quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Ela assopra: correspondências de Lygia Clark

Antes dessa postagem, o último contato que tive com a obra da Lygia Clark foi um vídeo documentário em que aparecia a mesma apresentando sua obra e detonando suas impressões de arte, sua fascinação pela observação e nitidamente sua grande artimanha de articular seu pensamento em palavras vivamente selecionadas. Lygia falando era uma obra-poema-teatro (bem ao gosto neoconcreto), pintava e bordava aquelas palavras. Fiquei sem dormir, desconhecia esse lado de sua obra. Para além das grandes performances e obras queremos mostrar alguns escritos de Lygia Clark. Escolhemos três cartas endereçadas uma a Mondrian e outras duas a Hélio Oiticica.

 Não interessa nesse momento articular apresentações formais de obra e trajetória de Lygia Clark apesar dos links que serão sugeridos ao longo da semana na nossa página do facebook, mas sim viajar “desordem de ordem” que Lygia nos lança. Caetano Veloso em entrevista a Suely Rolnik (http://www.bcc.org.br/filme/arquivo-para-uma-obra-acontecimento/037834) relata o que presenciou das experimentações de Lygia chegando até a fazer terapia com a mesma. A experiência com os objetos que ela relata catar na rua observada na carta a Helio passando pelo corpo-experiência como objeto artístico e a arte potencializada através de um atendimento ao outro.

Essas cartas recolhem trechos únicos de como a vida e obra de Lygia se misturam, de como sua afetividade está entrelaçada a sua criação, de como há um olhar atento ao outro, e seu poder de observação de si, forma um cafuné nas inquietações de todos nós. Ela não dá nome aos abismos, mas divide suas pontes nas obras plásticas e escritos.

                                                   



Lygia Clark
Carta a Mondrian
Maio 1959

Hoje me sinto mais solitária que ontem. Senti uma enorme necessidade de olhar o teu trabalho, velho também solitário. Dei com você numa foto fabulosa e senti como se você estivesse comigo e com isto já não me senti tão só. Talvez amanhã possa dar também de meus olhos, de minha solidão e de minha teimosia a alguém que será um artista como eu ou talvez ainda mais, como você. Não sei para que você trabalha.  Se eu trabalho, Mondrian, é para antes de mais nada me realizar no mais alto sentido ético-religioso. Não é para fazer uma superfície e outra... Se exponho é para transmitir para outra pessoa este “momento” parado na dinâmica cosmológica, que o atrista capta. Você que era um místico deve quantas e quantas vezes ter vivido “momentos” como este dentro da vida, ou não?

Dizem que você detestava a natureza – é verdade? Pois eu senti hoje essa transcendência através da natureza, na noite, no amor – como você poderia ter raiva da natureza? Você acha que a obra de arte é o produto de duas polaridades, que é a dinâmica da vida humana? Você estava preso à terra tão profundamente e o voo no sentido da verticalidade era sua medida?

Pois a natureza me alimentou, me equilibrou quase que de uma forma panteística. Mas com o tempo, numa outra crise, já isto não adiantou e o “vazio pleno”, a noite, o silêncio dela que se tornou a minha moradia. Através deste “vazio pleno” me veio a consciência da realidade metafísica, o problema existencial, a forma, o conteúdo (espaço pleno que só tem realidade em função direta da existência desta forma...).

Mondrian: você acreditou no homem. Você fez mais: num sonho utópico, estupendo, pensou em eras vindas em que a própria vida “construída” seria uma realidade plástica...

Talvez isto te salvasse da tua própria solidão. Pois eu, meu amigo, não sonho porque não acredito. Não por excesso de realismo mas para mim o coletivo só existe na razão desta desordem de ordem prática e social. Se o homem não pode sentir como é importante esse desenvolvimento interior – chamemos de uma forma que nasce com a pessoa como um punho fechado, talvez se abrindo no primeiro tempo com o próprio nascimento – então ele jamais poderia atingir sua plenitude como a rosa que se abre dentro do seu próprio tempo e morre amorosamente realizada, inteligente e feliz...

Mondrian, um segredo que vou te contar: às vezes, eu me sinto tão desesperada , porque no momento em que “checo” a solidão, o frio, o “medo do medo” me envolve com todos os seus braços e procuram fechar este novo tempo que desabrocha na minha forma interior, amassando pétalas frescas e delicadas que levarão novo tempo para se abrirem como se abre um olho devagar, depois de ter levado um bom murro.

Mondrian, de sua força pode me servir, seria como o bife cru colocado neste olho sofrido para que ele veja o mais depressa possível e possa encarar esta realidade às vezes tão insuportável – “o artista é um solitário”. Não importam filhos, pois dentro dele ele vive só. Ele nasce dentro dele, parto difícil a cada minuto, só irremediavelmente só. Você seria talvez a chuva que molha a flor que nasce no areia ou no asfalto, se você prefere, pois é cidade e não natureza.

Você hoje está mais vivo para mim do que as pessoas que me compreendem, até um certo ponto. Sabe por quê? Veja só se tenho razão ou não. Você já sabe do grupo neo-concreto, você já sabe que eu continuo o seu problema, que é penoso (você era homem, Mondrian, lembra-se?). No momento em que o grupo foi formado havia uma identificação profunda, a meu ver. Era a tomada de consciência de um tempo-espaço, realidade nova, universal como expressão, pois abrangia poesia, escultura, teatro, gravura e pintura. Até prosa, Mondrian... Hoje a maioria dos elementos do grupo se esquece desta afinidade ( o mais importante) e querem imprimir um sentido menor a ele, quando preferem que ele cresça sem esta identidade para mim imprescindível, numa tentativa de dar continuidade superficial este movimento. Você bem sabe que, no cubismo, as formas foram várias, mas no sentido mais profundo que era esta nova realidade espacial, foram respeitadas. Só o tempo a meu ver traria continuidade real a este movimento.

