terça-feira, 22 de abril de 2014

Revista-Disco Blliss Não Tem Bis: Escuta Crítica - poesia e a palavra em performance.


Voltamos às postagens semanais do nosso blog!



Na semana passada, apresentamos as diferentes narrativas disso que vai se constituindo como uma experiência de viagem permanente, que é a revista-disco de poesia Bliss Não Tem Bis. Até agora, fizemos 06 (seis) lançamentos em 05 (cinco) cidades diferentes (Rio de Janeiro, Pelotas, Cachoeira, Salvador e Feira de Santana); lançamos duas vezes aqui no Rio de Janeiro, primeiro em novembro do ano passado, depois em fevereiro deste ano, participando de uma tarde de performances num terraço na lapa na sede das companhias, na escadaria do Selarón, onde a atriz e autora Cristina Flores conduzia os Jardins Portáteis.



Temos planos diversos para este 2014, seja nos voltando para uma reflexão sobre o exercício da edição de poesia e produção poética hoje (em Maio, aguardem evento com Aníbal Cristobo, aqui no Rio de Janeiro!, e, ao longo do ano, postagens com catálogo de revistas de poesia atuantes no cenário brasileiro contemporâneo, dentre outras novidades), seja dando continuidade às linhas de tradução, antologia, crítica e divulgação de poesia e outras artes que marcaram o primeiro ano de existência do blog.



Esta semana, continuamos a viagem, divulgando na internet pela primeira vez o Lado A da revista-disco. (Trata-se das faixas de um dos dois CDs que compõem a Bliss não tem bis – quem quiser adquiri-lo, completo, com os 2 CDs Lado A / Lado B, envie um e-mail para blissnatembis@gmail.com, ou acompanhe nossa programação de eventos).



Além disso, hoje, buscamos elaborar do ponto de vista crítico as questões que envolvem a produção da revista-disco. Efetivamente, embora tenhamos diversos poetas que, desde a década de 50, explorem gamas diversas do fazer poético, experimentando na prática outra concepção de poesia e do poema, é com dificuldade e de modo esparso que o discurso crítico brasileiro sai do ambiente e das categorias de análise consolidados na segunda metade do século passado. De um modo geral, a referência do texto impresso e da página como espécie de valor essencial do poético, referenciado como um dos modos do literário, é o standard das discussões no país. É assim que, de diversos modos, reproduzem-se questões falsas (como a que tenta opor a forma poética da canção à forma poética do poema impresso, resguardando um valor de identificação do poético, ou da poesia “em si” ao último) e mantém-se uma desatualização progressiva em que a crítica fica aquém da produção poética não só internacional mas do próprio país.



Nesse sentido, talvez seja interessante apontar exceções à regra, como as encontradas nos seguintes textos, afastados quase vinte anos, mas que mostram outras perspectivas acerca da produção poética brasileira, Um poema é um poema é um poema, [leia aqui] publicado na Folha de São Paulo em 1996 por Antonio Risério, e Contemporary Brazilian Poetry, In The Singular: Giving Voice to a Few Tongues, Silencing Hundreds (in the best Brazilian style), [leia aqui] primeira parte de ensaio de Ricardo Domeneck sobre a poesia contemporânea brasileira, no qual fica clara sua intenção de partir de uma perspectiva que considera a poesia em outra chave.



Para adensar esse cenário, além da divulgação do material criativo da Revista-Disco Bliss Não Tem Bis, escolhemos publicar aqui a tradução de um trecho de um ensaio introdutório de uma coletânea crítica dedicada exclusivamente à poesia sonora e à performance poética. Trata-se de uma coletânea publicada no final da década de 1990, organizada pelo poeta e ensaísta norte-americano Charles Bernstein. O livro traz ensaios de Bruce Andrews, Maria Damon, Joahanna Drucker, Susan Howe, Steve McCaffery, Peter Middleton, Bob Perelman, Marjorie Perloff, Nick Piombino, Peter Quartermain, Jed Rasula, Susan M. Schultz, Ron Silliman, Susan Stewart, Dennis Tedlock e Lorenzo Thomas.



Escolhemos a introdução (apesar de volta e meia, como é o caso de toda introdução, ela fazer referências frequentes ao livro que virá) por seu aspecto panorâmico e por ela apresentar o núcleo crítico, a concepção de poesia que permite ver o poema como uma existência plural – sem precedência do texto impresso sobre a leitura performática, ou vice-versa. Em breve, atualizaremos a postagem, disponibilizando uma tradução do texto completo para download.



No caso de Bernstein, seu texto se volta principalmente para 3 aspectos: a caracterização da leitura pública de poesia como momento fundamental das experimentações e práticas poéticas do século XX (a sua apreciação se circunscreve em especial ao espaço norte-americano, mas podia facilmente ser estendida a diferentes países europeus, e, desde a década de 1970, ao espaço brasileiro (considere-se, por exemplo, a atuação da Nuvem Cigana, ou o projeto capitaneado por Chacal que já dura cerca de duas décadas, o CEP 20.000, além de diversos festivais e eventos públicos marcados pela presença da leitura de poesia); a explicitação de uma concepção poética com base na ideia de performance do poema, e performance da palavra; o questionamento da disciplina da Prosódia tradicional. A sequência do texto (a ser disponibilizada depois) envolve a fundamentação da ideia de isocronia como superação, do ponto de vista sonoro, da perspectiva crítica dos sistemas de medida acentuais e métricos. Um dos méritos certeiros de seu ensaio é prover raciocínio e análise para o campo da performance que, por sua temporalidade efêmera, parece muitas vezes restrito a um punhado de considerações breves, e sem maior impacto.



Procuramos, na medida do possível, acrescentar uma quantidade de links razoável à tradução para que, mesmo na falta do registro do texto analisado, o leitor possa ouvir o poeta cuja obra está sendo comentada.



