terça-feira, 18 de novembro de 2014

Carolina Aleixo: “Registro. do olhar E da fuga”

(20/06/13)



Num breve exercício de digressão me ocorre que não lembro de já ter ouvido Carolina se referir aos seus cadernos pela palavra “diário”. A maior parte das entradas é marcada por data; o conteúdo é de cunho essencialmente íntimo/emocional, por vezes descritivo; são escritos quase que diariamente, ainda assim não são exatamente diários. São cadernos.

Carolina Aleixo é carioca, estuda cinema na UFF, e há muito escreve cadernos.

O que interessa neles é a sua versatilidade e a não correspondência com qualquer fórmula previamente dada. Então, se são certamente diários, são também efetivamente espaços de experimentação e exercício artístico. Interessa nos cadernos da Carolina justamente a coexistência de poemas, desenhos, pinturas, trechos de roteiros, citações, letras de música, relatos, desabafos e uma série de outros registros entre. De algum modo, o que interessa nos cadernos é poder pensá-los não como arquivo, ou registro da vida que depõe sobre uma obra – interessam os cadernos como obra.

Neles, o jogo entre vida e poema, inclui o pensamento da vida como poema, dividido entre o que se consegue escrever e o que não chega a (não pode?) ser posto em palavras. O que se percebe nesse exercício é a sensibilidade de um olhar que se detém sobre aquilo que haveria de mais trivial e explora suas potencialidades de texto e imagem, na direção de uma pergunta pelos contornos emocionais de cada elemento.

“Enquanto preparava essa introdução, perguntei por inbox a Carolina:
"vc se refere aos seus cadernos como diário?”
"acho que sim”

Também, faz um tempo, escrevi algo que ia mais ou menos assim: “Quando Carolina entrou no quarto, as paredes explodiram em significado.”
Revirando seu caderno de 2013, encontrei o seguinte: “O problema de ficar sozinha no meu quarto é que eu transbordo de amor”.
Significado. Amor.

Melhor ouvir dos cadernos.

*

Segue aqui, uma seleção de registros, poemas e desenhos do Caderno de 2013 de Carolina Aleixo, seguidas do filme Os taxidermistas estão chegando, em parceria com Lucas Paes Leme.

Técnicas utilizadas: giz de cera sobre papel; caneta sobre papel, lápis de cor sobre papel.

Thiago Gallego

***



lp


você fuma os seus cigarros matinais e eu te observo
sua rotina diária inabalável
você se senta curvado de frente para o computador
seu café na caneca do pink floyd
ao fundo, jim morrison me olha
eu olho pra você

.

eu acordo com você e
fico feliz pelo calor que emana
das correntes minúsculas que fluem entre
os nossos corpos relaxados na cama

eu quero viver no
eterno acordar de olhar para o lado e
ver você me sorrir
e saber que
por mais um dia
nós estamos bem

por mais um dia
cada dia é um dia

.

nós dois
a saveiro branca
uma estrada verde azul infinita e eu
canto a plenos pulmões
i was alone a took a ride i didn't know what i would find theeeeeeeeereeeee

eu nunca amei tanto na vida
eu sinto medo

.

a desarmonia
as correntes minúsculas que fluem parecem que não fluem
a gente não se entende
parece que pela primeira vez nem a música nos salva
nem a literatura
nem os passarinhos
...

and at the final moment i cried
i always cry at endings





*

Eu nem me lembro da primeira vez que eu vi seus olhos, mas no fundo já nem me importa, porque o que eu me lembro da primeira vez que eu vi seus olhos eu nunca esqueci. Eles me diziam que permaneceriam acesos para todo o sempre e que eu os encontraria quando não queria e queria e mesmo quando eu não queria eu queria.

Eu detesto essa voz que soa na minha cabeça e diz que eu sou incapaz. Os seus olhos são essa voz.

*








*

autorretrato


sol na cabeça preta
a pele preta cabelo preto ideia preta
mergulho gelado azul
tudo nada
nada sou eu
que
nado
no gelado azul imenso
pele preta cabelo preto ideia preta
gelado azul

queria ser peixe preto barbatana preta guelra preta ideia preta
peixe preto sabe
o segredo
que eu sei
que o único lugar
possível
de se ter paz
é o gelado azul imenso

*

 “E se agora eu não fosse mais eu, mas fosse a Hilda Hilst?”