Agora, velho, simpático mestre, diga-me com toda a franqueza: meu desejo é deixar o grupo e continuar fiel a esta minha convicção, respeitando a mim mesma, embora mais só que ontem e hoje, eu serei amanhã, pois as pessoas que se aproximaram um dia, há bem pouco tempo, se afastam desorientadas sem enfrentarem a dureza de estar só num só pensamento, sem resguardar o sentido maior, ético, de morrer amanhã, sozinha mas fiel a uma ideia. Diga, meu amigo: é duro, é terrível porque é deixar de ter, mesmo sem se afastar realmente do grupo, pois já se fragmentou a unidade, a verdade dura e terrível feita a sete para se multiplicar em realidade pequenas – reconfortantes por certo, a centenas.

Hoje eu choro – o choro me cobre, me segue, me conforta e acalenta, de um certo modo, esta superfície dura, inflexível e fria da fidelidade a uma ideia.

Mondrian: hoje eu gosto de você.



                                   


Lygia Clark
14, RueCassini, Paris, 14 ème.
21.9.1968

Meu caro Hélio,

Custei muito a te escrever por vários motivos, mas aqui estou eu, como sempre, com muitas saudades suas. Comecei já a trabalhar catando pedras nas ruas, pois dinheiro não há para comprar material! Uso tudo que me cai nas mãos, como sacos vazios de batatas, cebolas, plásticos que envolvem roupas que vêm do tintureiro, e ainda luvas de plástico que uso para pintar os cabelos! Já fiz alguma coisa interessante, como um capacete feito de capa de um disco que tinha aqui, com duas luvas que saem diretamente da cabeça. Tem um plástico sensorial que você, depois de meter as mãos nas luvas e o capacete ficando com as mesmas ligadas à cabeça, você toca na altura dos olhos esse plástico cheio de ar. Fiz também duas luvas de plástico coladas por um dedo e você vive a mão como uma totalidade. Fiz também um plástico ultra erótico com um pano de guarda-chuva velho, o que dá um enorme mistério e é mais erótico que todos os outros.

Ontem Argan me telefonou, pedindo para vir aqui pois, diz ele, quer comprar coisas... Fiz um bom contrato com uma galeria na Alemanha que tem por trás o Dr. Kulterman que é figura de maior projeção aqui na Europa e a mesma galeria (Thelen) já pediu exclusividade para toda a Alemanha.

É para essa galeria que quero te indicar, pois estarás muito bem representado lá, depois de Londres. Para isso preciso de material fotográfico, slides, etc., pois devo ir para a Alemanha em fins de outubro: a exposição será em princípio de novembro. O Givaudan vai começar por fazer múltiplos do Bicho de bolso e também espetáculos das roupas na rua (ideia dele). Depois fará mais coisas... sugeri ao Jean Clay de fazer um Robho* especial sobre você. Ele alegou que tinha pouco material para ele ou para mim o mesmo, pois é importantíssimo um número nessa revista. O meu está atrasado, pois as traduções do meu livro ficaram péssimas... Estou fazendo com o Jean Clay tudo de novo. Ele está fora de Paris, parece que na Argentina. Se ele for aí não deixe de lhe dar bastante material para o seu número. (...)

Aqui estou eu como sempre, pronta a fazer por você tudo o que for possível como sei que farias o mesmo por mim. Conheci dois grandes elementos da ExplodingGalaxy: Miky Chapman e Edward Pope. Ainda não conheci Medalla. Mas conhecendo o seu trabalho como conheço e ainda tudo o que ele pensa, creio que são as três personalidades de maior importância por aqui. Ontem vi uma espécie de documentário sobre o México. Tem-se a impressão de que é um povo sempre debruçado sobre o seu passado. Essa vitalidade brasileira pura, ingênua e maliciosa, sem passado, ainda é o que de mais importantes temos! O mexicano tem uma expressão ultra-dramática e toda festa que fazem são verdadeiros psicodramas em que a morte é sempre o moto contínuo. Talvez o filme fosse sofisticado, pois foi feito por um jovem francês. Estou cada vez mais convencida que o futuro pertence a um povo subdesenvolvido. A absoluta ausência de sentido do povo aqui é notável. Fora o France Soir que é o maior jornaleco daqui e que lembra um pouco os nossos jornais populares, o resto é silêncio. Televisão chatérrima, só é boa para aprender geografia, o que ando fazendo.

Falta um Chacrinha, uma Dercy e um casamento na TV. O frio já começa estou toda enrolada em xales e cobertores. Imagine no inverno... Eduardo perdeu ou vendeu, sei lá, o sobretudo do pai, que maçada! Quando vieres a Londres vou arranjar dinheiro para comprares um lá que é mais barato que no Brasil ou aqui na França, onde tudo é caríssimo! Imagine que tive que ir a um dentista, escultor frustrado que me pediu a bagatela de mil dólares para consertar a minha articulação que está toda fora de circuito. É um louco varrido, querendo me colocar três jaquetas sem precisar, por pura estética, querendo fazer às minhas custas um chef d’oeuvre... Já sarei da pelada nervosa. Também tanta coisa acontece ao mesmo tempo: morte do velho Aluísio, fiquei viúva alegre, invasão da T. pelos putos dos russos e ainda meu balão da Bienal explode!