Esperamos, aos poucos, formar um material que nos permita reconhecer a poesia como fenômeno fundamentalmente plural e a leitura como movimento que envolve o corpo inteiro, integrando diferentes experiências sensíveis e motoras, assim como as diversas faculdades de concepção, imaginação, e aquilo que liga uma coisa à outra (mente e corpo sempre em relação contínua).



No mais, fica o convite: ouçam cá esses poemas em performance! 
E fiquem com antenas ligadas para novos lançamentos da revista-disco!



Obs: as intervenções entre colchetes são do tradutor.



Obs2: Para mais informações sobre o poeta e ensaísta Charles Bernstein, ver [este endereço]. Ele tem uma série de conversas com outros poetas que pode ser acessado [aqui].


***


LADO A – REVISTA-DISCO BLISS NÃO TEM BIS




*

Introdução de Close Listening: poetry and the performed word (Escuta crítica: poesia e a palavra performática) – por Charles Bernstein [Tradução: Lucas Matos].


Eu canto e toco flauta pra mim apenas
Pois ninguém exceto eu entende minha língua.
Tão mal quanto elas entendem o rouxinol
Pessoas entendem o que diz a canção.

PEIRE CARDENAL.

Ninguém escuta poesia. O oceano
Não quer ser escutado.  Uma gota
Ou a arrebentação. Quer dizer
Nada.

JACK SPICER.

Close Listening: poetry and the performed word [Escuta crítica: poesia e a palavra performática] apresenta dezessete ensaios, escritos especialmente para o volume, sobre leituras de poesia, som e performance visual na poesia. Enquanto que a performance em poesia é tão velha quanto a própria poesia, a atenção da crítica foi negligente com a performance poética moderna e contemporânea, apesar de sua importância crucial para a prática artística deste século [XX]. Esta coletânea abre muitos caminhos para a discussão crítica do som e da performance, prestando atenção especialmente em trabalhos inovadores. De maneira mais importante, os ensaios aqui reunidos oferecem elucidações originais e de ampla abrangência sobre como a poesia do século XX foi praticada como uma arte performática.

Enquanto este livro está voltado para a poesia contemporânea, seu projeto se estende bem além do contemporâneo em suas considerações da leitura de poesia moderna, poesias orais, e a lírica em nossa e em outras culturas, e no seu esforço de repensar a prosódia à luz da performance e da entoação da poesia. Esse é um assunto de horizonte amplo, que, creio, será fundamentalmente transformado por esses ensaios. De um lado, encontram-se abordagens filosóficas e críticas sobre o papel do som na construção de significado: a forma como os poetas, e especialmente poetas inovadores do século XX, trabalham com a sonoridade como um material, em que os sons não são nem arbitrários nem secundários, mas construtivos. Na outra ponta, está a interpretação crítica de estilo e performance de poetas individualmente. Essas abordagens visam encorajar “escutas críticas” não somente do texto impresso, mas também de fitas e performances (e consequentemente encorajar um uso ampliado de gravações, o que vai, assim esperamos, fomentar a produção de material do tipo por parte das gravadoras).

Escutas críticas podem se contrapor a leituras de poemas baseadas exclusivamente no texto impresso, que ignoram as performances do próprio poeta, a sonoridade “total” da obra, e a relação entre som e semântica. Decerto, a discussão do som enquanto matéria e dimensão material também chamam à cena desenvolvimentos tais como poesia sonora, peças e “cenas” radiofônicas, trilha sonora cinematográfica, colaborações entre poesia e música, e outras obras audíveis [...].

Qualquer abordagem de leituras de poesia deve ser uma abordagem também da sonoridade da poesia; a primeira parte desta coletânea prepara para a discussão específica da performance nas seções subsequentes. Na parte III, Peter Middleton enfrenta o tema difícil e escorregadio da história da leitura de poesia moderna. Seu ensaio sugere que a questão acerca da origem das leituras de poesia pode ser colocada se invertida – não “Quando as leituras de poesia moderna começam?” mas “Quando a poesia deixa de ser apresentada primeiramente através da performance?”. Isto é, “Quando (e se) a leitura silenciosa ganhou precedência sobre a performance ao vivo?”. Conforme segue, Middleton conclui que leituras de poesia não são fenômenos que podem acontecer aos poemas, que são os poemas que podem por vezes se apresentar como leituras. Minha discussão própria aqui, além de contextualizar essas outras contribuições, foca principalmente nas dimensões acústicas da leitura de poesia.

Desde os anos 1950, a leitura de poesia se tornou um dos principais espaços de divulgação de obras poéticas na América do Norte, ainda assim, estudos de diferentes aspectos da poesia em performance têm sido raros (e mesmo análises das obras completas de um poeta rotineiramente ignoram a produção sonora), e leituras – independente da quantidade de público atingida – dificilmente são objetos de resenhas críticas em jornais e revistas (embora elas apareçam frequentemente como tema de reportagens sobre “comportamento” leves e geralmente desinformadas que tratam de uma perene “revitalização” da poesia)1. Um arquivo volumoso de documentos de áudio e de vídeo, registros das primeiras gravações de uma voz quase incompreensível de Tennyson [você pode ouvir um exemplo aqui] aguardam estudo sério e interpretativo. Nestes ensaios, procuramos integrar a história da poesia moderna à história mais ampla das artes da performance e às abordagens filosófica e linguística da dimensão acústica da linguagem. A ausência de tal história teve o efeito de elidir a significância das tradições da poesia modernista para a performance artística do pós-guerras. Simultaneamente, a dimensão performativa da poesia possui uma relação significativa com a arte conceitual e concreta, bem como com a poesia visual, que expande a dimensão performativa (e material) do texto literário quanto ao espaço visual.

