

m.

De: Luca Argel
Enviada: Terça-feira, 8 de Outubro de 2013 09:36
Para: Marcio Junqueira
Assunto: Re: postais retornados

marcio marcio,

por aqui está tudo bem sim, comecei o curso de literatura portuguesa na universidade do porto e estou adorando! bom, tirando o fato de que estou sem emprego e o dinheiro está acabando, está tudo mesmo muito bem.

bom, vejamos. os "postais", tem bastante coisa que podemos falar sobre os postais...

-primeiro de tudo, "postais retornados" era pra ser o título do meu livro, ao invés de "esqueci de fixar o grafite". ele caiu num encontro que tive com o jorge lá na 7letras, quando a editora ainda era aquela casa linda na rua goethe, em botafogo. e até relativamente pouco tempo antes da publicação estávamos sem título, foi mesmo a última coisa do livro que ficou pronta. e olha, foi difícil decidir qual seria. só batemos o martelo depois de ver o preview da capa do livro no computador.

-tanto que "postais retornados" é um nome que ainda vejo totalmente entranhado em "esqueci de fixar o grafite"... quando li seu email a primeira vez achei que você falava do livro, e não do trabalho para a exposição. até porque o livro também é um trabalho com T! raramente as pessoas fazem comentários sobre as ilustrações, o que é uma pena. acho que aquilo ali tá muito bem arranjado. apesar de ter surgido de uma necessidade prática de aumentar o numero de páginas do livro.

-vê como a história de "postais retornados" e de "esqueci de fixar o grafite" é a mesma?

-uma curiosidade: o nome "postais retornados" veio de um poema velho, meu, que não está no livro, e que se chama "cobertura sinistro". lembro de ter lido esse poema numa das oficinas do carlito, e que ele tinha achado especialmente bonito um trecho em que dizia "são vinte e três horas/e o poeta irá oferecer uma pequena récita/aos postais retornados." ele disse que imaginava alguém sozinho num apartamento, com um monte de postais (retornados) sobre a cama (eu os imagino não jogados, mas cuidadosamente arrumados um ao lado do outro, como uma plateia), e lendo não os postais, mas lendo diante dos postais, lendo qualquer coisa "para" os postais. retornados.

-a cena ficou na minha cabeça e partir daí comecei a nutrir um carinho pelo nome "postais retornados".

-lembro de ter entregado uma versão preliminar do livro pra T num evento que aconteceu no odeon, em que falava o kenneth goldsmith, que é (era?) um gosto em comum que tínhamos (temos?). eu já vinha de uma experiência muito legal de trabalho colaborativo com um ilustrador, o "fabulaciones y sueños", com o victor mattos. e provavelmente quis fazer qualquer coisa do tipo com a T, depois de ver algumas colagens dela e ter adorado. é tão bom perceber que um amigo seu de repente virou um artista, e está fazendo bons trabalhos. ainda mais quando é um amigo como a T, que daqui a alguns anos já vou poder dizer com mais tranquilidade "de infância".

-não sei bem o que eu estava querendo quando entreguei os poemas pra T. não lembro se já tinha em mente alguma coisa parecida com o que fiz com o victor, ou se já tinha a perspectiva de publicar na 7letras. tenho quase certeza que ainda não, que era mais uma experiência, e que não tinha a menor ideia do que queria fazer com aqueles poemas. mas foi tudo num período muito próximo, a virada de 2011 pra 2012.

-o tempo passou. alguns poemas novos se integraram no que então ainda era o projeto "postais retornados". e um dia encontro com a T no parque lage e ela me dá um presente-surpresa. dentro de um envelopinho pardo, um livrinho, que cabia na palma da mão, feito de um papel que não sei o nome, mas que era meio áspero, rígido, bom de pegar, costurado à mão, e com trechos, pequenos trechos dos poemas que tinha dado a ela, versos soltos, palavras, expressões, tudo batido à máquina, inclusive com algumas gralhas e correções aparentes, e no meio de tudo umas colagens também. enfim. era uma coisa linda, fiquei apaixonado por aquilo. na capa de cartão estava escrito "postais retornados" com aquelas letras de decalque que a gente compra em papelaria. ficamos de tentar fazer mais.

-e fizemos. passamos uma tarde no quarto dela, cortando papéis, revistas e fotos velhas que ela comprava na feira da praça XV, e depois de cortados eu passava na máquina de escrever e colocava qualquer coisa do livro (as provas estavam abertas do meu lado - assim como um livro do cortázar, que não se sabe bem o que estava fazendo por ali, mas que acabou "vazando" um pouco pra dentro de alguns livrinhos), quase que aleatoriamente. depois costuramos com uma linha de algodão vermelha. quer dizer, ela costurou, porque eu não sabia bem como fazer e tinha medo de estragar. almoçamos um cuscus marroquino esse dia. eu já era vegetariano (e ela já era muito antes de mim). aquela tarde rendeu 16 livrinhos.

-quando o "esqueci de fixar o grafite" virou uma realidade, os dois projetos meio que se separaram. até pensamos em fazer mais e distribuir no dia do lançamento. mas não aconteceu. acho que, pelo menos da minha parte, foi metade por preguiça e metade por dó de me desfazer deles.