Ainda me considero com muita sorte de ter sido tão pouca coisa depois dessa operação monstro que aí fiz. Outro dia no banho, vendo a minha “cesariana”, tomei consciência de que foi preciso fazer a Roupa-corpo cesariana para fazer em seguida a minha... acho que sou a mulher mais maluca do universo, amém.

Vou comprar para mim uma pistola de gás para poder sair à noite sozinha pois as mulheres aqui são atacadas por tarados sexuais aos montes. Se a gente tivesse a certeza de sair da aventura com vida talvez não fosse tão dramático, pois... “guerra é guerra”, como dizia a velhinha na anedota. Por falar em piada, lá vão duas: Uma vampira falando para a filha: - Toma a sopa rapidinho, senão coagula... Outra: Num velório de um anão, o grupo que estava lá saiu pela terceira vez para tomar um café num boteco ao lado. Entra o vigia do velório e diz: - É essa a última vez que vocês saem da sala, pois pela terceira vez tirei o anão da boca do gato... Terríveis, não é? Vi um grande filme húngaro: Le rougeetleblanc.  Quase um documentário, seco, terrível e belíssimo!

Ontem fui a um cinema com a Giselda (...). O Mário me paga esse abacaxi que ele me botou pela proa. É chatérrima e além do mais burra pra valer. Enfim, nas horas amargas de falta de companhia total eis-me aqui chupando as últimas jabuticabas de um prato vazio onde sobraram as mais mixas e podres.

Continuo sozinha e parece que para sempre. Isso não me deprime em nada. Por outro lado estou usufruindo numa grande alegria toda essa liberdade, longe de problemas de filhos, desse ambiente daí que às vezes vira até sufocante.

Já bati o queixo aqui por crise, angústia, mas semprelúcida para saber que aí bateria da mesma maneira e que sou uma pessoa fundamentalmente só e terei que me aguentar sozinha. Estou começando a amarrar coisas e tive muita crise quando conheci o terceiro membro da Exploding que se chama Eduardo- misto de homem e bicho. Tudo cheira, prova, lambe e de uma sensibilidade tão aguda que me botou toda de antenas para fora de mim mesma, em relação a sua presença. Me arrebentou toda por dentro mas eis como sempre me recompondo, me amarrando já de outra maneira com outras aberturas. Fui deflorada na alma, mas o corpo continua virgem. Muito bacana você saber que pode ser jogada nessa altura da vida para o espaço embora caindo na terra abra um terrível rombo e viva um pouco como um abismo sem fundo. Foi graças a isso tudo que pude recomeçar a trabalhar, pois tive uma enorme e profunda necessidade de expressão. Escreva-me e conte como vão os amigos e também os conhecidos. Diga-me quando vens a Paris também. Estou radiante com a perspectiva da vinda de Mário e Mary. Como também em relação à sua vinda... Será espetacular.

Muitos abraços ao Raimundo que adoro. Mil beijos para você.

        Clark                       






Lygia Clark 
para Helio Oiticica 
Paris, 17.5.1971


Queridíssimo:

         Até que enfim veio uma carta comunicação me dando como sempre enorme alegria e também uma enorme saudade de você. O que gostaria de comunicar é tão simples e tão complexo, como a própria realidade-vida, que nem sei por onde começar. É por essa razão que gosto das novelas em televisão, nas quais as coisas nunca acabam de acontecer, como a vida. Comigo é sempre assim – enquanto eu vivo mil voltas em volta da Terra o resto do pessoal daqui está marcando passo, com raras exceções, indo para trás, e nada é dinâmico, tudo é pausa e morte. Na própria vida nota-se o processo. O quotidiano, que para mim é sempre mágico, rico e nova aparência, para eles é vazio, a repetição, e nada representa como maturação. Até acho que invento minha própria vida, que a recrio todos os minutos e ela me recria à sua imagem; vivo mudando, me interrogando maravilhada, sem controle de nada, dos mínimos acontecimentos, me deixando fluir, despojada de quase tudo, guardando somente minha integridade interior. Me sinto como caldeirão da própria porra, processo, me sinto toda lá até antes do nascer e acho que é nesse misturar que hora aparece a menina, o leite na mamadeira, a adulta-adúltera, a louca, a velha de 5 mil anos de idade, a atual, a equilibrada que sendo atual nunca é uma só e a consciência não é de colar pedaços que foram quebrados com culpabilidade mas o recriar-se inteira a partir de novas experiências antigas como o próprio nascer, ou até antes. Sem nada controlar, eis a contradição, me reconstruo, faço minha biografia, eis-me qual obra antes projetada para fora dividindo pessoa e coisa, hoje uma só identidade. Onde a patologia, onde a saúde, onde a criação. Nada sei. O não saber é lindo: é a descoberta, é a aceitação da mistura das situações de "decalagens", das integrações do recomeço, do não-tempo linear, da percepção pura da descultura que nunca tive, fundando a minha própria, que é posta em questão sempre. A descoberta nunca para e às vezes penso que viver uma vida é viver todas as fases anteriores da humanidade. Depois de Carboneras, na redescoberta do meu Eu deixando de ser “o outro”, tudo mudou em mim. Perdi o “estado de graça” vivido por mim assim e catalogado provavelmente pelos outros intelectuais de ninfomaníaca ou prostituta pelos burgueses e comecei a ter sonhos belíssimos com “o casal” integrador dessa imagem que fora por mim tão quebrada e destruída na infância. Depois o acordar, o trauma de se estar só, cinquenta anos sem possibilidade de realizar casal com alguém. O dormir passou a ser o medo da realidade, do amanhecer, da solidão profunda do ser-se só. A paz só voltou quando me apercebi que o importante não era viver essa experiência na vida real, mas viver isso no inconsciente já era o suficiente. Compenetrei-me de minha idade, aceitei-a e daí me amarrei de tal maneira que ela deixou de ter importância e não mais existe como problema. Fase belíssima qual punho fechado, tranquila, me rindo dos outros que talvez agora me achem menos puta, exatamente agora que redescobrindo o meu Ego, readquiri de outra maneira o pecado original... Não é maravilhoso o conhecimento que se pode adquirir através de uma experiência pessoal de um antigo e lendário pecado? E não é fantástico que a própria aceitação no meio cultural venha não de um estado, mas de uma aparente identidade, tabu do que se chama pecado?

