O nome dela é o mesmo do da protagonista
dos romances de Carroll, aquela que cai na toca do coelho, vai para um outro
país, a que passa para o outro lado do espelho, o mesmo nome daquela que a
canção pede que não escreva a carta de amor, e ela parece com leveza
assimilá-lo. É possível um poema em que a ponta pese tanto quanto todo um
iceberg. Alice descobriu-o, e fica dali observando as fronteiras, de quando o
cotidiano se abre para o imaginário. Ela publicou aos 20 anos, seu primeiro
livro, Dobradura (7letras, 2008), ao
que deu sequência com as publicações independentes Bichinhos de luz (2009) e Pingue-Pongue
(2012), junto com Armando Freitas Filho, até chegar ao lançado este ano, Rabo de baleia, pela Cosac Naify. Além
disso, vem construindo um acervo de conversas importantes com poetas
contemporâneos na Rádio Batuta,
webradio do Instituto Moreira Salles.
Aqui,
publicamos uma resenha sobre seu livro mais recente, junto com poemas de Dobradura, o vídeo-poema Estação da carioca, e um vídeo em que
ela lê um dos poemas de Rabo de baleia.
Tudo
é tão assustador e leve ao mesmo tempo.
por
Lucas Matos.
Talvez o melhor seja colocar de cara o
quanto esta é uma leitura comprometida, assumindo assim sua estratégia de
mergulho: pretendemos nos desviar temporariamente de como os poemas de Alice Sant’anna
se tecem numa construção do cotidiano, ou mesmo no que poderíamos chamar de
certa encenação da intimidade enfatizando
os laços de sua escrita com Ana C. Simultaneamente, não nos deteremos com vagar
na importância das viagens (ou da própria ideia de viagem), no trabalho
cuidadoso com o corte dos versos e nas elaborações de enjambements que provocam
ambiguidades sintáticas (embora nos interessem seus deslizamentos estruturais
profundos), na observação minuciosa, enfim, do ambiente e das relações/reações
afetivas. Não que qualquer coisa disso possa simplesmente ser lançado de lado
na apreciação de seu fazer poético. Todavia, me parece necessário descartar os
aspectos que a poeta mais evidentemente divide com parte significativa da
produção literária contemporânea (ao menos, no Brasil) para melhor situar as
fissuras que este Rabo de baleia abre
– tanto no que chamaria displicentemente e com certa pressa de representação do
cotidiano, quanto no panorama de nossas letras –, bem como para melhor
identificar sua consistência, vale dizer, sua força enquanto objeto do/que age
no imaginário. Em outras palavras, esta é uma leitura da obra de Alice
Sant’anna comprometida com a especificidade da estranheza que ela inaugura, ou
que ela chama à sua poesia; se quiséssemos usar uma imagem que nos mantivesse
na ambiência marinha insinuada no título, diria que é uma leitura que busca na
poesia de Alice as formas de vida que habitam suas águas mais fundas.
Comecemos
pelo poema que dá título ao livro:
“UM ENORME RABO DE BALEIA
cruzaria a sala neste momento
sem barulho algum o bicho
afundaria nas tábuas corridas
e sumiria sem que percebêssemos
no sofá a falta de assunto
o que eu queria mas não te conto
era abraçar a baleia mergulhar com ela
sinto um tédio pavoroso desses dias
de água parada acumulando mosquito
apesar da agitação dos dias
da exaustão dos dias
o corpo que chega exausto em casa
com a mão esticada em busca
de um copo d’água
a urgência de seguir para uma terça
ou quarta boia, e a vontade
é de abraçar um enorme
rabo de baleia seguir com ela”.