O novo campo de estudos e teoria da performance proporciona um contexto útil para este livro. Considerando exemplos de performances “totais” em outras culturas, teóricos reorientaram o debate acerca da relação entre teatro, público e texto. Enquanto que boa parte da discussão da arte performática pós-moderna se focou nesse contexto e em outros aparentados, houve consideravelmente menos atenção para o que isso implicava com relação à performance poética. Será uma colaboração particularmente importante para a “escuta crítica” Frame Analysis [Análise de Quadros] de Erving Goffman, especialmente sua concepção de como o roteiro do quadro através do qual uma situação (ou obra) será vista necessariamente coloca outros aspectos fora do quadro, naquilo que ele chama de camada ignorada [“disattend track”]. Concentrar a atenção no conteúdo ou na forma do poema, como é típico, implica colocar o áudio assim como a tipografia – o som e a imagem do poema – na camada ignorada. De fato, o curso de boa parte da crítica literária das duas últimas décadas, que se coloca distante do auditório e dos aspectos performativos do poema, deve-se parcialmente à noção prevalente de que a estrutura sonora da linguagem é relativamente arbitrária, perspectiva frequentemente questionada neste livro. Tais elementos como a aparência visual do texto ou o som da obra em performance podem ser extralexicais mas não são extrassemânticos. Quando elementos textuais que são convencionalmente postos de fora do quadro como não semânticos são reconhecidos como significativos, o resultado é uma proliferação de camadas possíveis de interpretação. Então, a questão passa a ser se vemos essas camadas ou estratos como comensuráveis uns com os outros, nos levando a uma “imagem complexa total” do poema, para usar o termo de Veronica Forrest-Thompson; ou se vemos esses estratos como incomensuráveis uns com os outros, contraditórios, nos levando a uma leitura do poema enquanto intotalizável. Aqui, “estrato” pode claramente ser pensado também como os tipos de camadas superpostas que alguém acha em um palimpsesto.

Em certo sentido, esta coletânea apresenta uma resposta complexa, multifacetada para uma compreensão simples e bastante comum de leituras de poesia, como quando alguém diz: “Eu entendo a obra muito melhor ouvindo o poeta ler. Eu nunca conseguiria imaginar que os poemas deveriam soar dessa maneira”. (Isso não quer dizer que se deve descartar a significância de performances de poetas que parecem “ruins” por um motivo ou por outro ou que possa fazer alguém gostar da obra menos que na página, nem quer dizer que não se deva dar atenção a uma performance de um poema feita por alguém diferente do autor). Nesse sentido, conforme a performance poética é encarada como tópico de discussão, o assunto é comumente associado a exemplos carregados de energia, como o notório The congo [ouvir aqui] (“MUMBO JUMBO in the CONNNG-GO”) de Vachel Lindsay, ou o estilo de apresentação melodramática de Carl Sandberg [ouvir aqui] (“in the tooooombs, the coooool tooooombs”), ou o quase-canto de Allen Ginsberg em “O Uivo” [há várias leituras desse poema, (o poeta Chacal, em seu espetáculo teatral fez uma versão de "O Uivo", inclusive) uma das versões de Ginsberg pode-se ouvir aqui], ou mais recentemente o “rap” ou a poesia “slam” discutidas na parte III por Maria Damon. Mas o inantecipável tempo atrasado da performance de Wallace Stevens [ouvir aqui] nos diz muito sobre seu sentido de ritmo poético e sensibilidade filosófica, assim como a quase monotonia de John Ashberry [ouvir aqui] sugere uma dimensão mais onírica que o revelado pelo texto. A intensidade emocional do impacto das pausas de Robert Creeley [ouvir/ver aqui] nas quebras de verso dão uma interpretação afetiva àquilo que de outro modo se lê como uma percepção altamente formal de quebra de versos fragmentada – as pausas sugerem tonalidade emocional e dor de maneira audível nas gravações mas não necessariamente na página. Os registros de Gertrude Stein [ouvir aquiaquiaqui] deixam claras tanto a ressonância metálica de sua voz quanto sua percepção de transformações rítmicas contraposta à modulação das repetições e à elegância de suas imagens sonoras; enquanto que, escutando Langstom Hughes [ver/ouvir aqui], alguém saca imediatamente não somente os ecos do blues em sua obra mas como ele modula diferenças entrando e saindo desses esquemas rítmicos. Tendo escutado esses poetas lendo, mudamos nossa audição e leitura de suas obras na página também.

Como Middleton aponta em seu ensaio neste volume, há um número de fatores implicado no dramático aumento da significância da leitura de poesia no período do pós-guerras na América do Norte e no Reino Unido. Permitam-me, entretanto, adiantar de saída uma explicação. Durante os últimos quarenta anos, mais e mais poetas têm se utilizado de formas cujos padrões sonoros são fabricados – isto é, seus poemas não seguem formas recebidas ou pré-fabricadas. É para esses poetas que a leitura de poesia ganhou tamanha importância. Pois as figuras sonoras dos poemas de tais profissionais comumente são percebidas de modo mais imediato e visceral nas performances (gravadas ou ao vivo), mesmo que o leitor afinado possa ser capaz de ouvir algo comparável em sua leitura prévia do texto. A leitura de poesia é uma afinação coletiva. (Considere-se como as leituras públicas nos anos 1950 de Creeley, Ginsberg, Olson e Kerouac estabeleceu – numa primeira instância – não só o som de suas obras mas também as possibilidades para obras semelhantes. A discussão de Bob Perelman sobre a fala do poeta na parte II explora versões mais recentes de uma prática estabelecida amplamente por esses artistas). A proliferação de leituras de poesia permitiu o desdobramento mundo afora de novas séries de modalidades acústicas, que tiveram um impacto enorme ao informar a leitura da poesia contemporânea. Essas performances configuram novas convenções que são internalizadas e aplicadas adiante na leitura de textos poéticos. Elas constituem os fundamentos acústicos para práticas inovadoras – nosso quadro sonoro coletivo.