         Minha estadia em Belo Horizonte foi em duas etapas. Na primeira, em que o meu pai pensava que não ia mais voltar para Paris, me tratou como namorado com enorme carinho e houve pela primeira vez dentro de mim uma enorme aceitação da minha casa de infância, do ventre de minha mãe, do pau do meu pai. Jamais senti tamanha paz e alegria numa situação que antes me destruía completamente, sendo-me insuportável a permanência no meio onde fui gerada com gozos, onde nasci entre dores e gritos, onde quase morri de fome nos primeiros meses de vida, onde cresci me sentindo fora da família, tentando arrancar cada noite minha pinta, sinal vivido por mim como signo de marginalidade, afastando também várias imagens dramáticas da minha infância, tal como a do banho de ducha no hospício entre loucas, de ser jogada na banheira de água fria de madrugada ainda dormindo, botes de cobras, urutus, cascavéis, embaixo dos pés, pousados na caixa que as continha, no caminho do sítio ao instituto, porão rastejante coberto de teias de aranha e outro bichos, onde entrávamos para tirar o vinho para o pai, galos de briga, eu pequena raspando pelos do pescoço, massageando, assistindo à luta na companhia do pai, a morte, o olho furado, o galo morto. A faca da empregada louca, a corrida escada acima, o avô que acariciava e contava toda sorte de mitologia em linguagem crua e real, os pesadelos, a gosma que saía da boca perdendo substância vital, sonho que há pouco tempo reintegrei reengolindo a mesma, o túnel me emparedando, me separando morta-viva, unhas ruídas até o sabugo; desespero, a feia, a enjeitada, a menina que fugiu um dia de casa para vender doces na rua com a Tia Olinda – fabuloso ato falho: era Teodolina o verdadeiro nome, mas não para mim, que era parentesco, a menina deflorada, assentada embaixo de uma árvore enorme, passividade total, tio morto, hoje destroncando todos os dedos dos pés e das mãos, os gozos sentidos nas safadezas das descobertas infantis, depois, bem... toda uma vida para recompor ou construir uma personalidade que nunca se completa, enorme decalagem entre o interior e exterior. Na segunda ida a Belô, meu pai lembrando que o havia há 16 anos mandado tomar no cu, ameaçou quebrar-me todos os dentes e a boca e eu parti para ele na posição de briga para quebrá-lo também aos pedaços, dois loucos varridos, quase na polícia ou hospital, sendo a briga impedida pelo Álvaro, presente! Perdi aí a imagem do pai, até a porra, e só pude engoli-lo no Rio depois da volta, num pileque, sentindo como sou no fundo parecida com ele, em toda a sua loucura, toda a sua violência, toda a sua lucidez dentro da loucura, não tendo herdado dele somente o pênis, o que hoje posso aceitar tranquila, tranquila... Veja, anjo, tudo mexe comigo e o que isso não deve ter influenciado esta minha nova concepção do casal. Até aceitar consertar minha fase antiga de trabalho, obra, aceitei! É como se pudesse reparar os estragos que eu mesma fiz antes e que foram reparados agora. Já não sinto o desespero da nostalgia da “normalidade” e nem o medo da loucura, o que sempre foi a balança da minha vida... que a própria vida me deu. Fora toda a normalidade, de toda a patologia, de toda a cultura, de todo um contexto mesmo aparente, eis-me aqui – o meu testemunho sou eu-obra e não a obra que eu fiz.

         Ao mesmo tempo me assumi como personalidade, sem grandes paranoias no delírio de integração e muita solidão. Também no Brasil me deu a consciência de que aqui estou afetivamente superprotegida e tudo o que lá passou é que é a vida mesmo. Vi, emocionada, Eduardo cais numa crise, chorando como criança; ergui nos braços minha filha numa fase pré-edipiana, descobri maravilhada que sempre amei o Schemberg, tendo ido também a São Paulo e tendo tido uma grande briga com ele em que a violência foi de tal ordem que, se tivesse uma bomba na mão, destruiria o mesmo, a mim própria, a cidade inteira, a imensa massa humana; me senti atraída por ele pela primeira vez fisicamente, e não a velha libido “declanchada” através do fascínio da sua falação. O Schemberg para mim é a única permanência que sobrou! Gigante adormecido, mas gigante, sempre, hoje, amanhã e depois! Senti o abrasador amor-paixão que me liga ao Vitinho no abraço do dia da chegada, encontro que parou o tempo, nos dissemos em silêncio juras de amor eterno, de paixão de fogo, de lava de vulcão, aterrador, esfomeado mas verdadeiro. Descobri emocionada que o filho que mais amo é o Álvaro, mas a paixão é Eduardo e a maior comunicação é a Beth: mundo maravilhoso – é como se cada filho correspondesse a uma dobra uterina onde foram gerados, mas separados, embora no mesmo útero!

