Ontem, 15/07/2013, completaram dez anos
desde a morte de Roberto Bolaño. Há cerca de cinco, por recomendações de
Carlito Azevedo, encontramos com Os
Detetives Selvagens, romance que o autor chileno teria escrito como uma
carta de amor a sua geração, com direito a experimentações com gêneros diversos
– escrita de diário, entrevista documental, romance policial – e personagens
principais elípticos, ou significativamente fugidios. Ali, se encontram a
Cidade do México, os poetas real-visceralistas, e suas soluções para editar uma
revista de poesia, ali o deserto corta a pele, como há de cortar.
A partir da
primeira parte do livro – o diário do jovem Juan García Madero – Marcio
Junqueira e a artista plástica Daniela Seixas fizeram uma história em quadrinhos
que imagina os primeiros passos, os diferentes percursos de vida e de escrita
de um poeta iniciante. Aqui, os quadrinhos silenciam, criam, ao contrário do
que se poderia esperar, outras lacunas dentro das lacunas que já existiam no
romance, num comentário metapoético, em que a própria escrita ou a pergunta por
poetas/poesia se converte em mistérios de detetives impossíveis. A HQ foi
publicada, pela primeira vez, na revista Bliss,
de 2009. Hoje, disponibilizamos um download de seu arquivo em pdf, além de
publicarmos aqui um trecho do texto de Bolaño, na tradução de Eduardo Brandão
publicada pela Companhia das Letras.
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Baixe aqui a História em Quadrinhos baseada em Bolaño criada por Marcio Junqueira e Daniela Seixas
ou
Leia aqui a História em Quadrinhos baseada em Bolaño criada por Marcio Junqueira e Daniela Seixas
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Baixe aqui a História em Quadrinhos baseada em Bolaño criada por Marcio Junqueira e Daniela Seixas
ou
Leia aqui a História em Quadrinhos baseada em Bolaño criada por Marcio Junqueira e Daniela Seixas
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Trecho
de Os Detetives Selvagens
2 de novembro
Fui cordialmente convidado a fazer parte do
realismo visceral. Claro que aceitei. Não houve cerimônia de iniciação. Melhor
assim.
3 de novembro
Não sei muito bem em que consiste o realismo
visceral. Tenho dezessete anos, meu nome é Juan García Madero, estou no
primeiro semestre de Direito. Não queria estudar Direito, e sim Letras, mas meu
tio insistiu e acabei cedendo. Sou órfão. Serei advogado. Foi o que disse ao
meu tio e à minha tia, depois me tranquei no quarto e chorei a noite inteira.
Ou, pelo menos, boa parte dela. Depois, com aparente resignação, entrei na
gloriosa Faculdade de Direito, mas ao fim de um mês me inscrevi na oficina de
poesia de Julio César Álamo, na Faculdade de Filosofia e Letras, e dessa
maneira conheci os real-visceralistas, ou visce-realistas, e até mesmo
vice-realistas, como às vezes gostam de se chamar. Até então eu havia assistido
quatro vezes à oficina e nunca havia acontecido nada, o que é um modo de falar,
porque observando bem sempre aconteciam coisas: líamos poemas, e Álamo,
conforme seu humor, elogiava ou pulverizava os textos; alguém lia, Álamo
criticava, outro lia, Álamo criticava. Às vezes Álamo se chateava e pedia que
nós (que naquele momento não líamos) também criticássemos, então criticávamos,
e Álamo começava a ler jornal.
O método era perfeito para que ninguém
ficasse amigo de ninguém ou para que as amizades se cimentassem na doença e no
rancor.
Por outro lado, não posso dizer que Álamo
fosse um bom crítico, embora sempre falasse da crítica. Hoje creio que falava
por falar. Sabia o que era uma perífrase, não muito bem, mas sabia. Não sabia,
porém, o que era uma pentapodia (como todo mundo sabe, na métrica clássica esse
é um sistema de cinco pés), tampouco sabia o que era um nicárqueo (um verso
parecido com o falêucio), nem o que era um tetrástico (uma estrofe de quatro
versos). Como sei que ele não sabia? Porque cometi o erro, no primeiro dia da
oficina, de lhe perguntar. Não sei em que estaria pensando. O único poeta
mexicano que sabe de cor essas coisas é Octavio Paz (nosso grande inimigo), os
demais nem têm ideia, pelo menos foi o que me disse Ulises Lima minutos depois
de eu me integrar e ser amistosamente aceito nas fileiras do realismo visceral.