*

o universo e o infinito são bregas. eu sou brega


as correntes minúsculas que fluem do meu corpo para o seu corpo dos nossos corpos de quando descobrimos a origem do amor as correntes não são minúsculas mas fluem do meu corpo para o seu corpo e do seu corpo para o meu corpo dos nossos corpos em órbita no universo e as correntes que fluem do universo para os corpos dos corpos para o universo são as correntes de energia que provam a mim que a energia boa do universo é infinita mesmo que venha a ter um fim como tem todas as coisas infinitas ou não
as correntes minúsculas que fluem imediatas e eternas sua perna minha perna seu braço meu braço seu sorriso e o calor

(esse final foi na verdade escrito pelo bukowski)

*

[tem uma citação de uma música do lobão o que talvez não seja tão legal nesse momento da história dele]

*

Crônica


Os acordes da sua música favorita. Não existia mais nada no mundo além da certeza da minha presença naquela sala escura e aquele guitarrista, na minha frente, dedilhando intensamente os acordes da sua música favorita. E os meus olhos ardiam, porque tudo o mais era falta. E nem mais de chorar sou capaz. Durante aqueles minutos insanos, aquele solo de guitarra, todas as minhas incertezas planavam por ali, e eu gritaria, subiria no palco, se fosse necessário para me fazer acreditar em mim: eu fiz a coisa certa. Depois, aquela mão no meu ombro e sabia que eu era pura rigidez, e que olhava para frente com os olhos vidrados, porque tomava consciência do que teria daqui para frente. E depois daquela imagem me torturar até o final do solo eterno eu só pude concluir que tinha feito a coisa a certa mesmo. Que poderia subir ao palco e gritar "Tu serás feliz, Bentinho!", mesmo que Bentinho seja você. E enquanto minha mente estava bem longe de mim, o meu colo sentia o peso daquela cabeça e os meus dedos sentiam aquele cabelo macio. E eu quis desesperadamente que fosse o peso da sua cabeça, que fosse o seu cabelo seco aquele que meus dedos sentiam. Então lembrei: eu fiz a coisa certa. Na eternidade desses dias que parecem não terminar nunca, eu sou impiedosa e dedico todo o meu amor a mim.

*

Tarde em Paris

Era uma tarde fria, tão fria quanto aquela tarde fria que eu gastei pensando e você e meu corpo congelava do frio de pensar em você mas não estar com você. Era uma tarde ainda mais fria que essa. Não sei o quão fria pode ser uma tarde em Paris mas você sabe e eu sei o que é uma tarde fria com você ou uma tarde fria sem você mas pensando em você o que torna a tarde ainda mais fria. Mas nessa época eu já sabia como é uma tarde fria em Paris e pensar em você já nem doía mais, você era só uma recordação sorridente do meu desequilíbrio juvenil e eu era só uma recordação da sua indecisão juvenil. Mas eu ainda te amava como te amo e como se deve amar uma recordação sorridente tão bonita quanto aquela cara de bobo que você faz e é justamente o motivo pelo qual eu gosto tanto de você. E a gente se encontrou naquela tarde fria em Paris, e a gente sorriu e conversou e sentou naquele café e conversou ainda mais e eu comecei a pensar sobre o porquê da gente nunca ter dado certo mesmo e por que eu me senti pisoteada por você tantas vezes e em todas as vezes em que eu passei correndo pela Presidente Vargas chorando por sua causa. E a resposta óbvia é que eu sou uma boba. Mas naquela tarde em Paris eu não era mais boba e nada disso importava mais, porque naquela tarde você me olhou com a sua cara de bobo e eu só podia mesmo sorrir, porque é tudo o que posso fazer quando você me olha assim. E era a sua cara boba em Paris. Aquele momento em que o meu sorriso e a sua cara boba finalmente ficaram em harmonia e você nem ao menos sabe que ele existiu.