         De volta a Paris vim magra, velha, traumatizadíssima, só agora depois de um mês estou outra vez mais gorda e disposta. Encontrei toda a gente na mesma, ou escondem a vida ou estão mortos. Minha vitalidade parece que agride – fui superagredida, apontada na minha magreza, na minha velhice, não perdoam o meu renascer, a minha vitalidade, a minha alegria de receber toda a minha transformação, todo o sofrer como positivo... negação de cada dia passado, descoberta no dia que está presente. Nessa hora encontrei o velhinho adorável Pedrosa, vivo como um corisco, inteligentérrimo, sabendo escutar e gigante na comunicação... Nos vimos diariamente, e chorei muito quando partiu. Pela primeira vez na minha vida a morte, que era coisa abstrata, passou a ser concreta, só que no momento em que aceitei o fato o problema desapareceu também! Eu por ora ando parada. Fiz algumas experiências só com o corpo sem objeto algum. É curioso – você encontra novos relacionamentos entre os corpos através de novas percepções de espaços. Não sei se é válido ou não. Se é novo ou velho. Só sei que é o seguimento do meu pensamento e não sei até onde irei. Nem sei para quem falo. Às vezes penso que falo para mim mesma e pensei em fazer algo como “pensamento mudo”. Nenhum diálogo verdadeiro a não ser Violeta, que é torturada mas tem fôlego na escuta e também na comunicação. Não sei se aí irei, pois fazer uma exposição por fazer não dá pé. Não é que seja contra galerias, não sou a priori contra nada. Não quero criar nova elite. Quero é gente, e talvez em lugares recuperados é que eu tenha mais sentido, procurando dar outro às pessoas. Repito: quero é gente, não importa cor, idade, nacionalidade, estado de sanidade mental, burgueses, proletários, crianças, não importa, eu quero é gente e gente é que é importante, o sistema que se foda! Estou bolando “trocas”, mas sempre há um ritual tribal, ação e depois nada sobra.

         Isso não é uma carta, mas sim um monstruoso vômito que, no dizer de García Márquez, atravessaria o Sena, se jogaria no oceano e jorraria da sua torneira. Te beijo muito e muito.

P.S.: Descobri maravilhada que redescobri uma enorme estima por mim própria e tudo veio junto à aceitação de restaurar minha obra antiga! Adorei o que você escreveu para o Pasquim! Só não suporto o mesmo...



sábado, 13 de dezembro de 2014

Roberto Piva [parte 2/2]: meu coração paranóico de veludo verde

Para ler ao som de “rock’n’roll sugar Darling”de Thiago Pethit.

Nessa segunda semana  dedicada ao trabalho de Roberto Piva  fazemos uma seleta  de” Mala na mão & asa preta” , segundo volume das obras reunidas do poeta, organizadas  por Alcir Pécora para a Editora Globo +  o documentário  Assombração Urbana de Valesca Canabarro Dios.

O volume  traz 4 livros publicados entre a 1976 e 1983. Nos detemos em 3: Abra os olhos e diga Ah! (1976), Coxas  (1979) e  20 poemas com brócolis (1981).  Quizumba (1983), apesar de ser o livro que traz “A Coréia é na esquina”, sentimos que se afastava mais  da imagem que rastreávamos.   

Este segundo post investiga (mas não de forma exaustiva) a figura do menino bonito. O moço, o garoto, o rapaz, o tuareg, o boy.

Que imagens se projetam sobre ele? Que promessa ele traz? Que canto estimula sua presença (ou ausência)? [nota mental: a canção de caetano  o menino cantada por gal em recanto. A leitura de tyrone dessa canção]

Camile Paglia em Personas sexuais dedica um capitulo inteiro a pensar o menino bonito, que segundo ela tem a dupla função de  origem do canto e destruição dele. Camile toma Dorian Gray e a vida de Oscar Wilde para pensar esse arquétipo. Uma beleza quase afeminada, rica em subtextos psicológicos, relações de dominação e submissão - quem manda e quem obdece.

Os garotos de piva não são assim. Os garotos de piva são Marlon Brando em  O selvagem. Brutos, barulhentos,  ávidos,  às vezes insuportavelmente distraídos (ou dissimulados).
Alcir Pécora, na introdução do volume escreve:

“ Os poemas compõem uma franca e desassombrada celebração amorosa, em particular do amor do efebo, cuja posse frequentemente fornece a principal matéria para o canto. Trata-se da apropriação de um modelo poético antigo, no qual o amor entre homens (regido por Afrodite Urânia, nascida exclusivamente do sémen de Cronos, e não  por Afrodite Pandêmia, popular e heterossexual, nos termos platônicos) é essencialmente passagem para uma forma de conhecimento inteligível ou supra sensível. Mas trata-se também de uma contradição e diferença em relação aos modelos metafísicos, uma vez que o discurso amoroso se constrói centrado substancialmente na energia do corpo e do ato sexual. Poesia hardcore – para dizê-lo com rigor -, cujo princípio cognitivo tem sua sede no sexo.”   
  
Mais a frente, retoma:
“O desejo que o seu discurso professa não é antegozo do que se passa entre quatro paredes nem chama que se esgota na boemia anárquica ou na bizarria juvenil, mas front de combate a um mundo dado como morto. Entenda-se o cadáver: um mundo regido pela normalidade assexuada e invariavelmente associado a negociatas e mitologias mercadológicas – ‘totem kapitalista’.”

 O garoto é a promessa de (a)ventura.

Em Coxas, entre outros ele é “Pólen”; em 20 poemas com brócoli  ele atende por “o garoto”;   em Abra os olhos e diga ah! ele não é nomeado. “Ele” seria o interlocutor implícito da maioria dos textos.  Na seção final do livro de 1976 Piva retoma personas míticas (como Ganimedes & Antínoo) que funcionam como máscaras  para esse(s) interlocutor(es).   