Fazer essas perguntas a Álamo foi, como não demorei a perceber, uma prova de
minha falta de tato. A princípio pensei que o sorriso que me dirigiu fosse de
admiração. Logo me dei conta de que não passava de desprezo. Os poetas
mexicanos (suponho que os poetas em geral) detestam que lhes recordem sua
ignorância. Mas não me atemorizei e, depois de ele destroçar um par de poemas
meus na segunda sessão de que participei, eu lhe perguntei se sabia o que era
um rispetto. Álamo pensou que eu lhe exigia respeito a meus poemas e desatou a
falar da crítica objetiva (para variar), que é um campo minado por onde deve
transitar todo jovem poeta, etcétera e tal, mas não o deixei prosseguir e, após
lhe esclarecer que nunca em minha curta vida eu havia pedido respeito a minhas
pobres criações, tornei a formular a pergunta, desta vez tentando pronunciar
com a maior clareza possível.
- Não me venha com merda, García Madero -
Álamo disse.
- Um rispetto, querido mestre, é um tipo de
poesia lírica, amorosa, para ser mais exato, semelhante ao strambotto, que tem
seis ou oito hendecassílabos, os quatro primeiros em forma de sirvente e os
seguintes construídos em parelhas. Por exemplo... - eu já me dispunha a lhe dar
um ou dois exemplos, quando Álamo se levantou de um pulo e deu por encerrada a
discussão. O que aconteceu em seguida está envolto em brumas (apesar de eu ter
boa memória): lembro da risada de Álamo e das risadas dos quatro ou cinco
colegas de oficina, possivelmente coroando uma piada às minhas custas.
Outro, em meu lugar, não teria posto
novamente os pés ali, mas, apesar de minhas infaustas recordações (ou da
ausência de recordações, no caso tão ou mais infausta que a retenção
mnemotécnica destas), na semana seguinte lá estava eu, pontual como sempre.
Creio que foi o destino que me fez voltar.
Era minha quinta sessão na oficina de Álamo (mas pode ter sido a oitava ou a
nona, ultimamente notei que o tempo se encolhe ou se estica a seu arbítrio), e
a tensão, a corrente alternada da tragédia se sentia no ar, sem que ninguém
conseguisse explicar a que isso se devia. Para começar, estávamos todos
presentes, os sete aprendizes de poeta inscritos inicialmente, coisa que não
havia acontecido nas sessões precedentes. Também: estávamos nervosos. O próprio
Álamo, normalmente tranquilo, mal se aguentava. Por um momento pensei que
talvez houvesse acontecido algo na universidade, uma fuzilaria no campus de que
eu não estivesse a par, uma greve surpresa, o assassinato do decano da
faculdade, o sequestro de um professor de Filosofia ou algo do gênero. Mas nada
disso havia acontecido, e a verdade era que ninguém tinha motivos para estar
nervoso. Pelo menos objetivamente, ninguém tinha motivos. Mas a poesia (a
verdadeira poesia) é assim: ela se deixa pressentir, se anuncia no ar, como os terremotos
que, segundo dizem, alguns animais especialmente aptos a tal propósito
pressentem. (Esses animais são as cobras, as minhocas, os ratos e certos
pássaros.) O que aconteceu em seguida foi tumultuado mas dotado de algo que,
mesmo correndo o risco de ser cafona, eu me atreveria a chamar de maravilhoso.
Chegaram dois poetas real-visceralistas, e, a contragosto, Álamo os apresentou
a nós, embora só conhecesse pessoalmente um deles; o outro conhecia de ouvir
falar, ou seu nome não lhe era estranho, ou alguém lhe havia falado dele, mas
mesmo assim o apresentou.
Não sei o que eles teriam ido fazer lá. A
visita parecia claramente de natureza beligerante, embora não isenta de um
matiz propagandístico e proselitista. A princípio, os real-visceralistas se
mantiveram calados ou discretos. Álamo, por sua vez, adotou uma postura
diplomática, levemente irônica, de esperar os acontecimentos, mas, pouco a
pouco, ante a timidez dos estranhos, foi se encorajando, e ao cabo de meia hora
a oficina já era a mesma de sempre. Então começou a batalha. Os
real-visceralistas puseram em dúvida o sistema crítico que Álamo adotava; este,
por sua vez, chamou os real-visceralistas de surrealistas de araque e de falsos
marxistas, sendo apoiado no embate por cinco membros da oficina, ou seja, por
todos menos por um cara muito magro, que andava sempre com um livro de Lewis
Carroll debaixo do braço e que quase nunca falava, e por mim, atitude que com
toda franqueza me deixou surpreso, pois os que apoiavam Álamo com tanto ardor
eram os mesmos que recebiam com atitude estoica suas críticas implacáveis e que
agora se revelavam (o que me pareceu surpreendente) seus mais fiéis defensores.