A primeira coisa que chama a atenção é como
o anúncio da aparição de um bicho – que chama toda a tradição das formas de
lidar com a estranheza da vida em outro meio (o mar), que seria igualmente um
ponto de origem da vida, e de grandezas que ultrapassam em muito a medida
humana – se dá somente ao passo que se anuncia a impossibilidade de sua
captura. Assim, se começamos a leitura nos havendo diretamente com uma parte –
que em si já nos ultrapassa, uma vez que enorme – do animal, algo acontece que
subtrai a imagem do todo. Não à-toa, é em um único verso que temos “a baleia”,
na sequência que diz: “o que eu queria mas não te conto/ era abraçar a baleia
mergulhar com ela”, como se o corpo do animal, em sua inteireza, fosse apenas
uma hipótese do desejo do eu-lírico. Nas palavras da poeta, cedidas em
entrevista à Folha de São Paulo: “É
como enxergar só a ponta e deduzir todo um iceberg: ver o rabo de baleia basta
para imaginar que existe um bicho inteiro debaixo d'água. A gente está sempre
tentando agarrar o rabo da baleia, mas ele escapa, é infalível”. Ver o rabo basta para imaginar a existência
do bicho inteiro. Nessa passagem de uma sensação à imaginação, que
completa, que formula, que acrescenta dados mais ou menos compreensíveis, se
inscreve uma forma do perceber e do escrever em que sensação e imaginação
concorrem, se contrastam e se combinam em termos paradoxais, ou bichos estranhos.
Não devemos deixar
de lado o fato de que a parte em questão – rabo – aponta para uma certa
direção, um olhar que se orienta para baixo, ou que vê à frente o que está
atrás. Não se trata de ouvir o canto da baleia, ou ver seu esguichar de água,
seus dentes, coração ou boca, a insinuação da cabeça; estaríamos mais próximos
talvez dos que encontrando ossos de baleia, julgaram estar diante dos restos de
um anjo caído. Isso significa dizer que na passagem disso que se oferece a
minha visão – e que é aquilo que é mais baixo, ou o que me liga a um passado
profundo, uma forma da animalidade mais primeva – à imaginação de um bicho
inteiro e grandioso, se inscreve um desejo de circunscrever com o corpo uma
realidade maior, sendo que a própria magnitude do desejo faz com que algo da
própria parte que se oferece à visão sempre reste por concretizar. A gente está
sempre tentando agarrar o rabo da baleia, mas ele escapa, é infalível.
Ora, essa
combinação vai se traduzir na estrutura de versos cujo princípio parece
apresentar partes incompatíveis com o fim, dando uma condição de realidade
complexa, ou paradoxal, para o que se afirma. Assim, em “cruzaria a sala neste momento”, em “afundaria
nas tábuas corridas”, se o tempo
verbal aponta para uma natureza hipotética, a continuação dos versos concretiza
a ação, trazendo-a para o presente da enunciação, ou criando pequenos choques
verbais, através do que se faz possível afundar num plano, como se a
profundidade pudesse ser criada pelo próprio bicho sem fundo que atravessa as
tábuas corridas. Essa concorrência de termos contrastantes se adensa
traduzindo-se numa ambiguidade sintática, concentrada no verbo “percebêssemos”
cujo objeto pode tanto ser “o bicho” quanto “a falta de assunto”. Encostam-se o
inaudito e o banal, como se o poema tentasse combinar ambos num corpo só,
rápido e fugaz, e simultaneamente insistente, constante. Reúnem-se assim tédio e pavor, agitação e exaustão, sede e afogamento numa
experiência que aparece sempre por partes, pedaços, que se colam e se deslocam,
mas não conseguem formar algo por inteiro. A própria quebra sintática dos
versos parece insinuar um movimento sintático, de maneira que podemos perguntar
se a inteireza do poema não seria também efeito da hipótese do desejo do
sujeito que escreve/lê. Nesse sentido, é bastante curiosa a colagem da mão
estendida que busca o copo d’água para a urgência de buscar uma boia, o esforço
de manter-se à tona. Como numa montagem cinematográfica em que o gesto
permanece, porém o contexto muda, do saciar cotidiano da sede, para o escapar
do afogamento.
Vejamos que será
por meio de uma espécie de tripla figuração da água em estado líquido que
podemos pensar algo como o cotidiano
no poema: primeiro, ela aparece enquanto estagnação
– algo que simultaneamente atrai mosquitos e provoca um pavor de tédio, ou um
tédio do pavor – em seguida enquanto ânsia,
necessidade de satisfação, de descanso da insistência dos dias (o corpo que busca um copo), e justamente
aqui, no momento em que a água aparece enquanto algo contido em bordas, o excesso, a água como meio diferente, de
equilíbrio diferente, é preciso flutuar, é preciso uma dinâmica da urgência
para evitar o afogamento. Se é possível falar em cotidiano aqui, é através
dessa estranha combinação de durações – estagnação,
ânsia, excesso. O poema encerra com um retorno ao tema do desejo, agora
deslocado, já não se quer a entrega do abraço à baleia, mas um abraçar o rabo,
um seguir com, ceder ao movimento.
