Entre críticos de poesia, acadêmicos, e
jornais especializados, e mesmo entre diversos poetas em atividade, já se
consolidou a noção de que a média da produção poética brasileira recente
demonstra um alto nível de qualidade – o que não quer dizer que não haja quem
conteste, assim como aqueles que sempre veem na produção cultural
presente a decadência de um tempo passado e aqueles que acreditam que a poesia
não tem mais lugar na dinâmica da cultura hoje (mas que sentem necessidade de
falar da poesia, justamente para falar dessa perda de significância, ou desse
seu não lugar). Se os critérios de avaliação, ou mesmo o pensamento crítico
produzido acerca da poesia, são, de um modo ou de outro, enviesados, marcados
ideologicamente, o fundamental parece se deslocar em outra direção: que haja
textos poéticos circulando e com potencial de afetar leitores do mundo de hoje.
Nesse cenário, julgamos que a pergunta mais curiosa que se pode fazer é aquela
que – desviando das querelas de qual poema é bom, qual ruim, qual é “o” poema,
e qual não pode ser, qual deve ser excluído da categoria poesia, etc. – vai
investigar que diferentes práticas e fazeres se agrupam, se encaixam, se reúnem
sob esse nome, ‘poesia’. Que diferentes histórias se contam quando se chama este estranho nome? Começamos aqui uma série, em que sempre uma dupla (de
poetas, ou de leitores de poesia) responde à pergunta “Do que eu falo quando
falo de poesia?”.
A
pergunta, gostava de acreditar, coloca a poesia a meio termo da corrida e da
filosofia. Quanto à corrida (e há mesmo
um ótimo livro, do romancista japonês Haruki Murakami, cujo título é justamente
“Do que eu falo quando falo de corrida”, publicado aqui pela Alfaguara/Objetiva, em
2010), ela é um tipo de atividade sobre a qual não se pode falar enquanto pratica,
ou que, pelo menos, fazê-lo vai dificultar singularmente sua execução a
contento. Quanto à filosofia, pode-se dizer que falar do que ela trata, e
abordar seu modo de pensar o mundo, é já fazer filosofia, e talvez não se possa
pensar, de fato, a filosofia sem já estar com isso filosofando. Ou seja, num
resumo rasteiro, a poesia poderia ser pensada como corrida atravessada de
filosofia atravessada de corrida, ou ao contrário, filosofia atravessada de
corrida atravessada de filosofia. Isso, contudo, ainda não é uma resposta à
pergunta “Do que se fala quando se fala de poesia?”.
Para respondê-la,
começamos nossa série com dois poetas que participaram do primeiro evento
“Bliss não tem Bis”, em novembro de 2012, Thiago Ponce de Moraes e Daniel Massa. Junto com a resposta de Massa, publicamos aqui a segunda parte de seu
diário de viagem durante o Mochilão do Marrocos (a primeira publicamos aqui nesse mesmo blog na postagem "Correspondências - Jogos de Cartas, Cartas de Viagens" no início deste mês), a composição de um postal seu
de Paris e um de seus poemas chuvosos. Junto com a resposta de Thiago Ponce,
poemas selecionados de seu livro mais recente De Gestos Lassos e Nenhuns.
*
Daniel
Massa
Sou coagido a dizer. E, assim, digo. O
resto é forma. E aí se caminha por onde há espaço.
Construo a mim
mesmo no que é dito. Ergo as fronteiras que me divisam do mundo, que me
delimitam como sendo, a partir da palavra. Nesse sentido, dizer é
sobrevivência.
E poesia é
dizer-se. Todo poema é um alicerce de mim. É uma forma, entre outras, de
lançar-me ao mundo. É a possibilidade de criar-me e recriar-me a partir do que
eu digo e, assim, ser. O que surge a partir daí não se sabe. Se conforma, se
transforma, se informa ou se deforma.
Mas não se engane,
não. Isso nada tem a ver com a velha máxima rilkeana endereçada ao jovem poeta.
Vive-se muito bem, obrigado, sem poesia. Há necessidade de feijão, juros baixos
e conexão banda larga de qualidade. O resto é supérfluo.
Como pode então a
poesia, objeto dispensável, sustentar uma condição? Como pode então a poesia,
artigo de perfumaria, fazer-me?