Nesse momento decidi pôr meu grão de areia e acusei Álamo de não ter ideia do
que era um rispetto; intrepidamente, os real-visceralistas reconheceram que
eles também não sabiam o que era isso, mas minha observação lhes pareceu
pertinente e assim afirmaram; um deles me perguntou que idade eu tinha, eu
disse que tinha dezessete anos e tentei explicar mais uma vez o que era um
rispetto. Álamo estava rubro de raiva; os membros da oficina me acusaram de
pedante (um disse que isso não passava de academicismo meu); os
real-visceralistas me defenderam; já embalado, perguntei a Álamo e à oficina em
geral se pelo menos lembravam o que era um nicárqueo ou um tetrástico. E
ninguém soube me responder.
A discussão não acabou, contrariamente ao
que eu esperava, num quebra-pau generalizado. Sou obrigado a reconhecer que eu
teria adorado. E, embora um dos membros da oficina tenha prometido a Ulises
Lima que um dia iria quebrar a cara dele, no final não aconteceu nada, quer
dizer, nada violento, ainda que eu tenha reagido à ameaça (que, repito, não foi
dirigida a mim) garantindo ao ameaçador que eu me punha à sua inteira disposição
em qualquer canto do campus, no dia e na hora que ele quisesse.
O fim do sarau foi surpreendente. Álamo
desafiou Ulises Lima a ler um de seus poemas. Este não se fez de rogado e tirou
do bolso do blusão uns papéis sujos e amarfanhados. Cacete, pensei, esse panaca
se meteu sozinho na boca do lobo. Creio que fechei os olhos de pura vergonha
por ele. Há momentos para recitar poesias e há momentos para boxear. Para mim,
aquele era um destes últimos. Fechei os olhos, como já disse, e ouvi Lima
pigarrear. Ouvi o silêncio (se isso é possível, embora eu duvide) um tanto
incômodo que foi se fazendo à sua volta. E finalmente escutei sua voz, que lia
o melhor poema que eu jamais havia ouvido. Depois Arturo Belano se levantou e
disse que estavam procurando poetas que quisessem participar da revista que os
real-visceralistas pretendiam publicar. Todos gostariam de se inscrever, mas
depois da discussão se sentiam meio sem jeito e ninguém abriu o bico. Quando a
oficina terminou (mais tarde que de costume), fui com eles até o ponto de
ônibus. Era muito tarde. Como não passava nenhum ônibus, decidimos tomar juntos
um táxi-lotação até a praça Reforma e de lá fomos andando até um bar da rua
Bucareli, onde ficamos até tarde falando de poesia.
Não tirei muita coisa a limpo. O nome do
grupo de certo modo é uma piada e de certo modo é algo totalmente sério. Pelo
que entendi, muitos anos atrás houve um grupo vanguardista mexicano chamado de
real-visceralistas, mas não sei se eram escritores, pintores, jornalistas ou
revolucionários. Foram ativos, também não sei bem, na década de 20 ou 30.
Evidentemente eu nunca tinha ouvido falar desse grupo, mas isso deve ser
imputado à minha ignorância em assuntos literários (todos os livros do mundo
estão esperando quem os leia). Segundo Arturo Belano, os real-visceralistas se
perderam no deserto de Sonora. Depois mencionaram uma tal de Cesárea Tinajero
ou Tinaja, não me lembro, acho que a esta altura eu discutia aos berros com um
garçom por causa de umas garrafas de cerveja, e falaram das Poesias do conde de
Lautréamont, algo nas Poesias relacionado à tal Tinajero, depois Lima fez uma
asseveração misteriosa. Segundo ele, os atuais real-visceralistas andavam para
trás. Como para trás?, perguntei.
- Andam de costas, olhando para um ponto
mas se afastando dele, em linha reta, rumo ao desconhecido.
Eu disse que me parecia perfeito andar
dessa maneira, mas na realidade não tinha entendido nada. Pensando bem, é a
pior forma de andar.
Mais tarde chegaram outros poetas, alguns
real-visceralistas, outros não, e a barafunda se tornou impossível. Por um
momento pensei que Belano e Lima tinham se esquecido de mim, ocupados que
estavam em conversar com quantas personagens estapafúrdias se aproximassem da
nossa mesa, mas, quando começava a amanhecer, eles me perguntaram se eu queria
pertencer ao bando. Não disseram "grupo" ou "movimento",
disseram bando, e isso me agradou. É claro que respondi que sim. Foi muito
simples. Um deles, Belano, apertou minha mão, disse que eu já era um dos deles,
depois cantamos uma rancheira. Isso foi tudo. A letra da canção falava dos
povos perdidos do norte e dos olhos de uma mulher. Antes de começar a vomitar
na rua, perguntei se os olhos eram os de Cesárea Tinajero. Belano e Lima
olharam para mim e disseram que sem dúvida nenhuma eu já era um
real-visceralista e que juntos iríamos mudar a poesia latino-americana. Às seis
da manhã peguei outro táxi-lotação, desta vez sozinho, que me trouxe até
Lindavista, bairro onde moro. Hoje não fui à universidade. Passei o dia inteiro
trancado no quarto escrevendo poemas.
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