Para ser escutada, a poesia precisa ser som – seja num processo de leitura da obra ativa, ou interativa, seja através do poeta em performance. Poesia muda permanece enquanto marcas inertes na página, esperando para serem chamadas ao uso pela fala, ou pela escuta das palavras em voz alta. A leitura de poesia funciona como um ponto focal para esse processo, em que sua existência se encontra de um modo único associada à leitura do texto em voz alta; é um emblema da necessidade de ler em voz alta e em público. Sequer o processo de transformar palavras sem som na página em linguagem em performance pode ser considerado uma exclusividade da poesia. Para ficarmos com apenas um exemplo, Jerome Rothenberg se refere à antiga tradição judaica de ler e entoar a Torá – transmutando uma escrita sem vogais em um som vocal completo2. A récita pública também traz à mente diversas tradições baseadas no sermão, da pregação monocórdia aos responsórios com canto e resposta. E se a leitura de poesia possibilita ao performer elementos não escritos, também fornece possibilidades especiais ao ouvinte na resposta direta à obra, indo da risada ao deboche, até o prazer de se perder na linguagem que surge adiante, permitindo à mente vagar na presença das palavras.

Quando o registro de áudio da performance de um poeta é reconhecido como uma parte significativa, e não somente incidental, de sua obra, uma série de questões textuais e críticas importantes vêm à tona. Qual o status das discrepâncias entre versões do poema publicadas e realizadas em performance, e, mais que isso, interpretações baseadas no texto escrito versus interpretações baseadas na performance? Amiri Baraka [veja e ouça aqui] é um dos mais dinâmicos poetas performáticos do período pós-guerra. Para Baraka, fazer as palavras dançarem numa performance significa tirar os poemas da página, do mundo das ideias, e colocá-los em ação. Em um de seus poemas-performances mais vibrantes, como Afro-American Lyric (Lírica Afro-Americana), o texto pode parecer secundário, como se, conforme William Harris parece sugerir em sua discussão do poema, o texto – com seu formato tipográfico inventivo – tivesse se tornado apenas notas para a performance3. Claro, sempre é possível que alguns poemas pareçam mais fracos na página que na performance, e vice-versa. Mas não creio que seja esse o caso de Baraka, cujo trabalho consiste continuamente na exploração da dialética entre performance e texto, teoria e prática, o literário e o oral – uma dialética que envolve mais dissonâncias que harmonia. Performance, no sentido da ação, é uma forma estética subjacente tanto quanto uma questão política na obra de Baraka4. A forma de suas performances são icônicas – elas apresentam significados. Nesse sentido, o texto impresso de Afro-American Lyric funciona movendo o leitor (silencioso, atomizado) para um estado de performance – insistindo na ação; as aparentes lacunas textuais são o motor de sua forma.

O texto de Afro-American Lyric traz à mente a linguagem de panfletos políticos marxistas, enfatizando a intocada didaticidade do poema. Ouvir Baraka lendo o poema numa fita de sua performance no Naropa Institute em 26 de Julho de 1978, entretanto, dá uma impressão reconhecidamente distinta. Baraka prolonga as sílabas de “simple shit” (simples merda) (“Seeeeeeeeeeeimmmmmmmmmmm pull” na versão impressa), entrelaçando-as de modo sincopado com “classe exploradora, classe de posses, classe burguesa, classe reacionária”, transformando a diatribe do texto em um cruzamento entre o poema sonoro e a improvisação jazzística. Cria uma música brincalhona mas ainda dissonante a partir das palavras aparentemente refratárias da análise marxista trazendo à tona a incontrolável plenitude fônica de dentro e do entre as palavras. Não se trata de um mero embelezamento do poema, mas de uma realocação de seu sentido (“Luta de Classes na Música” [“Class Struggle in Music”] é como Baraka intitula um poema posterior). As suas récitas invocam uma gama de performances retóricas que vão da exortação à acusação: ele faz ligaduras entre seu próprio entoar de uma canção e uma frase de inflexão mais neutra, mergulhando então num quadro sonoro percussivo. (É notável, em tal contexto, a narrativa sinóptica de Lorenzo Thomas, na parte III desta coletânea, sobre a pré-história dos estilos de performance do Movimento da Arte Negra, incluindo, é claro, o trabalho de Baraka. Thomas começa com récitas do século XIX, para seguir com descrições do Renascimento do Harlem (Harlem Renaissance) e do Verso Projetivo (Projective Verse), considerando, no processo, questões como língua vernácula, dialetos, arte pública, oralidade e comunidade/nacionalidade).

Qual a relação entre a performance de Baraka – ou de qualquer poema apresentado por seu autor – e o texto escrito original? Um objetivo que tenho com este livro é superar a presunção comum de que a letra de um poema – isto é, o documento escrito impresso – é mais importante e que a récita ou performance são secundárias e fundamentalmente irrelevantes para o “poema em si”. Na perspectiva convencional, a vocalização tem algo do status de uma interpretação – fornecendo um brilho possível do original imutável. Um problema para esse ponto de vista, contestado mais persuasivamente por Jerome McGann em Black Riders, The Textual Condition e A Critique of Modern Textual Criticism é que muitas vezes não há uma única versão original escrita de um poema. Mesmo deixando de lado o status do manuscrito, existem muitas vezes impressões variadas e discrepantes – eu talvez gostasse de chamá-las de performances escritas – em revistas e livros, com modificações na escolha de palavras, mas também no espaçamento, na tipografia, no papel, e, ainda mais, no contexto da leitura; compõem-se uma pluralidade de versões, nenhuma das quais podendo clamar autoridade exclusiva. Eu chamaria essas diversas folhagens em fólio de performances do poema; e eu acrescentaria a performance do próprio poeta em uma leitura de poesia, ou várias, à lista das variantes que juntas, de modo plural, constituem e reconstituem a obra. Isso, então, não quer dizer que todas as performances de um poema têm autoridade igual. A interpretação de um ator, como a configuração de um desenho gráfico “original” para um clássico, não terão o mesmo tipo de autoridade que a leitura do próprio poeta ou a primeira impressão da obra. A performance do autor, assim como a visualização do poema em suas impressões iniciais, marcam para sempre a entrada do poema no mundo; não apenas seu significado, mas sua existência.