Nesse sentido, é vital a fala de Ricardo Domeneck em entrevista à Escamandro como forma de pensar os lugares possíveis desse garoto e a poética que ele constrói.

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GGF – Você costuma sempre falar da relação entre poesia e poeta com seu contexto e função. Qual é o lugar, ou a função est-É-tica (como você diz) da poesia amorosa no presente?

RD - Esta talvez seja a pergunta mais difícil de responder, certamente a que apresenta maiores armadilhas. Você se lembra da colaboração entre Tom Zé e o Grupo Corpo, há alguns anos? Ali havia, em minha opinião, uma expressão muito clara da necessidade de salvaguardar o discurso amoroso, para usar a expressão de Roland Barthes, no mundo contemporâneo ou qualquer mundo. O próprio Barthes exprimiu algo desta necessidade na pequena introdução que faz a seu Fragmentos de um discurso amoroso. Numa sociedade que busca a uniformização de quase tudo (não dos direitos e privilégios) e a criação de autômatos, a poesia lírica torna-se um refúgio não do individualismo egocêntrico, como certos patetas parecem crer, mas um refúgio para o direito de cada indivíduo de ser um indivíduo, ao mesmo tempo que é parte de uma comunidade. Num mundo em que a individualidade é muitas vezes acusada de individualismo num discurso que quer ajudar a transformar cada ser em mera ferramenta de um sistema, sociedade em que tudo é dispensável, em que seres humanos são usados todos os dias como bucha de canhão, o ato de eleger outro ser como uma “festa-em-si”, como teu próprio “príncipe das belugas” ou “princesa das raposas”, torna-se uma subversão completa e perigosa do sistema de uniformização e automatização. Não há nada menos alienado que a poesia amorosa. Pelo contrário, parece-me por vezes a mais desperta. Porque mantém em nós o desejo, seguindo as palavras de Cummings, de seguir sentindo, “porque sentir é estar vivo”, de não ceder ao cinismo. Algo a ser celebrado, sempre. Cummings o exprime de maneira muito melhor que eu, portanto, se você me permite, encerro com minha tradução de um trecho de uma das nonlectures do grande lírico amoroso americano:
“Vocês não têm a menor ou mais vaga concepção do que é serestar aqui, e agora, e a sós, e ensimesmos. Por que (vocês perguntam) alguém deveria querer estar aqui, quando (com o simples apertar dum botão) qualquer um pode estar em cinquenta lugares ao mesmo tempo? Por que alguém deveria querer ser agora, quando qualquer um pode ir quandando por toda a criação num girar de manivela? O que poderia induzir alguém a desejar sozinhez, quando bilhões de soi-disant dólares são misericordiamente desperdiçados por um bom e grande governo para evitar que qualquer onde quer que jamais esteja um instante qualquer só? Quanto a ser você mesmo – por que diabos ser você mesmo; quando em vez de ser você mesmo você pode ser centenas, ou milhares, ou centenas de milhares de outras pessoas? A simples ideia de ser-se a si mesmo em uma época de eus intercambiáveis deve parecer supremamente ridícula.” — e.e. cummings
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Pessoalmente considero 20 poemas com brócoli, o conjunto de textos mais bem construídos de Piva. Tanto como projeto de livro, quanto os poemas individualmente. O tom dos textos  é consideravelmente menos declamatório do que nos livros anteriores, os versos (super concentrados) estão centrados em imagens (pedras, membros, autores) de grande riqueza cromática. Formalmente, recordam Lawrence Ferlinghetti de Poems from pictures of the gone world.

Depois do lançamento do livro de Thiago Gallego, que foi um dia enorme e cheio de gente e acontecimentos, já no fim da noite, tomando a saideira num pé-sujo do Humaitá, lembrei  do ensaio do Gore Vidal sobre Mishima. C começamos (eu, Gallego, Valmir e Madiano) uma lista absurda das gays literárias que seriam boas companheiras de caça. De Verlaine à  Ismar Tirelli Neto, passando por João do Rio, William S. Burroughs, Thomas Mann e Néstor Perlongher.  Alguém dizia um nome e os outros levantavam objeções baseadas na obra e/ou biografia. Unânimes, só Piva & Pasolini.

Por Marcio Junqueira.


***

De  20 poemas com brócoli

I
última locomotiva. gregos de Homero
                sonhando dentro do chapéu de palha
                       última vozes antes dos lábios &
            dos cabelos. sonoterapia voraz.
                                você adora as folhas que caem
                                                     no lago escuro
                              este é o banquete do poeta
                                                                     sempre
                                                                     querendo
                                                         penetrar
                                                                      no caroço
                                                                                 da verdade.
nariz do garoto negro apontando para
                            a praça apinhada de tucanos sambistas
                                     você tranca o planeta.
*

XIV

                                                                                     para o Carlinhos
vou moer teu cérebro. vou retalhar tuas
                          coxas imberbes e brancas.
        vou dilapidar a riqueza de tua
                           adolescência. vou queimar teus
                          olhos com ferro em brasa.
                    vou incinerar teu coração de carne &
                                de tuas cinzas vou fabricar a
                                substância enlouquecida das
                                             cartas de amor.
                                                                               (música de
                                     Bach ao fundo)
*

XVI

abandonar tudo. conhecer praias. amores novos.
                     poesia em cascatas floridas com aranhas
                               azuladas nas samambaias.
        todo trabalhador é escravo. toda autoridade
                    é cômica. fazer da anarquia um
                        método & modo de visa. estradas.
                              bocas perfumadas. cervejas tomadas
                                   nos acampamentos. Sonhar Alto.
*