Certa vez ouvi de
uma senhora casada a vida toda com um poeta que o ego do seu marido era do
tamanho de uma Kombi. Todos os poetas são uns egoístas filhos da puta, ela
disse. Eles nunca estão satisfeitos.
Por isso, sinto-me
coagido a dizer. O ego é uma Kombi e exige um espaço para si. Assim, desenho
fronteiras, diviso-me do mundo através da poesia.
Quando falo de
poesia, falo de mim mesmo. Tudo o que é meu é matéria do poema.
O que sustento e
suporto está aí. Mas, perceba, tudo é claro como água suja. Porque, de fato,
trata-se de um eu escamoteado, um jogo de véus em que não se mostra o que se
quer mostrar.
A poesia, enfim, é
uma criptografia de mim.
*
Composição
de postal
Na França, as pessoas andam de bicicleta o
tempo inteiro. Às vezes neva muito e eu vou pra janela dar uma olhada. Neve é
uma coisa muito bonita. Os prédios ficam parecendo a cabeça do Ziraldo, marrons
com o telhado branco.
Volta e meia sou
surpreendido por alguém pedalando, de lugar nenhum para lugar qualquer. E assim
o rastro fino dos pneus vai tatuando a neve recém-caída. Não importa o frio, não
importa a quantidade de gelo que cai do céu. Lá estão os franceses pedalando.
Como diria o poeta,
somos todos a bicicleta dos deuses.
*
jean jacques rousseau na chuva
com cheiro de chuva
quando cheguei rousseau já estava
e desde então tenho o acompanhado
em dia santo e feriado cívico
rousseau sério, rousseau de poucas palavras
tampa de tempo tem pé e tem pó pra todo
lado.
carro zero km, mocinha namorosa, velho com
tosse, pombo gordo
o mundo cabe em rousseau.
mas o mundo não quer caber em lugar nenhum.
e da janela eu vejo
jean jacques rousseau na chuva
mais nada.
e da janela eu penso
em pular
me juntar a rousseau em sua eternidade
cinza
levando lugar qualquer a lugar nenhum
e da janela eu calo
e da janela eu selo
jean jacques rousseau
seja réu
rua
rio
afoga na chuva o que não tem nome em mim.
*
Diário
de Viagem. Marrocos. Parte II.
3 de março de 2013
Meu amigo ainda mastiga a comida da
véspera. Eu já não tenho nada além de um gosto amargo na boca.
Quando o sol nasce
eu quase acredito em deus.
*
São dois dias sem banho. O sol se põe, e as
mesquitas cantam quando chego a Marrakech. Eu me pergunto pra quê existe tanta
gente no mundo.
Sufoco.
*
Não há comida e não há dinheiro. Erro pela
Medina em busca de alguma coisa. O cheiro do pão me leva a um beco sem
eletricidade. Me abaixo através do que parece uma porta e alcanço um porão.
Três homens
trabalham. Centenas de pães acabam de sair da fornalha. De mão em mão eles são
empilhados em um canto.
Compro seis. Tão
bom quanto a carne de cristo.
Junto aos pães
quatro ovos e meio quilo de bananas. Com um euro eu tenho a comida de dois
dias.
4 de março de 2013
Os autofalantes da mesquita anunciam um novo
dia. Me levanto quieto para não acordar meus companheiros de quarto.
Marrakech acorda
com sono.
A Medina está cheia
de gatos. Me sinto bem em companhia de gatos. Quem sabe num futuro não muito
distante eu viva numa casa com duzentos gatos, usando calças mijadas e
desviando das pedras que as crianças atiram nas vidraças.
Tomo um suco de
laranja na praça Jamma El Fna.
Deixo Marrakech a
bordo de um trem.
5 de março de 2013
- Me diz alguma coisa bonita.
- Janela.
6 de março de 2013
Volubilis dá vontade de ser eterno.
A chuva cai
violenta e suja a roupa já suja.
*
Entro num taxi. Não há dinheiro e as
refeições se tornaram escassas.
Jairzinho, Gérson,
Pelé, Tostão, Sócrates. Ele entende das coisas. Não tiro os olhos do taxímetro.
Pergunto quanto vai dar até a gare.
- T'inquiète pas!
Insisto.
- T'inquiète pas,
mon ami.
Quando chego ao
destino ele me diz:
- Si vous n'avez
pas d'argent, pas de problème. C’est la vie.