Um poema compreendido como um evento performativo e não meramente como uma entidade textual recusa a originalidade do texto escrito em favor do “evento plural” da obra, para usar uma expressão de Andrew Benjamin. Isto é, a obra não é idêntica a nenhuma realização gráfica ou performática, nem pode ser equacionada em uma unidade totalizante dessas versões ou manifestações. O poema, visto nos termos de suas múltiplas performances ou de uma intertradutibilidade mútua, tem uma existência fundamentalmente plural. Isso ganha maior dramaticidade enunciativa quando instâncias da obra se revelam contraditórias ou incomensuráveis, mas também se aplica quando as versões diversas são comensuráveis. Falar do poema em performance é, portanto, superar a ideia do poema como um objeto linguístico fixo, estável, finito; é negar no poema sua essência e unidade. Logo, quando a performance enfatiza a presença material do poema, e do performer, ao mesmo tempo nega sua presença unitária, o que quer dizer sua unidade metafísica.

Perdoem-me pela extensão da citação, conforme traduzo abaixo comentários de [Andrew] Benjamin com base em psicanálise e tradução cercando o tópico em pauta5:

“A questão da presença, a pluralidade contida no ser presente, é de significância fundamental para a poesia. A presença do texto impresso (o documento escrito) contida na performance, mas igualmente a presença da performance dentro do texto quer dizer que há, num momento único do tempo, dois modos irredutíveis de estar presente. Conforme a presença se torna o espaço da irredutibilidade, será compreendido que ela não pode ser absolutamente presente para ela mesma. O não original marca a possibilidade do poema ser tanto virtual quanto realmente plural, o que significa que no poema vai sempre faltar uma unidade essencial. (Dentro do contexto da poesia, o que se pode dizer que falta é uma finitude semântica e interpretativa já dadas, senão uma singularidade do poema). Portanto, não há unidade a ser recuperada, nenhuma tarefa de pensar na origem como tal; desde a origem, agora a não origem, já se apresenta o que resiste a uma unidade sintética. Qualquer unidade será um efeito a posteriori. Tais efeitos se constituem de publicações dadas, performances, interpretações, ou leituras. O poema – que é não originalmente plural – não pode ser conhecido como tal porque não existe como tal”.

[...]

Estou propondo que olhemos para a leitura de poesia não como uma extensão secundária de textos prioritariamente escritos, mas como seu próprio medium (meio). Quais são, então, as características específicas desse medium e o que ele pode fazer que outros media de performance ao vivo – shows de música instrumental, canção e ópera, teatro – não podem? A resposta pode ser encontrada no que parecerá para muitos como a natureza anti-performativa da leitura de poesia: a leitura de poesia como radicalmente “teatro pobre”, no sentido de Jerzy Grotowski. Se isso puder ser aceito, mostra-se como aquilo que alguns julgam ser o aspecto mais problemático da leitura de poesia pode ser compreendido como sua essência: isto é, a sua falta de espetáculo, drama e variação de dinâmica, como exemplificado especialmente em certo modo de leitura minimalista – anti-expressivo. Chego a me sentir tentado a nomear este modo anti-performativo para sugerir que consiste numa espécie de estratégia retórica (no sentido estilístico de uma “anti-retórica”) e não sugerir que seja menos escolhido que no caso de leituras mais “teatrais”. (As leituras de poesia de John Cage são um bom exemplo desse modo) [ouvir aqui]. Numa época de espetáculo e grande dramaticidade a leitura de poesia anti-expressiva se destaca como um oásis de baixa tecnologia que está entre os eventos menos espetacularmente produzidos de nossa cultura pública. O valor explícito está concentrado quase que exclusivamente na produção acústica de uma única voz falante desacompanhada, com quase todos os outros elementos teatrais colocados, na maioria das vezes, fora do quadro. A voz solo colocada em quadro de modo tão exclusivo pode chegar a parecer virtualmente desincorporada numa forma como que sobrenatural, hipnótica. Tais leituras de poesia partilham da intimidade do rádio, de pequenos conjuntos e da música de câmara. Em contraste com o teatro, onde a disposição do espetáculo cria a percepção de uma distância entre o que é visto e quem vê, a ênfase no som na leitura de poesia tem o efeito oposto – conecta fisicamente falante e ouvinte, provocando um transbordamento da consciência do contexto da performance. De fato, o modo de leitura anti-expressivo funciona ao derrotar a teatralidade da situação performática, ao permitir que o ouvinte penetre um espaço acústico côncavo ao invés de ser empurrado distante dele, como num modo mais propelente (que cria um espaço acústico convexo). Quando um poema apresenta uma fonte audível ao invés de visível (a performance escutada ao invés do texto lido), nossa perspectiva sobre, ou da obra muda. Ao invés de olhar para o poema – as palavras numa página – nós podemos entrar nele, talvez nos perder, talvez perder a nós mesmos, meter nossos “pés” (não métricos) pelas mãos. De acordo com Charles Lock [você pode ler aqui], “a ausência ou presença de perspectiva marca a diferença crucial entre signos ‘pictóricos’ e ‘simbólicos’, sendo que ambos são ‘visuais’”6. Pois um texto escrito é o único sistema de signos visuais que, como Lock coloca, é completamente “livre de perspectiva”. Como um texto, os fenômenos de auditório não colocam a questão da perspectiva, mas têm sua versão dela, a espacialização, e esse é um elemento constituinte do medium da leitura de poesia.