XVII

quero dividir com você a ventania a morte
            & as flores do pessegueiro.
                sinistras aves de rapina.
                        fontes de mel. pequena cidade do
                               interior donde você brota como
                                              Amor-Perfeito.
                        imensa & indelicada adolescência.
             tambores dos quintais & do riacho
                         nas asas dos anjos da Memória”

*

XIX

o garoto engole a flor. mistura de
                                   serpentes. seus olhos acendem
                                           miosótis na dissipada
                                                ternura do neon.
               dançarei no musgo do teu coração
                                     onde as estrelas do
                                     amor caem feito
                                         ducha


*

De Abra os olhos & diga Ah!


eu sou o jet-set do amor maldito
      DENTRO DA NOITE & SUAS CÓLICAS ILUMINADAS
os papagaios da morte com Aristóteles na proa do trovão
          DISPOSIÇÃO DE IR A DERIVA NOS DADOS DO AMOR
              espinafre pela manhã & queijo em pasta
                  almas-esportivas com flores entre os dentes
     minha laranja se abrindo como uma porta
         TUA VOZ Ê ETERNA eu vejo a mão cinzenta rasgar
     a parede do mundo
         ESTAMOS DEFINITIVAMENTE NA VIDA

*

(A POLÍTICA DO CORPO EM FOGO DO CORPO EM CHAMAS
DO CORPO EM FOGO) APAGANDO A LUZ as trevas devoram
          teu corpo em chamas tua boca aberta teu suicídio
 de prazer na grama tuas mãos colhendo meu rosto
 de folhas machadas na escuridão teu gemido à sombra
              das cuequinhas em flor
                    teus cabelos são solidamente negros

*

(MEU AMOR DORME & SE COÇA EM SONHOS SE DEBATE & GEME
                SE DEBATE & GEME SE DEBATE & GEME)
                       antes do almoço sentaremos no pára-lama de
              um carro & falaremos de EMPÉDOCLES assim os pássaros
          carregam suas verdades magníficas no centro do mundo onde
                                             escutamos vozes de MOTORES HUMANOS
EU OUVI SUAS PALAVRAS QUE ARROMBARAM O UNIVERSO   antes
                            da chuva carnívora
                    antes do transistor canibal

*

(A EPOPÉIA DO AMOR COMEÇA NA CAMA COM O LENÇÓIS
          DESARRUMADOS FEITO CAMPO DE BATALHA) 
é ali que eu começo a nascer para a madrugada & suas
         vertigens onde você meu amor se enrosca em
meu coração paranóico de veludo verde & as delícias de continentes
alaranjados dormem em seu rosto de pérolas turvas oh tambores do amor
             sem parar rumo às tempestades PLANETÁRIAS & suas
        cachoeiras tristes & pesadas como lágrimas
                  gosto de gostar & a tv da alma amanhece bêbada & tenta
                                           dizer alguma coisa”

*

Ganimedes 76
Teu sorriso
olhinhos como margaridas negras
meu amor navegando na tarde
batidas de pêssego refletindo em teus olhinhos de
          fuligem
cabelos ouriçados como um pequeno deus de um salão
          rococó
força de um corpo frágil como âncoras
gostei de você eu também
amanhã então às 7
amanhã às 7
tudo começa agora num ritual lento & cercados de
         gardênias de pano
Teu olhar maluco atravessa os relógios as fontes a tarde
         de São Paulo como um desejo espetacular tão
         dopado de coragem
marfim de teu sorriso nascosto fra orizzonti perduti
assim te quero: anjo ardente no abraço da Paisagem

*

Atentado Profundamente o Emocional 

                                              (Antinoo, ragazzo di marbro)
     garoto pornógrafo
                             antes que a lua chegue
                                                     esta feijoada será uma batalha
            Átila vence a grama do mundo
                                            ADIANUS CESAR Imperator
          caminhando na manhã romana com seus doze amantes
eu gostaria que você lesse Jacob Boehme
                                 suas coxas se retesam
                                                                   & você chora um pouco
                        venha, lamba minha mão &
                                                  se prepare para um milhão
                                                  de comas loucas loucas
                     antes que a lua chegue
                                                 morda meu coração na esquina
                                                                                      & não me esqueça
*

Antinous
(movimento de árvores)

são questões
                     terça-feira eu prefiro você bem
                                                                   louco
                    minha palavra & nada que você acredita
                    poderá acontecer: ostras olhos injetados Hegel
              durma com suas violetas do subúrbio
                                          e a cidade tosse como
                                          um índio com febre
São Paulo acorda em suas coxas
                       docemente
banho quente com vapor
    em espiral flocos de
    samambaias eróticas
assim que você espreguiçar eu estarei
                                                            sangrando