Mèknes fica para
trás. Levo comigo um pouco de paz para acalmar um espírito que ferve.
O mundo é bão,
Abraão.
T'inquiète pas.
*
Já é noite quando chego a Fès. A Medina é
formada por milhares de estreitos corredores. Não é possível ver o céu. Por
vezes, as casas cobrem as ruas formando túneis que mesmo durante o dia não é
possível caminhar sem o auxílio de uma lanterna.
Saio do Rhiad em
busca de comida. No meio do caminho me dou conta de um erro. Uso
displicentemente uma camisa do Vasco da Gama. Do lado esquerdo do peito,
sustento uma cruz de malta. Não existem cruzes no Marrocos. A Cruz Vermelha se
transforma em Croissant-Rouge. Os letreiros luminosos das farmácias francesas
que sustentam uma cruz verde são substituídos por uma lua crescente.
Entro em um beco
qualquer. Não há ninguém nas ruas. Tiro a minha camisa e a visto pelo avesso.
Procuro caminhar com a mão direita sobre o peito. Me sinto idiota.
Acho uma mercearia.
Crianças se empilham no balcão para comprar doces. Gasto dez dirhams em
bolinhos, chocolates e uma coca-cola quente.
Antes mesmo que eu
pudesse me afastar, ouço um grito acompanhado de risadas.
- Monsieur, votre
chemise est à l'envers.
Agradeço.
De que lado mesmo a
gente vive?
*
O cheiro do couro me enjoa.
- Un feuilleton brésilien a été tourné ici.
Não me entusiasmo.
*
Queria tomar uma cerveja vendo mulheres
passarem.
Não há álcool e as
mulheres não passam.
8 de março de 2013
Chove o dia todo.
Setecentas
mesquitas gritam ao mesmo tempo e todas as pessoas atendem ao seu chamado.
É sexta-feira. Hoje
tudo é mais grave.
*
Crianças jogam futebol onde há espaço.
Ouço uma história.
Certa vez, um jogador marroquino marcou um belo gol e se inspirou em um famoso
meio-campista brasileiro para comemorar. Correu em direção a sua torcida e fez
o sinal da cruz por diversas vezes. Garrafas e sapatos voaram em direção a ele
e antes mesmo que pudesse compreender o seu equívoco, o juiz o expulsou.
Crianças jogam
futebol onde não há espaço.
9 de março de 2013
Durmo na gare para economizar uma diária.
Todo abraço de
chegada me cria um sorriso.
Não caibo na
cadeira da estação.
*
Em Paris sou devolvido ao mundo.
Mas o mundo mudou
enquanto estive fora.
- Monsieur, votre
chemise est à l'envers.
Agradeço.
Ela me veste muito
mais confortável assim.
***
Thiago
Ponce de Moraes
Do
que eu falo quando falo de poesia?
Querido Lucas,
Gostaria de retornar a resposta como
determinado endereçamento, por isso nomeio. Ao menos assim garanto alguma
precisão (como fosse preciso). O quanto adiei responder, saiba, tem a ver com a
própria impossibilidade de seu questionamento. Não é preciso dizer. No entanto,
aí está. Difuso, incerto.
Não consigo
conceber poesia como um termo, um conceito, que se encerra. Um saber-sabido, um
a priori qualquer. Portanto, poderia começar me perguntando (dirigisse-me a mim
mesmo enquanto falo; assim o faço?) se falo de alguma coisa quando falo de
poesia, esta forma de vida. Ou se, de outra forma, enquanto busco na
impossibilidade da fala sobre poesia qualquer dizer sobre poesia acabo por
dizer a própria busca pelo falar sobre poesia sempre, seu caminho, seu
vir-a-ser; nunca seu termo, pois: poesia, em si, como se fosse. Retorno.
A pressa dessas
palavras, como pode ler, pretende falar de alguma coisa. Mas, mais do que isso,
pretende dizer alguma coisa. Dizer, prioritariamente, porque se pretende breve
como uma prece sobre o falar sobre poesia hoje: sob céus sombrios. Prece também
pela graça de pensar no que falo quando falo de poesia (se o faço, se me é
possível fazer). E sobre esse céu sob o qual estamos. Graça. Leve como um dito.
Necessariamente dito em falhas, aos soluços, em balbucios ou gagueiras. Para
quem? Dirá um dos versos de Celan, em Salmo: Louvado sejas, Ninguém.