Essa abordagem formalista da leitura de poesia pode explicar o desagrado comum entre poetas das apresentações de atores lendo poemas: pois isso denota não um desagrado com relação à vocalização, mas com relação ao estilo de atuação que enquadra a performance em termos de personagem, personalidade, ambientação, gesto, enredo ou drama, mesmo que esses elementos sejam extrínsecos ao texto em pauta. Isto é, a atuação ganha precedência sobre deixar as palavras falarem por si mesmas (ou pior, a eloquência compromete, para não dizer eclipsa a música em trapos do poema). O projeto da leitura de poesia, a partir dessa perspectiva formalista, é encontrar o som nas palavras, não num cenário extrínseco ou num acompanhamento suplementar. Sem querer, de modo algum, desvalorizar o estilo de leitura mais extravagantemente teatral, eu apontaria para este modo mais monovalente, com inflexão mínima, e de qualquer modo reduzido, como o encontro da essência do medium. Afinal, a poesia não pode, e não precisa, competir com a música em termos de complexidade acústica, ou força rítmica, ou com o teatro em termos de espetáculo. O que é único, e a seu próprio modo estimulante, é que ela faz o que faz dentro dos limites da linguagem apenas.

(Permitam-me ecoar aqui o ensaio de Peter Quateirman presente neste volume, e em particular com relação a seu cuidado para que a vocalização que um poeta faz de um poema não deve ter o poder de eliminar vozes ambíguas presentes no texto; nem a performance do autor deve ser privilegiada de modo absoluto acima das de outros leitores e performers).

A performance de poesia (sem acompanhamento) tem como limite superior a música, como a realizada no que vem a se chamar de poesia sonora, e como limite inferior o silêncio, como o realizado no que vem a se chamar de poesia visual. A poesia visual nos leva a olhar para as palavras assim como ler, enquanto que a poesia sonora nos faz ouvir tanto quanto escutar. Curiosamente, há uma interseção entre esses limites, como quando um poema visual é apresentado como poema sonoro, ou um poema sonoro gravado como visual (fenômeno importante para, neste volume, as explorações de Johanna Drucker, Dennis Tedlock e Steve McCaferry). Na maior parte, entretanto, este livro se volta para a leitura de poesia em seu sentido mais comum, já que me parece que tal modo de leitura é mais negligenciado pela crítica – ou talvez simplesmente desconsiderado, se não ridicularizado. Mesmo aqueles que mantêm maior simpatia pela poesia em performance costumam apontar que a maioria dos poetas não sabe ler o próprio trabalho, como se tal sentimento sugerisse um defeito com o medium das leituras de poesias. Alguém pode dizer que a maioria dos poemas publicados em livros e revistas são chatos sem que essa observação implique um juízo sobre a poesia escrita como medium. Talvez fizesse mais sentido dizer que se não se gosta da leitura de um poeta, é porque não se gosta do poema, para acompanhar a colocação de Aldon Nielsen em uma lista de discussão recente na internet. Não há poetas cuja obra eu admire e cuja leitura tenha falhado em me envolver, em enriquecer minha escuta do seu trabalho. Isso não quer dizer, no entanto, que certas apresentações não constituam problemas, ou compliquem minha compreensão e apreciação. Por motivos relacionados, me interesso bastante em registros de áudio de leituras de poesia. Se, como estou sugerindo, leituras de poesia são o fundamento do texto acústico e sonoro do poema – o que desejaria chamar de audiotexto do poema, expandindo o termo de Garrett Stewart, fonotexto – então a reprodução em áudio se encaixa de forma ideal ao medium. (Vídeos, me parecem, são normalmente menos atraentes para a poesia, já que os escassos recursos visuais usados tipicamente – planos estáticos de uma pessoa em um púlpito – não se equivalem à trilha sonora e tendem a planificar a dimensão afetiva da performance ao vivo. Para mim, a extensão cinética de uma leitura de poesia mais cheia de energia e formalmente elaborada se encontra na série de filmes feita de metades dos anos 1970 até metade dos anos 1980 por Henry Hills, especialmente Plagiarism [Plágio], Radio Adios e Money [Dinheiro] [você pode ver o vídeo de Money aqui]).

Qual a relação entre som e sentido? Qualquer consideração da leitura de poesia deve dar especial atenção a tal problema, já que leituras de poesia performances acústicas que constituem o fundamento do audiotexto do poema. Uma forma de abordar o assunto é enfatizar a dimensão oral da poesia, a origem dos sons da linguagem na fala. E claro que muitos poetas desejam, sim, identificar sua performance apenas com tal aspecto da oralidade, até ao ponto de sublinhar um “retorno” a uma cultura mais “vital” do passado, pré-existente ao advento da imprensa. Mas eu estou interessado numa gama maior de práticas performáticas que as que se encontram sugeridas pela oralidade; de fato, alguns dos estilos de leitura de poesia mais interessantes – de Jackson Mac Low a Stein a T. S. Eliot – desafiam a oralidade de várias maneiras: Eliot através de seu estilo vocal despersonalizado e perturbador (emanando mais através da boca, do que pelo diafragma); Stein com suas ressonâncias cubistas, moduladas ou disseminadas espacialmente; e Mac Low com sua pronúncia imaculada de padrões lexicais construtivistas. A oralidade pode ser compreendida como um marcador estilístico ou mesmo ideológico de um estilo de leitura; em contraste, o audiotexto pode de modo mais aproveitável ser melhor entendido como aural – aquilo que o ouvido ouve. Com aural pretendo enfatizar a sonorização da escrita, e fazer um contraste rigoroso com oral, e sua ênfase na respiração, na voz e na fala – uma ênfase que tende a valorizar fala mais que escrita, voz mais que som, escuta mais que audição, e por fim, oralidade mais que auralidade. A auralidade precede a oralidade, assim como a linguagem precede a fala. A auralidade está conectada ao corpo – como a boca, e a língua e as cordas vocais atuam – não à presença do poeta; trata-se de fenômeno proprioceptivo, no sentido de Charles Olson. Na leitura de poesia, atua o poema, e não o poeta; materializa-se o texto, e não o autor; é uma performance da obra e não do compositor. Em resumo, a marca distintiva da leitura de poesia é que ela é menos a presença do poeta que a presença do poema. Minha insistência na auralidade não pretende colocar o ouvido material acima dos lábios divinos, mas encontrar um termo que inverta a identificação da oralidade com a fala. A auralidade quer evocar o sentido performático de um “fonotexto” ou de um audiotexto e pode ser melhor escrita do seguinte modo: a/oralidade. (Tanto Susan Schultz quanto Dennis Tedlock, em seus ensaios, exploram aspectos dessa questão).

