Talvez haja uma dimensão dessa coabitação entre
desenho e – não chega a ser ainda palavra, talvez linguagem, ou vá lá –
narrativa que é o comic (história em
quadrinhos, tanto em tiras, quanto em grapphic novels) e que o argentino Pablo
Homlberg sabe pôr a nu como poucos e poderia quem sabe ser encontrada em uma
palavra: encanto. Trata-se da especificidade do que os quadrinhos dão a ver, ou
fazem ver, de sua forma própria de ensinar a olhar as coisas do mundo
descobrindo passagens insuspeitas de um modo de uma experiência se desenhar na
nossa retina a outro. Não se trata de dizer que eles nos restituem uma
comunidade original ou uma visão encantada do mundo, há tiras em Éden e Puertas del Éden que são secas de desencanto; só é preciso reparar
que, nelas, busca-se a forma de olhar de que talvez falasse Alberto Caeiro. São
quadrinhos que parecem nos dizer: “Creio no mundo como num mal me quer”.
Se
o primeiro trabalho de Kioskerman (Señor del Kiosko, 2004-2006) ainda se
mostrava, como ele faz questão de apontar em diversas oportunidades, marcado
pela leitura de Macanudo e influenciado pela dinâmica do emprego como
publicitário, em algum ponto, a procura pelo chiste se esgota, e marcado por um
momento de dor, ele começa a experimentar outra dinâmica, usando sempre tiras
de quatro quadros, e tendo em mente a ideia de uma publicação em livro, daí
surge Éden (2006-2009), e depois Puertas del Éden (2010-2013). Aqui,
optamos por publicar as tiras do modo como elas estão dispostas nos livros, em
quadriláteros (2 quadros por 2 quadros), que difere da forma como aparecem na
internet (sequência horizontal de quatro quadros). Se os livros apresentam uma certa continuidade da investigação, do traço, da forma, da experimentação, não deixa de se notar no que foi lançado esse ano um tom mais noturno, uma dinâmica do movimento para o recolhimento, para uma interiorização, enquanto que no primeiro, havia um esforço da atenção para com as coisas, agora esse mesmo esforço se dobra para o espaço. Com relação a tais
instantes, ou a esses pequenos acontecimentos, talvez a melhor indicação seja a
do próprio autor: é necessário ler com o corpo.
Além dos quadrinhos,
selecionamos de seu blog dois poemas e uma pequena crônica sobre cavalos; junto
com um trecho de vídeo veiculado sobre o desenhista em reportagem da TV Brasil.
De algum modo, parece ser perceptível o quanto seu exercício com a palavra se
alimenta e retorna a esse movimento no não movimento, ou movimento estático,
que compõem os quadrinhos.
Assinam a tradução
dos textos e das tiras que compõem essa postagem Lucas Matos e Thiago Gallego. Indicamos,
para os interessados em se reter mais tempo e olhar mais de perto o trabalho de
Kioskerman, o seu blog e o site em que publica suas tiras.
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De Señor de Kiosko (2004-2006).
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De Éden (2006-2009).
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De Puertas del Éden (2010-2013).
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Beto
e Artur, à meia-noite.
Dormimos na varanda.
Puseste o despertador para bem cedo.
Fazia um ruído forte
que me assustava
e me reconfortava.
Me ensinaste a ver a lua
e as árvores
e os tordos-músicos.
Não sei se me faltas
porque em mim segues
tão vivo como naqueles verões
e invernos
em que foste meu mestre
e meus dois avôs
juntos.
Perdoa-me porque não fui a teu enterro.
Desde então não sei como encarar tua morte.
Fiquei ainda um menino.
Mais crescido quando estava contigo.
E manejávamos os caminhos.
Se estavas aqui,
te dava um abraço.
Talvez me podias responder
Com algum sonho deslumbrante.
Terei um filho.
Escrevi um livro.
Agora espero
me tornar
uma
árvore.
*
A
profecia de Jaime, o Distraído, tal como contaram a Josefa, a Apática
E o mundo, como o conhecemos, terminou
quando o planeta se dividiu em cinco
trabalhos
para cumprirem cinco grupos distintos
de humanos.
Todos os humanos, sem que um só faltasse.
Nem mesmo Jaime, o Distraído.
Nem Josefa, a Apática.
E cada grupo entoou uma vogal distinta,
em uníssono.
Cinco notas imensas,
criando uma harmonia sagrada
de um só acorde eterno.
Uma onda de luz
Elevando-se ao Cosmos inteiro.
A nota que salvou o planeta
e
fez
renascer
o
Universo.
*
Cavalos
Quando era menino tinha um cavalo que se
chamava “Bolim”. Digo “tinha”, não que fosse meu, mas era ele que eu usava e,
chegando pouco a pouco ao ego, já me havia adonado dele em minha imaginação.
Era um cavalo que havia sido usado para correr em rachas e costumava disparar
se o deixasse andar muito. O que acontecia era que seu instinto animal o levava
a se recordar do impulso para a carreira.
Uma vez disparou
por um caminho de terra que desembocava na estrada. Eu tinha vestido luvas de
couro porque me disfarçava de Lucky Luke, e não conseguia freá-lo porque as
rédeas me escorregavam das mãos quando as puxava. A situação era desesperante
e, temendo o pior, me atirei do cavalo. Me entreguei ao que quer que fosse,
porque o cavalo estava galopando completamente desgovernado. Algum fantasma deve ter me agarrado, porque
nada me aconteceu. Me recordo completamente da sensação de paz que senti quando
me atirei no vazio, entregando-me ao capinzal alto dos barrancos ao lado da
estrada.
Outra vez, o
“Bolim” disparou quando eu estava no encalce de uma vaca que havia se separado
do rebanho. Levantava de madrugada para ajudar em tarefas como tourear as vacas
e levá-las de um lugar para outro. Era o que havia para ser feito, e o cavalo
era a ferramenta. Dessa vez, tampouco consegui pará-lo e ele seguiu correndo,
atravessando o campo, até que deu de cara num alambrado, quebrou-o, e logo ali
parou repentinamente.
Outro cavalo
complicado era um pequenino chamado “Chupeta”. Era bem sem vergonha e rebelde.
Era um pequeno xucro. Com um amigo apostei quem podia domá-lo. Na verdade,
apostamos quem aguentava mais tempo em cima. Ao meu amigo, corcoveou e o lançou
fora de um golpe. A mim, acabou me acertando contra uns galhos e assim me
derrubou. Não guardo rancor, além disso, ganhei a aposta.
Depois me lembro do
“Pintassilgo”. Era manso, pura bondade. Era como um monge zen. O “Pintassilgo”
era o cavalo para crianças, não havia problemas com ele. Acabou sendo violado
por um grupo de touros, quando sem querer cometeram o erro de mesclar animais
que não deviam se misturar, em um curral. O coitado morreu. Imagino o que
deverá ter sofrido. Há pouco tempo me inteiraram da história. Meus velhos,
sabiamente, não me contaram nada na época. “Pintassilgo”, lembro você como era.
Passei muito tempo
da minha infância em cima de cavalos. Eram meus melhores amigos, os cavalos e
os cachorros. Para alguém que não teve irmãos homens e que passava tanto tempo
sozinho, eram amigos. Sinto falta deles. Não entendo porque não aparecem em Éden. Talvez estejam para além,
inclusive, disso.
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