A poesia, para
Celan, deve atravessar seu vazio de respostas, o terrível emudecimento, as mil
trevas de um discurso letal. A poesia deve continuar sua travessia e, nesse
acontecimento, manter seu estar sempre a caminho. Mas de onde? A poesia, que
busco dizer no emudecimento da fala, só pode ser uma colisão de atravessamentos
que segue em direção a algo aberto, talvez ocupável, como a orla de um
pensamento, ou inocupável, como o mar alto de alguma convicção; ou nem uma
coisa, nem outra.
Afinal, o falar
sobre poesia me parece ser a travessia do estar-a-atravessar da poesia; algo
que não se pode definir, apenas por uma busca perene que objetiva se dizer
enquanto tal. Diário da travessia. Sertão, mar. A fala da travessia é sempre o
seu acaso: dizer; é sempre poder lançar os dados mais uma vez com palavras –
apesar de tudo, por isso tudo, contudo –, como que a golpear a superfície das
coisas; a turvar o chão dos mundos prováveis; a apagar as linhas rápidas das
mais elaboradas convicções.
Quando escrevo
sobre o que falo quando falo de poesia quero fazer sentir alguma vida na vinda
dessas palavras em travessia. Sim. Algo do real dessa vida que nos atravessa. A
fala da travessia é, também, sempre o seu ocaso, o seu fim. Digo: o real não
está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia
– recito da boca de Riobaldo.
*
Vê-la nascer, tocá-la ao acaso as mãos,
Os pulsos de ilegíveis saudades. Então,
Vivê-la; contudo sem pressa, sem gosto,
Sem cartografia que nomeie seu rosto,
Sem nem ao menos pensá-la. Enfim, calá-la
Com um sonho antigo no fundo da alma:
Estrelas ao longe desta paisagem cadente,
Desta tela a ensiná-la o que falta e o que
sente.
Nos gestos da via sem origem ou ocaso,
Não tê-la nunca e todavia velá-la.
*
Estrelas
Sempre
isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Com a palavra longe te aproximas deste
nome,
E de teu nome, arrancado pela Raiz,
Procura os sais.
Confundes a hora da aurora se alvoreces
E tornas originais os que amanhecem
Na palavra dia.
Abissais tuas sílabas soam com a melancolia
Natural da melodia que se oculta
Entre a palavra escuta e a palavra escrita.
Adias os nomes, de vozes te acercas em
portos
Infinitos. E na palavra abismo
Cais.
*
Caligrafia
Não imaginas linguagem alguma –
E a manhã rompe como uma ferida em teus
lábios.
Tua boca se abre, apenas uma palavra sangra
Enquanto passa o dia.
Sépala: na casa do esquecimento afundas,
Folhas no chão e sombras da folhagem das
árvores
Por onde o caminho vaza. A noite
Não precisa de estre-
Las. Riscam a areia tuas folhas,
Uma palavra ainda tem
Luz:
Nada está perdido.
*
Paralela
Mallarmé
Entre a Aurora e a Alvorada uma linha de
azul fina e pálida traça –
Nasce sob o céu, no entanto –
Um círculo que existe e em seu centro –
como do poema um lago, um véu –
Jazes qual o que na vida há de profuso e
simultâneo.
Queres despertar como um sopro, de uma vez,
Ou da relva levantar como o verbo
reverbera,
Pois num esboço de espaços a delinear teus
contornos
Exibes no rosto o que poema algum concebe.
Nem o vento que te abraça te expande ou te
revela,
Nem tuas costas, estes mapas para acervos
de saudades,
Não te legam sem fronteiras e sem leis.
Uma linha de azul fina e pálida traça um
círculo:
E em seu centro te elide – e te estreita e
te enleia sem te ler –
Entre o Anseio e a Angústia de tuas páginas
em branco.
*
Como
das nuvens o teu raio
Há em teu rosto inerte
Algo de hieroglífico (de
Indecifrável) que por todo
Instante basta.
Há em teu rosto algo
Que também passeia pelas
Tuas mãos – há uma renúncia
Trágica que não alude a nada.
E como quem sabe das palavras
Mas limita-se a sorrir,
Deixas de teu rosto Algo
E as memórias ermas daquele
Verão em que escrevias, propondo,
Pois, tuas feições por horas:
Desejo
mais ver
Do que
dizer.
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