*

De Coxas

      sex fiction & delírios


OS ESCORPIÕES DO SOL

O adolescente ajoelhou-se abriu a braguilha da calça de
Pólen & começou a chupar.
Eram 4 horas da tarde do mês de junho & o sol batia no
topo do Edifício Copan suas rajadas paulistanas onde Pólen
& Luizinho foram fazer amor & tomar vinho.
O adolescente vestia uma camiseta preta com o desenho no
peito de um punho fechado socialista, calças Lee desbotadas
& calçava tênis branco com listras azuis. Você é minha
putinha, disse Pólen. Isso, gritou Luizinho, gosto de ser
chamado de putinha, puto, viado, bichinha, viadinho ah
acho que vou gozar todo o esperma do Universo!
Neste instante um helicóptero do Citibank se aproximava
pedindo pouso & os dois nem ligaram continuando com
suas blasfêmias eróticas heróicas & assassinas.
O guarda que estava no helicóptero então mirou & abriu fogo.
Luizinho ficou morto lá no topo do Edifício Copan com uma
bala no coração.
Por onde é preciso começar?
Pólen não sabia, mas seu olho sabia, sua mão sabia, sua
política cósmica sabia.
Hermafrodita morto no musgo mais alto. Suas baleias de
ternura, suas tranças do mais puro ouro, suas sardas em
torno do narizinho meio arrebitado & insolente.
Luizinho era uma sombra dentro do seu coração anarquista
& rápido suas lágrimas quebraram o aço dos elevadores com
seus guinchos de múmias eletrificadas ondas de reflexos
polaróide em frente à Igreja da Consolação rostos picados
nos escritórios & seus violinos enfadonhos, o amor
começaria por uma perda?
A atmosfera cor de azeitona era um alívio para o coração
metralhada pela dor construída ao crepúsculo doente em
cargas elétricas & surdas feitas de veludo & espinhas de
peixe um rodízio de aberrações crispou o rosto de Pólen
que agora tomou um ônibus & percorreu São Paulo num
suspiro rodando & rodando por aquela massa cinzenta do
capitalismo periférico sem escapatória & suas grandes asas
cobriam o Sol & seus escorpiões.
Enquanto isso os cinemas sofriam ataques contínuos de
office boys armados com estilingues & bolinhas de gude &
partilhavam da turbulência do Grande Terror com
máscaras feitas de folhas de bananeiras & bermudas
justíssimas onde se podiam ver magníficas coxas & lindos pés
descalços com tornozelos rodeados com florzinhas amarelas
& muitos traziam a palavra COMA-ME costurada na
bermuda na altura do cu.
Naquela tarde todo mundo estava com vontade de nadar
em sangue.
Anjos da verdade pensou Pólen em sua calma estranguladora
de babuínos agora devem começar as quermesses com leitões
coloridos purê de maçã & delicados tutus à mineira ostras de
Cananéia apimentadas servidas com retumbantes batidas
de Maracujá (a fruta da paixão) codorninhas recheadas com uvas
passas & torresminhos com queijo ralado o verão bem
poderia chegar com seu perfume de acarajé invadindo os
colégios fazendo os adolescentes terem ereções & as garotas
desmaiarem de desejo com seus pequeninos seios latejantes.
                                     agora
                                          um anjo pousou
                               em seu ombro
                                                    & Pólen adormeceu.
Quando acordou alguém tinha deixado em suas mãos o
livro As Américas e a civilização de Darcy Ribeiro & ele
desceu do ônibus para sentar na praça Buenos Aires & ler.
Abriu na página 503 & leu:
“Os Guerreiros do Apocalipse.
Uma vez implantadas as bases do Estado militarista na
América do Norte, uma série de acontecimentos comoveu
a opinião pública, os governantes, os militares, conduzindo
toda a classe dirigente do país a crises sucessivas de
apavoramento e histeria”.

*

APAVORAMENTO N° 1
dezoito garotos & dezoito garotas foram emparedados vivos
em caixas construídas com chicletes que só Adams fabrica &
tostados dentro de um porão de arsênico & cascavéis.

*

APAVORAMENTO N° 2
quinze adolescentes de ambos os sexos foram chicoteados na 
bunda por batalhões da TFP que os insultavam enquanto
trezentos rapazes & moças de seita imperialista Igreja Católica
cortavam rodelas de cebola & colavam em seus olhos.

*

HISTERIA N° 1
a confraria reacionária Unidos em Série promovedora de
festivais de telenovelas nas fábricas jogou uma substância
criadora de histeria CBK7 no reservatório de água de um
colégio de freiras & as alunas peidaram 3 dias & 3 noites
sem parar & depois se flagelaram & crucificaram.

*

HISTERIA N° 2
setenta adolescentes fascistas do Colégio Objetivo criaram
no laboratório de química (com auxílio de alguns
professores) uma substância hipnótica cuja finalidade é
levar a vítima ao arrependimento seguido de crises
de misticismo histérico.
Essa substância foi testada no bairro operário da Mooca &
durante 2 meses às 6 horas da tarde na avenida Paes de
Barros os operários se reuniram para rezar

*

Antínoo & Adriano
L`énigme du labyrinthe est
Celle-ci: comment descendre
Jusqu`à Dionysos sans perdre
La connaissance du chemin?
A.   Kremmer –Marietti, L`homme est ses labyrinthes

The rain outside was cold in
Hadrian`s soul.
Fernando Pessoa,  “Antinous”


Esta é a zona batida pelos afogados
Esta é a velocidade máxima de quem submerge
aqui as romãs romanas não crescerão mais
& duas águias de névoa orvalhando sandálias
adolescentes na grama de primavera escrevem
a palavra remenber
o doce Antínoo com seu arco carregando
corações maduros na aljava da fenda-essência
da história
os semáforos do tempo acendem seu sinal
verde por cima de sua
longa cabeleira
este doce garoto
patiu o coração do imperador
o Império adorando um deus adolescente afogado no nilo
sem esperar a Manhã egípcia chegar
Adriano chorou o resto de sua
vida na villa ao sul de Roma
as paredes rachavam pelas tardes
deixando entrar as lembranças
houve um tempo nas montanhas da
Bitínia quando as caçadas se prolongavam
até a hora do amor
o vinho de Falerno aderindo aos estômagos
enquanto os olhares se
cruzavam sobre o javali assado e rodeado
de frutas
este amor contruiu seu império na
memória & as escamas de
meu cérebro caem ao contato de seu dedo
os poetas latinos ouviram provaram
entenderam este tesouro afundado
nas tripas do tempo
resta o vento de verão nos caminhos
onde eles andaram

***


Assombração urbana, filme de Valesca Canabarro Dios