O poema que inicia
o livro tem um outro, como duplo, ou contraparte, gêmeo estranho, que na edição
da Cosac Naify aparece na contracapa e que segue assim:
“a sombra do avião atravessando
a copa das árvores não carrega ninguém
que se despeça ou tome chá
água fervida em bule de ágata
na sombra do avião não há quem acorde
com os pés pendurados pra fora do colchão
não há ninguém que uma vez tenha se
assustado
com o sangue do nariz
colorindo de vermelho a cama
em plena madrugada a sombra do avião
não faz sentir saudade nem pena
nem vontade de ir com ele e cruzar
a copa ou o quarto
pode apenas olhar pra baixo
quem vê a sombra do avião
na copa entre as asas”.
No espaço comum que os dois poemas parecem
partilhar, uma sucessão de deslocamentos se opera: aqui, mais uma vez algo de
uma ordem de grandeza do enorme, do tamanho desmedido, aparece e se furta a
aparecer ao mesmo tempo, mas diferentemente do animal do mar, temos uma máquina
aérea, e diferente do rabo, temos uma sombra. Uma sugestão de leitura, a ser
retomada mais tarde, é justamente a de que entre esse fundo mar e o céu, animal
e máquina, rabo e sombra que o livro de Alice constrói seu atravessamento. A
própria posição do olhar é diametralmente oposta, se o bicho afundaria nas
tábuas corridas, ou seja, eu o vejo abaixo, a sombra atravessa a copa das
árvores, eu a vejo acima (oposição também de espacialidade, a dinâmica do
espaço fechado, e do espaço aberto). Mas o que se anuncia nessa sombra? Ou
ainda: o que constitui a sombra do avião? Ela é um esvaziamento, tudo aquilo
que não contém. Ela é aquilo que se
descola, se separa das pessoas, em certas experiências de passagens: do sono à
vigília, de um espaço a outro, do estar junto à distância, do líquido ao vapor.
Por isso mesmo, não provoca, não convoca o afeto, a sombra não faz sentir. Mas nesse não provocar de saudade, pena e
vontade residiria uma potência, ou um saber – o de olhar para baixo. O de
voltar o olhar para aquilo que está aqui. Aqui, não o ver basta para imaginar, mas ver
só pode levar a olhar, não a dinâmica entre uma sensação e a imaginação,
antes, a entre uma sensação e a percepção, o observar. Educação pela sombra.
Resta a estranheza do corte do verso final: “na copa entre as asas” parece
brincar com a polissemia de uma palavra como copa, uma parte da planta, uma
parte da casa, e nas asas se misturam tanto avião quanto os bichos alados que
residem nas árvores.
A
exploração da zona entre o rabo e a sombra, entre o imaginário e a observação,
constitui uma experiência que ganha corpo ao longo do livro, seja nos colocando
diante de uma janela de um veículo em movimento (“Há aquilo que fica firme (um
poste)”), da chegada a uma casa de família para intercâmbio (14, dochester place), de poemas em que
se trata quase sempre de uma descoberta das coisas em trânsito, ou de um
observar do noturno, caminhar solitário entre paredes de vidro (“a enorme bola
branca”); seja em poemas que abrem para um mundo em que os corpos estão
dispostos de modo distinto, e um eucalipto pode crescer dentro do corpo (“O que
era estranho daquilo tudo”), uma bailarina de caixa de música girando no ar
aparece no abrir da boca (“Se ficar bem quieta”) e as máquinas e os objetos
inanimados revelam seu parentesco com os insetos (carros são besouros gordos (os primos), o rumor dos helicópteros se
limita com o das abelhas (“o postal de clara me alcançou”), e as cadeiras
tombadas são insetos de casca redonda tentando se desvirar sozinhos
(“impossível sentar-se diante de tantas cadeiras”)). Da fricção entre esses
dois gestos de escrita, Alice tira uma espécie de suspense novo, uma sensação
de suspense sem alívio ou intensificação da tensão, um suspense em suspenso, em
que o que há de terrível encontra um modo zen, a tranquilidade diante do que
ameaça a vida. Um poema, por exemplo:
“A ARANHA SE ESCONDIA
atrás da parede como que
para dar o bote
a projeção da sombra as pernas
contorcidas quase troncos
de uma árvore nascendo do chão e do teto
lúgubre lúgubre mais que lúgubre
o susto me recomendava
a correr tomar um táxi
mas ao mesmo tempo me forçava
a caminhar lentamente em torno da aranha
e olhar bem de perto
do que é feita (aço maciço): material do
medo
me aproximar das pontas
das pernas que não são pés
lanças apontadas para o chão
que a qualquer momento se desgarram
e enlaçam a presa, têm vida própria
os tentáculos de aranha
eu sozinha com ela
não espantaria ninguém
se ela sumisse comigo”.