O audiotexto, no sentido da performance acústica do poeta, é semanticamente um dos campos mais densos da atividade linguística, podendo ser mapeado através de elementos como medida, assonância, aliteração, rima, e similares (embora todos eles permaneçam elementos subjacentes a esse campo mais denso). Pensar nos termos de performance do poema recoloca muitas das questões trabalhadas por estudiosos da prosódia que examinando o texto escrito dos poemas, muitas vezes analisavam sílaba por sílaba, fonema por fonema, acento por acento, pé por pé, tônica por tônica, pulso por pulso, medida por medida. O poema-performance combina ainda menos elementos para analisar que os complexos métricos e rítmicos do poema lido. Muitos estudiosos de prosódia insistiram que a frase (musical) fornece um modo mais completo para compreender os padrões sonoros da poesia do que sistemas acentuais, sejam quantitativos sejam silábicos, que fragmentam a poesia em sistemas métricos. A consideração da palavra em performance apoia essa visão, embora o conceito de fraseado e de musicalidade sejam bastante expandidos conforme alguém vai do sistema métrico ao acústico, além do “verso livre” até formas sonoras. Primeiramente, a dinâmica mapeada pela prosódia acentual tem um lugar bastante reduzido no ambiente sonoro da leitura de poesia, em que entoação, altura, tempo, acento (no sentido de pronúncia [algo próximo de sotaque]), peso ou timbre de voz, expressões faciais e corporais não verbais ou movimentos, assim como elementos prosódicos mais convencionais como assonância, aliteração e rima ganham um papel importante. Mas mais importante, sistemas de regularização de análise prosódica falham diante da profusão sônica de uma leitura: é como se padrões sonoros “caóticos” estivessem sendo medidos por coordenadas orientadas em eixos cuja dependência de grandezas independentes de contextualização se revela inadequada. A leitura de poesia está sempre à beira do excesso semântico, ainda que um dado leitor permaneça do lado de cá da borda. De fato, uma das primeiras técnicas da poesia em performance é a ruptura com padrões sonoros razoáveis através da irrupção intermitente de elementos acústicos não recuperáveis por uma análise monológica. Se, por um lado, essas irrupções podem ser altamente sofisticadas, por outro, elas podem também se entregar aos ritmos corpóreos – engasgos, gagueiras, soluços, arrotos, omissões, microrrepetições, oscilações em volume, pronúncias “incorretas”, e assim por diante – isto é, se você tomar esses elementos como aspectos da construção de sentido do poema-performance, como proponho, e não como uma interrupção estranha7.

Prosódia é uma área muito dinâmica para ser restrita ao verso métrico convencional. Ainda assim, muitas abordagens da poesia continuam reduzir as questões do ritmo poético à medida silábica e à regularização dos acentos tônicos, como se a poesia não métrica, especialmente a poesia mais radicalmente inovadora deste século [XX] não fosse mais rica rítmica e acusticamente que as suas contrapartes tidas como formalistas. No espaço acústico da poesia em performance, eu enfatizaria deslocamentos tônicos e assimetria, tanto quanto a disritmia acentual: dissonância e irregularidade, ruptura e silêncio constituem uma força rítmica (ou uma força inversa) no poema sonoro8. Tais elementos que vão contra o ritmo criam, de acordo com Giorgio Agamben, “um desencontro, uma desconexão entre elementos métricos e sintáticos, entre a rítmica sonora e o sentido, tal que (ao contrário da opinião difundida que vê na poesia o locus de uma correspondência conquistada e perfeita entre som e sentido) a poesia vive, na verdade, somente em seu desacordo interno. No momento mesmo em que o verso afirma sua própria identidade quebrando sua continuidade sintática, é irresistivelmente atraído para se dobrar na linha seguinte a depositar o que havia lançado fora de si”9.

Se estúdios de prosódia naufragaram no início do século XX por sua inabilidade em reconciliar a musicalidade da poesia com as classificações métricas estritas, então as récitas de modo proveitoso transformaram o objeto de estudo substituindo a medida pelo ritmo, para usar uma distinção feita por Henri Meschonnic, para quem a métrica é associal e sem sentido, enquanto que o ritmo está fundamentado na historicidade do poema e implica uma socialidade10. A questão deixa de ser a escrita – o texto impresso – versus a oralidade, e passa a ser a acústica corpórea da performance – a auralidade da obra – versus uma abstração ou uma idealização externa que está baseada na ideia na projeção do tempo como um espaço “vazio”, que é linear, homogêneo e progressivo. A nova prosódia requer uma investigação não do tempo abstrato, mas da duração e seus microtons, descontinuidades, espaços estriados e contra-fluxos. A métrica tradicional, com seu pulso de metrônomo, permanece fundamentalmente um sistema euclidiano que é inadequado para uma medição completa das prosódias complexas do século XX, ou mais ainda, de uma poesia bem mais antiga (incluindo o que Tedlock discute em sua contribuição neste livro).

[...].

BERNSTEIN, Charles (org.) Close Listening: poetry and the performed word. New York: Oxford University Press, 1998.
[O texto foi republicado num livro reunindo ensaios e textos diversos de Charles Bernstein, a saber, BERNSTEIN, Charles. My way: speeches and poems. Chicago: Chicago University Press, 1999].