*





*

Comida

Ham
Burger
(de fraldinha)
Beter
Raba e
Cenou
Ra!
Saaaal
Mão
Mac
Ar
Rão
  A
Bolo
Bolognesa
Fran
Go +
Abobo
Bobo
Abobo
Ra!
Moran
Go
Ga
Fr
An
Go na
Mo
Ra
Ng
 A
Uma historia
De amor
Através
Dos
Tempos

*

esse é o poema que
eu disse que
nunca te
escreveria
se eu escrevesse era porque
estava realmente
apaixonada
quando o disse
estava
mas agora
não estou.





*

1.
Thiago abre sua caixa de correios
Procura por um cartão postal
Imagina que agora vive em um país distante
Que é hora gelado
E hora bem quente.

2.
Thiago procura por um cartão postal
Onde o seu antigo
Rosto de agora
Mostra seus olhos de girassol –
Que são de girassol agora antes e depois e sempre –
Que o encaram
E dizem
“Thiago, não desanime
Não se entregue, Thiago
Se mexe, Thiago
Não se perca, Thiago
Confia em mim
Mas, Thiago, se liberta de mim”.

3.
Aconteceu da caixa de correio estar vazia
Porque correspondências não chegam ao país distante
Em que agora Thiago vive.
Aconteceu do seu país distante
Ser, na verdade, uma ilha
Isolada.
Aconteceu do mar ser gelado e revolto demais.
O correio não chega
Mas os meus braços chegaram
E descobriram que os seus olhos
Que fazem girar o sol
Aquecem toda a ilha.

Agradeço aos meus braços.

*




*

Conjuntivite

eu amo você
com o meu pulmão
que agora tenta tão
insistentemente
pular do meu peito e
viajar até a holanda

ou me matar sufocada

meu pulmão congestionado
de amor
catarro
e saudade

*

-~-~-~-~

escrevo um ----
para explicar o ~~~~ que sinto
----
~~~~
----
~~~~
e ele não vem
porque o
não pode ser dito
ou medido
ou curado
até que eu tenha o que espero
e o que espero é:






  





(o infinito)

*

escrevi poemas que não escrevi

I.
não lhe importa as desmedidas dos governos
os protestos violentos aqui ou na turquia
porque de violento já basta
o seu peito
que dói ao ouvir as notícias que dizem
que o japão está cada vez mais longe da escócia
e os dois não se encontram no brasil


II.
da primeira vez que vi seus olhos
eles não me disseram nada
porque não os vi
desde a primeira vez que vi seus olhos
passei a vê-los em qualquer lugar





(Caderno de 2013)

***

OS TAXIDERMISTAS ESTÃO CHEGANDO
(por Carolina Aleixo e Lucas Paes Leme)




[o filme é melhor aproveitado em fones de ouvido]

sábado, 8 de novembro de 2014

Lenora de Barros: Qualquer diferença é mera semelhança (Parte 2 de 2).

Na segunda semana de postagens dedicada ao trabalho de Lenora de Barros, procuramos selecionar um conjunto de reflexões que se debruçassem sobre dois de seus procedimentos fundamentais em sua maneira de propor o fazer artístico: o desdobrar e o deslocar. De algum modo, se tais aspectos podem ser rastreados desde o seu trabalho em revistas como Poesia em Greve e suas colaborações em periódicos nas décadas de 1970/1980 que ecoaram e foram retomadas em exposições, a partir de desdobramentos (em novos formatos, com nova organização dos elementos visuais ou dinâmicos, etc.) operados na década seguinte, isso se intensifica a partir da sua atividade na coluna semanal ...umas, desenvolvida entre 1993 e 1996 dentro do espaço de um caderno cultural do Jornal da Tarde. O material das colunas, efetivamente, chegou a ser tema de exposição recente, entre março e maio deste ano, no espaço Pivô.
         Nesse sentido, talvez a pergunta que mais inquiete, e que por isso de maior interesse, seja justamente a pela passagem – não só a passagem de um jornal para um espaço de reflexão artística (como a coluna sobrevivia, dialogava, recolocava os temas cotidianos da reportagem cultural), mas também dos sentidos, de imagens sobre cabelos e cortes até diversas ordens de experimentação com cartazes de Procuro-me/Procura-se. O que se insinua, na colocação do deslocamento como gesto fundamental da reflexão artística, é uma espécie de recusa dos signos tradicionais da identidade. Toda obra é um pouco Proteu, e existe para assumir novas formas num movimento vertiginoso que convoca a cada momento diferentes formatos, meios, mas também diferentes modos de percepção e de relação com o corpo (da artista, do espectador, etc.)
         As proposições estéticas de Lenora talvez possam ser tomadas não como proposições estáveis, no sentido de encerrarem um esforço conceitual e logicamente estabelecido acerca da natureza do objeto artístico, mas como experiências sobre a duração específica da obra de arte, e seu modo de registrar ou receber o jogo contínuo entre semelhança e diferença. A passagem de um espaço a outro condensa e potencializa transformações que ocorreriam com a passagem do tempo, por exemplo. A passagem de um meio para outro deixa a nu, por outro lado, a insistência de certos temas sobre o corpo, e sobre o pensamento artístico – mudar de meio é escapar da estabilização, engessamento da ideia. Toda a passagem implica uma mudança de perspectiva – de uma ponta a outra, de um jornal a sala de exposição o que muda é o olhar.
         Nessa postagem, apresentamos 3 excertos da dissertação ...umas, de Lenora de Barros: trânsitos entre coluna de jornal, proposição artística e arquivo, uma entrevista realizada pelo espaço Pivô, quando da exposição do material, e mais um conjunto de imagens com poemas e fotografias de Lenora scaneadas de Relivro (2012) que reúne sua obra, fotos das obras Não me mostre (2005), Duas operações (1994/2004), silêncio e cala boca (1990/1996), There is no utopy like a place – junto com link para áudio de performance vocal – (1994), e uma entrevista em vídeo sobre sua obra.
        