Se, por um lado, o poema lembra
imediatamente Maman, escultura de uma
aranha gigante de Louise Borgeuois, por outro, ele nos leva ao tema popular e
antigo da fobia da aranha. O aracnídeo atrás da parede. Esconder-se é um gesto
calculado, do que ameaça, o primeiro passo para um ataque. Ao convocar esse
registro, o poema vai numa gradação do mais sutil e que mais estimula o
imaginário (a projeção da sombra) ao mais concreto (pernas) e a uma ampliação
de sua magnitude (troncos), para em seguida se espalhar (nascendo do chão e do
teto) nos modos de um adensamento por multiplicação, contágio, se instaurando
na linguagem pela repetição, por uma intensidade que afeta o dizer. A gradação
já insinua o susto – numa espécie de ritmo da imaginação, quase alucinatório –
que será desmembrado em um conselho (me recomendava), da ordem da prudência e
da razão, e um afeto (ao mesmo tempo me forçava) da ordem da coação e da
paixão. E essas duas forças serão desenvolvidas em naturezas opostas, a
recomendação é por uma fuga, em modo acelerado (o táxi como garantia lógica de
segurança), o que no susto força, entretanto, impõe uma lentidão e um contato
próximo – um olhar de perto. Olhar bem de perto significa ver uma dispersão
material, um corpo mutante, mutável, que é tanto metal, e então pontas, lanças,
mas quando ganham vida, tentáculos. O final confirma e subtrai a expectativa: a
cena da captura, o eu-lírico feito de presa, entretanto, hipotética (hipótese
do desejo de quem lê, ou de quem escreve, de ambos?) e mais, sem espanto – por
força do hábito do terrível, ou, antes, tranquilidade da observação de perto do
material do medo. Aqui, repete-se a cena do “ir com”, estando a vontade (tanto
ela quanto seu oposto: nenhuma resistência) subtraída da equação. É indiferente
o que se quer, estar sozinho com a aranha, do material do medo feita, é se entregar
a uma natureza que pode sumir com você.
Essa
fobia do animal todavia tranquila retorna, mais tarde, na observação do
interior, em Ausência.
“ausência
tenho te escrito com calma
cartas em um caderno azul
arranco da espiral e não posto
por preguiça ou nem morta
tenho medo da espera
durante dias ou semanas um animal horrível
(espécie de raposa) vai me perseguir
por dentro, ou serei eu mesma
(um rato?) a me roer
enquanto uma resposta não chega
perco muito tempo tentando
dar nomes aos bichos
que sobem a cortina do quarto”.
Aqui o tema da destinação, de uma escrita
que se provoca por ausência, aparece com sua funcionalidade, sem espanto,
sabotada – escrever com calma justamente porque não se vai enviar, as cartas.
Trata-se de uma preguiça, uma exaustão dos dias, mas também de uma recusa –
medo da espera, tédio pavoroso da falta de resposta. O medo provoca uma cisão,
um animal – mamífero mutante, raposa, eu, rato – me persegue dentro do corpo.