Notas:

[Como alguns trechos foram cortados para a publicação no blog, nem sempre a numeração das notas conforme aqui publicada corresponde à numeração do texto de Bernstein]

1. Há apenas duas coletâneas [em língua inglesa, e à época da publicação do livro, final da década de 1990] que consegui localizar e que abordam a leitura de poesia: Poets on Stage: The Some Symposium on Poetry Reading [Poetas no palco: o Simpósio Some sobre leitura de poesia], ed. Alan Ziegler, Larry Zirlin e Harry Greenberg (1978); e The Poetry Reading: A Contemporary Compendium on Language and Performance [A leitura de poesia: um compêndio contemporâneo de Linguagem e Peroformance], ed. Stephen Vincent e Ellen Zweig (1981). As abordagens das leituras de poesia nessas coletâneas pioneiras são bastante anedóticas. Também notáveis são os relatos anuais do Programa de Residência da São Francisco’s 80 Langdon Street, para os anos de 1981 e 1982, reunidos por Renny Prikitin, Barrett Watten e Judy Moran, que continham um bom número de abordagens articuladas, por diferentes autores, de palestras, leituras e performances realizadas nesse espaço. Mais recentemente, a Poetics Lists [Lista Poética], um arquivo de um grupo de discussão eletrônica no Eletronic Poetic Center (http://wings.buffalo.edu/epc) apresentou diversas vezes considerações de leituras e de conferências (inclusive listas dos presentes às leituras e até mesmo um ocasional relato colhido na hora). Em contraste, como reflexo da prática acadêmica standard, não há nenhuma menção à gravação das performances de poesia de Wallace Stevens em um livro recente sobre o poeta, escrito por Anca Rosu, embora haja alguma ironia no auspicioso título desse livro: The Metaphysics of Sound in Wallace Stevens [A metafísica do som em Wallace Stevens] (Tuscaloosa: University of Alabama Press, 1995), que serve apenas para demonstrar como a metafísica tende a tomar o lugar da física.

2. Ver Jerome Rotenberg, “The Poetics of Performance” [A poética da performance], in Vicent e Zweig, 123. Ver também David Abram, The Spell of the Sensuous [A letra do sensível] (New York: Pantheon, 1996), pp. 241-50.

3. William Harris, The Poetry and Poetics of Amiri Baraka: The Jazz Aesthetic [A poesia e a poética de Amirir Baraka: a estética do jazz] (Columbia: University of Missoury Press, 1985), pp.109-110; Harry extrai as partes do texto que cito em seguida. Ver também a entrevista de Harry com Baraka, em que o poeta concorda que seu poema é uma partitura e diz que está principalmente interessado na performance “[o texto escrito] é menos importante para mim” (147). Harris discute brevemente as performances de Baraka em pp. 59-60. Ver especialmente sua investigação entre dança, música e a obra de Baraka a partir de p. 106.

4. Ver Nathaniel Mackey, “Other: From Noun to Verb” [“Outro: de nome a verbo”] in Discrepant Engajegement: Dissonance, Cross-Culturality and Experimental Writing [Engajamento dissidente: dissonância, transculturalismo e escrita experimental] (Cambridge: Cambridge University Press: 1993).

5. A passagem é baseada no texto de Andrew Benjamin “Translating Origins: Psychoanalysis and Philosophy” [“Traduzindo origens: psicanálise e filosofia”] in Rethinking Translation: Discourse, Subjectivity, Ideology [Repensando a tradução: discurso, subjetividade, ideologia], ed. Lawrence Venuti (London: Routledge, 1992), p.24; todas as referências são substituições minhas, diferindo do “original” de Bejamin; também cortei algumas frases. Ver também de Benjamin The Plural Event: Descartes, Hegel, Heidegger [O evento plural: Descartes, Hegel, Heidegger].

6. Charles Lock, “Petroglyphs In and Out of Perspective” [“Petróglifos Em ou For a de Perspectiva”], Semiotica, vol. 100, nos. 2-4. (1994), p. 418.

7. Estou ciente do fato de que estudiosos da Prosódia podem mascarar e analisar uma performance poética de modo a ilustrar certa teoria particular (inclusive as mais convencionais) – assim como eu o fiz. Isso não é mais do que apropriado nesse terreno dinâmico semanticamente.

8. A ciência da disprosódia ainda se encontra em sua infância embora seja provável que venha a dominar os estudos técnicos dos fenômenos poéticos não identificados (FPNI) no milênio que se aproxima. O Movimento Disprosódia foi fundado por Carlo Amberio em 1950. Uma tradução de seu principal texto teórico, A dissemia das sílabas mátricas, transposta de uma língua previamente desconhecida em versos hexâmetros “pisca” trocaicos – uma forma que Amberio acredita chegar o mais perto possível dos padrões de pensamento contra-intuitivos do Inglês Norte-Americano não falado – há algum tempo vem sendo preparada pelo Centro para o Desenvolvimento dos Estudos Disáficos (CDED). (O verso pisca, inventado por Amberio, é constituído por rimas internas organizadas por um padrão de fractais).

9. Giorgio Agamben, “The Idea of Prose”, in The Idea of Prose, tr. Michael Sullivan and Sam Whitsitt (Albany: The State University of New York Press, 1995), p. 40. O assunto específico de Agamben na passagem é o enjambement. Agradeço a Carla Billiteri por me indicar a leitura do ensaio. [há uma edição em português do livro: AGAMBEN, Giorgio. Ideia da prosa. Tradução: João Barrento. São Paulo: Autêntica, 2012. Todavia, não conseguimos consultar a versão em português a tempo para a presente tradução, de modo que a citação foi traduzida da citação em inglês, do texto de Bernstein, e a indicação de página nesta nota, também se refere somente ao exemplar norte-americano].

10. Henri Meschonnic, Critique du rythme: anthropologie historique du langage. (Lagrasse: Verdier, 1982).

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