*

Reprodução coluna "...umas" Corpos/Dupla Face (s/d.)

Coluna "...umas" - várias (Imagem Exposição no Espaço Pivô (2014))


Três excertos da dissertação ...umas, de Lenora de Barros: Trânsitos entre coluna de jornal, proposição artística e arquivo (Eduardo de Souza Xavier).

Este estudo tem como objetivo analisar a coluna de jornal denominada ...umas, assinada por Lenora de Barros no Jornal da Tarde (JT), ligado ao Grupo Estado, entre 1993 e 1996, ...umas foi a coluna experimental na qual a artista articulava imagens e textos oriundos de variadas situações, como da mídia, do cinema, das histórias em quadrinhos, do universo das artes visuais, da poesia e do próprio fotojornalismo e onde também veiculava suas performances, poemas visuais, escritos e outras proposições. É interessante que neste jornal, dedicados a noticiar e transmitir informação, Lenora de Barros tenha estabelecido um espaço de criação e experimentação intimamente ligado às questões desenvolvidas em sua trajetória artística, publicando ali suas obras de forma integral, ou em fragmentos, junto com comentários e imagens desdobradas de obras de outros artistas.
         Publicada, semanalmente aos sábados, ...umas ocupava parte de uma página do suplemento cultural e de entretenimento do JT. A coluna era publicada sempre no canto esquerdo da página do jornal, medindo 51,5 x 10,5 cm, sendo que sua altura era equivalente à própria página do jornal, enquanto sua largura ocupava cerca de 1/3 da página. Neste espaço, Lenora de Barros apresentava também comentários sobre a história da arte, misturando senso crítico e ironia ao abordar a obra de artistas contemporâneos de importância no cenário nacional e internacional. Em função de seu caráter experimental, pode-se considerar que ...umas estava distanciada da habitual crônica escrita nos jornais, pois nela a artista desenvolvia a criação em um espaço gráfico livre, que articulava imagens, textos, palavras e poesias, unidas por um tema distinto a cada semana.
         ...umas estabelece uma relação intensa com outras obras de Lenora de Barros, demonstrando o quanto esta experiência, ligada inicialmente a um meio de comunicação, foi incorporada na sua trajetória. Muitas das proposições apresentadas na coluna foram desdobradas em obras, apresentadas em espaços expositivos de artes visuais depois da publicação de ...umas. São estes deslocamentos entre os espaços nos quais a artista apresentou suas proposições que motivaram a realização deste estudo.

[...]