Enfatize-se aqui a combinação de contrastes entre perseguir e o interior do
corpo, que depois se concretiza numa ambiguidade sintática, de modo que não
sabemos se “enquanto uma reposta não chega” se refere a roer, ou a perder tempo
dando nome a bichos. A cena final é uma forma de profanação: o tema do dar nomes
aos bichos, atividade do primeiro homem na primeira manhã, é abordado num
deslocamento, ou inversão radical de termos (fazendo, inclusive, ecoar em
retrocesso – com implicações fundas para uma compreensão de questões de gênero
– a pergunta popular ‘é um homem ou um rato?’ em “serei eu mesma/ (um rato?) a
me roer”). A mulher, num dia como os outros, num quarto, perde tempo numa
atividade que não é definitiva, nem inaugural. Acrescente-se que o verso final
ainda deixa margem para se pensar que não se trata de bichos infestando o
ambiente, mas suas imagens impressas no tecido da cortina. É com calma, quase
indiferença, que se diz aqui não há Adão.
Por
fim, meu assassino.
“meu assassino
hoje encontrei meu assassino
dispersa, olhei
para a plateia e lá estava ele
os olhos fixos em mim
soube na mesma hora
de quem se tratava
tentei disfarçar a chuva que deixou a
franja
bagunçada na frente dos olhos
mas o assassino me olhava
e eu revidava: era um jogo
sabia que a qualquer respiração
se eu me desconcentrasse ou se tropeçasse
ele não perdoaria nunca (isso já aconteceu
antes)
a diferença é que agora sei
como se ele se chama sei
o formato do maxilar
e como ele me olha com esses olhos de
assassino
pensei em chamar a polícia, os jornais
pensei sobretudo
em mudar de cidade
e não contar para ninguém
assim o meu assassino me procuraria
nos mesmos lugares de sempre
mas frustrado voltaria para casa
e me escreveria longas cartas
dizendo fique avisada, seus dias estão no
fim
contudo meu assassino jamais seria
capaz de me encontrar
e por isso as longas cartas
que ele levaria ao correio muito bem
dobradas em envelopes com cheiro
de canetinhas coloridas
não chegariam a parte alguma
pois não constaria o meu nome
em nenhuma página amarela
ou conta de luz
meu assassino bateria na porta
da minha antiga casa
eu o convidaria para entrar
ofereceria um café e diria
que pena! que desencontro! que perda!
ela não mora mais aqui”.
Diferente dos outros poemas – em que se vê
algo que poderia estar ali, ou que está como imagem mas não provoca, ou que se
esconde para o bote, ou em que se começa pelo registro da ausência – temos a
positividade de um encontro anunciado: ele não só é possível, como concreto,
algo da ordem do acontecimento. Encontro com o duplo que é o anúncio, a via possível
para a minha morte. O saber imediato de quem se trata parece evidenciar o
quanto cada um é um lado de uma moeda, o quanto se compartilha de uma relação
única na existência. Instaura-se uma conversa de olhares, um marcado pela
dispersão, pelo que está em movimento, sem concentração, outro fixo, obcecado.
O poema enfatiza o flerte com o jogo infantil do detetive, assassino, vítima –
importante: estando o detetive subtraído. Os gestos da vítima se constituem de
uma espécie de jogo do teatro: o assassino na plateia, ela num jogo de
disfarces, confusões de identidades cambiantes, olhar que se esconde na franja.
O teatro que traz como que embutido o tema de uma temporalidade da respiração
marcada, bem como de uma dinâmica temporal distinta em que o que ora acontece é
de algum modo uma repetição em diferença de algo já acontecido. A dissemelhança
que se instala é da ordem de um saber retido – uma observação acumulada – que
segue desde o nome, ao corpo, ao gesto que assina, que identifica o assassino.
De algum modo, o assassino se instala numa ordem do familiar ameaçador. Um
suspense em suspenso. A imaginação leva a uma fantasia, como um modo necessário
para lidar com o horror, desdobrada em direções diferentes: (a) buscar a
segurança física, o funcionamento de um estado – polícia, jornais –; (b) se
entregar à vertigem imaginativa numa fuga em silêncio, rumo a um
desaparecimento (sem bicho, assassino, seguir, subtraindo-se subitamente da
cena) dos registro, do sistema, do estado. O assassino é deixado ao registro da
ausência, do cotidiano, fadado a escrever cartas que não serão entregues mesmo
que postadas. Mas trata-se de movimento que é, de algum modo, pouco concreto
porque de algum modo o sujeito não estaria em outra cidade, em outro ponto
localizável, mas no mesmo, num outro modo de estar. E o (re)encontro, esse
hipotético, não poderia levar a um reconhecimento. “Ela não mora mais aqui”,
moveu-se para as profundezas de uma linguagem.