-quando aconteceu o 2˚ jardim suspenso, poucos meses antes da minha viagem pra portugal, resolvemos expor os livrinhos. comprei um daqueles grampeadores de cenógrafo (que se chama "rocama", e que eu só fui descobrir aí, depois de já ter usado a palavra rocama no livro, sem nunca ter visto uma) e preguei os livrinhos todos numa das paredes (não sem um certo dano - mais dos livros do que da parede) do jardim da casa do reggae, lá em cima na rua uruguai, onde estavam acontecendo as exposições.

-infelizmente, o que sobrou de registro desse dia foram umas 2 ou 3 fotos e olhe lá. parece que a nossa fotógrafa oficial ficou bêbada na festa e esqueceu de tirar mais fotos dos trabalhos.

-um pouco por isso, e um pouco pelo tanto que gosto dos livrinhos e queria dividir com as pessoas, digitalizei todos e coloquei no issuu. claro que não é a mesma coisa que pegar e manusear cada um, mas pelo menos dá pra ter uma idEia. (se não me engano dá pra fazer o download de tudo por lá!)

-por isso todos os "postais" podem ser postados no blog da bliss e no facebook. vai ser inclusive muito bom vê-los lá, vê-los circulando. é pra isso que é um "postal", né? e eles são tipo um B-side do "esqueci de fixar o grafite", e ao mesmo tempo uma série em que o trabalho da T e o meu interagem com muito mais desenvoltura e equilíbrio. acho eu.


e achava legal também escrever pra T, e pedir pra ela escrever qualquer coisa eu mesmo gostava de ler sobre como foi isso tudo da perspectiva dela! será que ela faz?

fazer uma 'exegese', como você sugeriu, até pra mim (ou principalmente pra mim), é bem difícil. contei uma historinha. espero que sirva, rs.

você vai estar em novembro no rio, no lançamento da bliss-não-tem-bis? com sorte, eu estarei também, e aí nos vemos =)

bjo grande

luca


De: T menos 3 horas <tmenos3horas@gmail.com>
Enviada: quinta-feira, 17 de outubro de 2013 00:23:54
Para: Marcio Junqueira
Assunto: postais retornados


oi marcio,

sabe que eu fico bem sem graça de escrever e tal, mas te conto um pouco dos postais retornados, como foi isso pra mim...

os postais têm aparecido com muita frequência na minha vida esses últimos tempos… eu nem tinha parado pra pensar nisso na verdade. foi só depois de ler o e-mail do luca (que fez tudo voltar na minha cabeça com imagens) e também da sua vontade de resgatar essa história pro bliss me pedindo pra contar um pouco sobre o processo que eu comecei a conectar tudo.

o bloco de anotações que tem aqui em cima da mesa é do tamanho de postais, os papéis azuis que encontrei na XV outro dia também tinham o tamanho de postal, o último livro que eu editei com dois amigos também eram postais e tinha até espaço para botar selo e tudo mais; depois era só esperar que eles fossem enviados por aí, ou não... enfim, acho que de alguma forma inconsciente eu acabo pensando em postais. e costuma funcionar assim, as coisas ficam na memória, e depois, sem perceber, você já tá vivendo aquilo, sem se dar conta. e perceber um momento desses é incrível!

e tem uma coisa que tá na minha cabeça e tenho pensado sobre… que é a natureza (?) de publicações em geral. logo agora que tudo virou arte impressa e tem até curso pra fazer zine… eu gosto quando é simples, quando se juntam uma ou duas pessoas pra pensar e fazer aquilo existir pela necessidade de existir e pronto, quando é um diálogo. sem pensar muito em questões de tiragem, formas de impressão, locais de distribuição ou com a estética final e etc.

os zines são coisas extremamente pessoais e tem uma fragilidade ali do material, do papel de quem fez... é um processo que acontece e não poderia ser de outro jeito. por isso foi tão bom fazer os postais retornados com o luca. fizemos alguns, cada um era diferente, só existe um de cada e estão por aí, sabe-se lá por onde. além disso existe uma preocupação em documentar eles, pra que as pessoas possam ver depois, com calma, imprimir se quiserem… sem precisar comprar. essa vontade de ter um arquivo é fantástica! especialmente quando se trata de publicações que tendem a desaparecer por aí.

montamos tudo junto, não era que eu ia fazer colagens para os escritos dele, tudo era colagem ali. desde os escritos (que eu gosto muito) recortados mudando de contexto, até o papel, as fotos, os papéis vegetais com tudo ao contrário, os livrinhos em si… tudo mesmo. e essas publicações me dizem muito sobre o que eu tenho pensado e feito ultimamente. acho que é isso.


abraços,

T menos 3 horas 

De: Marcio Junqueira
Enviada: quinta-feira, 17 de outubro de 2013 00:23:54
Para: Lucas Matos
Assunto: postais retornados



luc,

segue a versão final do post sobre os postais retornados. cortei os dois últimos e-mails do material que te mandei ontem. eu cortei duas frases minhas no email para o luca também. deixo com você cortar ou não o trecho no final em que o luca fala do lançamento da revista-disco da bliss. isso ainda é segredo? para a semana no facebook eu acho que podíamos postar os postais mesmo. vi um desenho hj do liniers sobre postais e só lembrei dessa conversa. te mandei isso no facebook. faz uma revisão no texto antes da postagem. sorry pelo atraso, voltei do dentista irritado (a anestesia mexe com meu humor) e fui dormir. a resposta do material ainda não tinha chegado.

é isso.

bjs

m.

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