Sob a perspectiva dos deslocamentos e desdobramentos na obra de Lenora de Barros, é marcante o exemplo de Procuro-me, obra da artista que foi inicialmente publicada na edição de ...umas intitulada Formas Capilares. Em Procuro-me, a artista apresenta autorretratos nos quais está com a mesma expressão de espanto, mas com diferentes estilos de penteado. As imagens foram feitas em um software de montagem de imagens, disponível em salões de cabeleireiro em São Paulo e nelas, a repetição dá lugar à fragmentação e à perda de identidade, pois a artista está sempre igual, mesmo mudando constantemente sua aparência. O próprio contexto para o qual era utilizado o software – um arquivo de penteados já prontos para o usuário automaticamente escolher e mudar o seu visual – é pensado nesse sentido em Procuro-me.
         Quatro de aproximadamente 40 imagens foram publicadas com o título Hair Styles na coluna ...umas. Junto a elas, imagens ligadas ao tema “cabelo”, como a obra Xipófagas Capilares (1994), de Tunga; 1978-1988 (1990), de Lorna Simpson; Escadas de Metrô (1957), de Leda Catunda; uma fotografia de 1921, feita por Man Ray, de Marcel Duchamp com um cometa raspado em sua cabeça; e da mulher com os cabelos mais longos do mundo na época.  (...) inicialmente, a questão centrou-se na temática do cabelo como metáfora para questões como entrelaçamento, união e continuidade.
         Em 2001, sete anos após a realização das imagens iniciais, Lenora de Barros veiculou esta proposição novamente em um jornal.  Motivada pelos ataque às Torres Gêmeas ocorridos naquele ano, as imagens foram publicadas no formato do cartaz de terrorista procurado, veiculado pelo governo norte-americano na contracapa do Caderno Mais!, da Folha de São Paulo. Mesmo que esta versão relacione-se, em certa medida, ao acontecimento histórico do 11 de setembro de 2001, Procuro-me instiga diversos questionamentos que vão além deste fato, os quais viriam a ser desenvolvidos pela artista em desdobramentos posteriores, direcionados para a questão da perda e da procura da identidade.
         O formato do cartaz foi mantido quando Lenora de Barros deslocou estas imagens para um espaço expositivo. Em 2002, no Centro Cultural Sérgio Porto, no Rio de Janeiro, a artista realizou a exposição Procuro-me, na qual apresentou um mural com os cartazes, uma instalação sonora e uma vídeo-performance. A artista distribuiu cartazes pela cidade, fixando-os em muros e distribuindo-os para as pessoas na rua. No âmbito desta exposição, a seriação expande-se no espaço expositivo através da repetição dos próprios cartazes e, nesse sentido, a artista procura a si mesma, nas suas diversas representações presentes nas imagens. Do mesmo modo que cartazes espalhados na cidade por vezes buscam pessoas desaparecidas, os cartazes de Procuro-me parecem indicar a busca de uma identidade perdida e fragmentada frente a uma sociedade composta por multidões de pessoas que se assemelham e que buscam, a todo instante diferenciar-se, por exemplo, através do próprio visual ou do corte de cabelo.
         No mesmo ano, os cartazes expandem-se para ocupar a fachada do Centro Cultural Maria Antônia, em São Paulo, neste caso, voltados para o lado de fora do espaço de exposição provocando quem passasse pela rua. O curioso é que, ao serem expostos na fachada do prédio, os cartazes foram pichados por um grupo chamado Art-Atack, que era contra proposições de arte contemporânea e fazia, inclusive, projetos de suas ações, tendo enviado cartas para Lenora de Barros, Lorenzo Mammi (então diretor do Centro Cultural Maria Antônia) e Fabio Cypriano (que havia noticiado a exposição). Nestas cartas, por exemplo, o grupo planejava tirar dos cartazes a sílaba “pro” de “procuro-me”, formando a palavra “curo-me”, em uma analogia com uma suposta cura da arte contemporânea almejada por seus integrantes.
         O trabalho foi outra vez alvo de um ataque e teve diversas partes recortadas. A partir disso, Lenora de Barros resgatou o trabalho e fez uma espécie de restauro, imprimindo novamente as palavras que haviam sido pichadas e transformando o “procuro-me” em “procura-se”, já que a autoria do segundo ataque não havia sido confirmada. Dois anos depois, com o material que sobrou dos cartazes pichados e recortados, a artista elaborou uma nova proposição, apresentada na exposição Retalhação, em uma das salas do Centro Cultural Maria Antônia, em 2007.
         Como se observa, o exemplo destes deslocamentos e desdobramentos indica questões que estão muito além da técnica ou formato nos quais materializam as proposições artísticas. Os desdobramentos de Procuro-me são extremamente significativos, pois demonstram o quanto o espaço no qual se coloca determinada proposição influencia na sua percepção e também na relação com o público. Nesse sentido, quando exposta na fachada do espaço de exposição, os cartazes tiveram um destino que não estava previsto pela artista. Ao resgatar o trabalho, a artista acabou agregando sentidos que talvez não fossem aferidos aos trabalhos sem os ataques, por exemplo.
         Nota-se que os entendimentos desta proposição, que tem por base o mesmo conjunto de imagens, modifica-se de acordo com o ambiente no qual é apresentada, indicando a necessidade de uma maior contextualização quanto à situação de cada um de seus desdobramentos. Na mesma medida em que a artista se procura nas imagens dela mesma, se poderia indagar onde está a obra, dentro destes múltiplos deslocamentos que compõem. A resposta para esta questão não seria única, pois é justamente nos espaços entre um momento de apresentação e outro que a proposição se faz e se modifica, questionando o caráter único da obra de arte bem como sua autonomia em relação ao espaço de exposição.
        