Os
gêneros que trabalham o medo, seu estímulo, sua observação enquanto acontecimento
físico e psíquico, costumam operar a partir de acelerações e súbitas
desacelerações do ritmo cardíaco. Apesar de Rabo
de baleia acumular poemas de períodos diversos, nele, Alice Sant’anna
consegue trabalhar com o sentimento, chamando-nos a acompanhá-lo, a uma espécie
de calma poética diante do susto, de trabalho que convoca o imaginário à ação
enquanto exercício de fazer vazar as fronteiras da percepção, mas que se volta
para um certo exame e enxame dos afetos. Como se ela convidasse o leitor a uma
pequena festa de matérias obscuras e voláteis, impossíveis de fixar e
horríveis, que nos tomam, nos forçam a querer ver bem de perto, e então sumir,
se deixar sumir. A vontade é de seguir com ela.
***
*
***
diálogo de peixes
nara tem um aquário
redondo no centro da mesa
em vez de uma fruteira
ou um abajur
nara gosta de assistir
à conversa dos peixes.
outro dia reclamavam
do calor e nara
foi para o chuveiro
se refrescar de madrugada
é um péssimo hábito
o peixe vermelho disse
dormir de cabelos molhados
*
o gato
o gato me olha sonolento,
perto dele nem sei quem
se arrepia mais: eu
ou ele, com as retinas
grudadas no espelho: ele
em mim, enquanto me
curvo para tirar os
brincos, já é cedo e
o gato se assusta quando
olho cara a cara, desafio
na contramão, enfrento
os bigodes mas ele
se esquiva, orelhas
dispersas feito radares
rondando, não: atentos
na visão panorâmica,
o gato finge concentração.
*
o que sei sobre os gatos
1- os gatos vigiam plantas
no vaso, um par de sapatos
e todos os objetos inanimados, eles
olham e às vezes deslizam
as pálpebras, permitem
um breve cochilo
2- os gatos têm bigodes
como antenas de insetos, são
fios eriçados que espetam e, bem como
as orelhas, estão sempre atentos
a movimentos, ruídos ou
silêncios repentinos
3- os cachorros mexem o rabo
quando estão felizes, os gatos mexem o rabo
quando estão nervosos: quando estão
contentes
os gatos fazem barulho de motor
que se chama ronronar
4- os gatos lambem as patas e as partes
íntimas e ficam com cheiro ruim de saliva
de gato, mas depois ficam cheirosos
porque é assim que eles tomam banho
5- raramente os gatos atendem pelo nome
mas não são metidos
as pessoas é que são muito bobas
*
perguntou se eu andava escrevendo
disse que tinha lido o meu nome
em algum lugar ou imaginou ter lido
o que dá no mesmo
era sexta e o ônibus demorava
um menino apontou para um disco voador
que brilhava vermelho e azul
a mãe resmungou
é uma antena, filho
subo no 569 e tenho vontade
de jogar o caderninho pela janela
imagino fogos de artifício
seria mesmo surpreendente
ter um ato de coragem
*
quando keith jarrett resolve tocar
i loves you porgy no ônibus
o humaitá parece que chora
papai disse que a gente é feito ponte
inabalável como mármore
ou frágil que nem palito
de fósforo
se alguém me convidar
finjo que não é comigo
levanto do banco e danço
com os braços pra cima
*
a janela inteira aberta
convida um inseto
a me acertar
como foguete
aguardo
sem armaduras
o susto
que me explodirá
como estudado
*
as formigas
assisto
antes de dormir
o trajeto das formigas
que cruzam a parede do meu quarto.
engraçado: elas caminham
em fila mas quando
uma encontra outra cara
a cara, se comunicam
se cheiram? como cachorros
e continuam o curso.
penso
no que atrai as formigas:
não guardo balas caramelos chiclete
e no entanto meu quarto
vive repleto delas - as formigas
sobem pela mesa no relógio
roupas e armário, estão por toda a parte
mas isso só no escuro.
de dia as formigas se escondem
e reaparecem à noitinha, um pouco
antes de eu apagar
a luz
***
![]() |
Alice Sant'anna no Encontro de poesia "Bliss Não Tem Bis", 29/11/2012. |
***
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