[...]

         De maneira a evidenciar a relação entre ...umas e arquivo, é trazido a seguir um depoimento da artista, no qual relata o modo como realizou a coluna.

“Quando eu vivi a experiência da coluna [...], fui criando um método e trabalhava muito com memória. Então, eu começava com um tema, por exemplo, ‘formas capilares’, aí vinha o Tunga. Então, eu ia aos arquivos do Jornal da Tarde e pedia a pasta ‘cabelo’, daí vinha cabelo, cabeleireiro, etc. Era um trabalho que eu fiz muito ali, no arquivo do jornal. [...]. O meu ateliê era um pouco o banco de dados lá do Jornal da Tarde. [...] Mas, naquele tempo, eu não tinha tanta consciência de que aquilo pudesse gerar outras obras. Foi só um tempo depois que eu parei de fazer as colunas, que comecei a pinçar coisas ali. [...] Vendo de longe, se eu fizesse a coluna agora, acho que talvez não haveria diferença entre a galeria e um espaço de exposição. Porque alie era um exercício criativo”. (Barros apud Xavier, 2011, p. 39).

         Este depoimento de Lenora de Barros sobre o processo de criação de ...umas aponta para o uso do arquivo em sua obra, que pode ter dois direcionamentos. O primeiro diz respeito ao método de elaboração da coluna a cada semana, realizado em sua maioria nos arquivos do JT. Nesse sentido, a coluna configura-se como uma reunião de fragmentos selecionados pela artista que, interrelacionados, formam novas questões unidas pela temática de cada coluna. Já o segundo direcionamento refere-se à incorporação das edições de ...umas em sua prática artística posterior, na medida em que a artista se utilizou de ideias, imagens e problemáticas ali apresentadas, desdobrando-as em novas circunstâncias de apresentação.
         Os dois aspectos estão formalmente ligados ao uso do arquivo na arte contemporânea e fazem parte de uma conjuntura que na última década ganhou força no cenário artístico. O arquivo como uma maneira contínua ou descontínua de ordenar elementos fragmentários do passado encontra-se em diversas abordagens na teoria da arte no cenário atual. Do mesmo modo, a forma do arquivo pode ser encontrada nas próprias obras, através de procedimentos como catalogação, documentação e acumulação de materiais, imagens, objetos, ou mesmo fato descritos.

(XAVIER, Eduardo de Souza. ...umas, de Lenora de Barros: trânsitos entre coluna de jornal, proposição artística e arquivo. Dissertação de Mestrado. UFRGS. Porto Alegre, 2012).

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Entrevista sobre Exposição Umas e outras (PIVÔ – 2014)



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De Relivro (2012)








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Não me mostre (2005)







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Duas operações (1994/2004)



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silêncio e cala boca (1990/1996)



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There is no utopy like a place (1994)

Acrílica sobre Mdf, 60 x 50 cm, díptico utopy


Para ouvir a performance vocal da obra, clicar aqui


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Entrevista Entrelinhas



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