“Escrever cartas é mais misterioso do que
se pensa. Na prática da correspondência pessoal, supostamente é tudo muito
simples. Não há um narrador fictício, nem lugar para fingimentos literários,
nem para o domínio imperioso das palavras. Diante do papel fino da carta,
seríamos nós mesmos, com toda a possível sinceridade verbal: o eu da carta corresponderia, por
princípio, ao eu ‘verdadeiro’, à
espera de correspondente réplica. No entanto, quem se debruçar sobre essa
prática perceberá as suas tortuosidades. A limpidez de sinceridade nos engana,
como engana a superfície tranquila do eu”
Ana C., em Escritos no Rio.
Conhecemos o perfil típico do personagem –
o antologista de cartas. Algo devasso e espalhafatoso, mas também tímido e
(quase) um perverso, um erudito. Ali, quando o voyeur encontra quem estuda textos, textualidades diversas. Temos
cá conosco uma dessas figuras, organizou o making
of da revista e sempre está à cata de cartas (enviadas, ou não, guardadas
em envelope para nunca conhecer os correios), e-mails, mensagens de celular,
mensagens trocadas em redes sociais. Vai acumulando, cruzando com outras cartas
de outras pessoas para outras que nunca conhecemos, que só ouvimos falar bem depois
de já terem ido. Hoje, inauguramos um espaço de correspondências diversas, de
correspondências incompletas com o que ele separou como ‘cartas de viagens’. Há
uma de Mário para Bandeira sobre uma travessia pelo Norte do Brasil, e uma do
Daniel Massa (para quem?), em que ele registra em forma de diário (e aqui só
vai a primeira parte do diário) um Mochilão pelo Marrocos. O antologista de cartas, como
se sabe, é um curtidor, matreiro sabido, porque saca que, em toda carta, o que
há é matéria-prima para outros escritos, e quem sabe, outras cartas.
***
De
Mário de Andrade para Manuel Bandeira.
Por êsse mundo de
aguas – VI – 27
Manú
Estamos
numa paradinha para cortar canarana da margem pros bois dos nossos jantares. Amanhã
se chega a Manaus e não sei que mais coisas bonitas enxergarei por êste mundo
de aguas. Porêm me conquistar mesmo a ponto de ficar doendo no desejo, só Belem
me conquistou assim. Meu unico ideal de agora em diante é passar uns meses
morando no Grande Hotel de Belem. O direito de sentar naquele terrasse em
frente das mangueiras tapando o teatro da Paz, sentar sem mais nada, chupitando
um sorvete de cupuassú, de assaí, você que conhece mundo, conhece coisa milhor
que isso, Manú? Me parece impossível. Olha que tenho visto bem coisas
estupendas. Vi o Rio em todas as horas e lugares, vi a Tijuca e a Sta. Tereza
de você, vi a queda da Serra para Santos, vi a tarde de sinos em Ouro Preto e
vejo agorinha mesmo a manhã mais linda do Amazonas. Nada disso, que lembro com
saudades e que me extasia sempre ver, nada desejo rever como uma precisão
absoluta fatalizada do meu organismo inteirinho. Porêm Belem eu desejo com dor,
desejo como se deseja sexualmente, palavra. Não tenho medo de parecer anormal
pra você, por isso que conto esta confissão exquisita mas verdadeira que faço
de vida sexual e vida em Belem. Quero Belem como se quer um amor. É inconcebivel
o amor que Belem despertou em mim. E como já falei, sentar de linho branco
depois da chuva na terrasse do Grande Hotel, e tragar o sorvete, sem vontade,
isso me dá um gôso incontestavelmente realização de amor de tão sexual.
Quanto
a êste mundo de aguas é o que não se imagina. A gente pode ler toda a
literatura provocada por êle e ver todas as fotografias que ele revelou, si não
viu, não pode perceber o que é. A gente já sabe da monotonia porêm monotonia á
palavra mais estupida do mundo. Tem monotonias insuportaveis e tem monotonias
que a gente não se cansa de gosar. Assim esta do Amazonas. Tem uma variedade
prodigiosa si a gente põe reparo nela. E si não põe e se deixa prender por ela
então é uma gostosura niilisante como não se pode imaginar outra, é sublime. Aliás
ela tem sido bem relativa porquê o Amazonas vai sendo camarada conosco,
mostrando tudo o que possui, jacarés, até o morto descendo o rio e com barriga
estufada pra riba, bandos de garças de duzentas e mais, toda a passarada do
museu Goeldi, todos os geitos de tardes, de noites, de manhãs e meios-dias, e
todos os peixes e frutas pro nosso paladar. Não sei si já contei pra você que o
por aqui vou bancando o jornalista celebre. Fazem tudo por nos agradar é lógico
que por causa de Dona Olivia e eu passo por homem ilustre e grande inteligencia
aí do sul. Só vendo quanta amabilidade e quanta coisa preparada só prá gente. Navegamos
no mel. Si não fosse a cacetada dos protocolos oficiais, palavra que não faltava
nada pra isto ser uma paraizo pra mim. Imagine porêm que até um discurso de
improviso tive de fazer, respondendo a uma saudação do Dionisio Bentes,
presidente do Pará! Sou incapaz de improvisar. Falei um quarto de duzia de
coisas familiares e me assentei tremendo feito bobo. Pelos asneira creio que
não saiu nenhuma não!
Vou
tomando umas notinhas porêm estou imaginando que viagem não produzirá nada não.
A gente percebe quando sairá alguma coisa do que vai sentindo. Desta vez não
percebo nada. O extase vai me abatendo cada vez mais. Me entreguei com uma volupia
que nunca possuí á contemplação destas coisas, e não tenho por isso o minimo controle
sobre mim mesmo. A inteligência não ha meios de reagir nem aquele poucadinho necessario
pra realizar em dados ou em bases de consciencia o que os sentidos vão
recebendo. Estou gazlich animalizado me observo porquê não encontro aquela clarividencia
discrecionaria que pra uso pessoal sempre conservei, mesmo nos momentos de
maior prazer. O batimento intelectual é quasi que completo. Vivo de arrastão
numa vida de pura sensibilidade. O gôso que passa morre sem comparação sem
critica nem mesmo posterior, estou quase irracional. Aliás esta carta bestissima
prova isso mais que qualquer afirmativa minha.
Amanhã
chegamos em Manaus. A merda dos protocolos vai recomeçar. Felizmente que somos
decididos e sabemos não nos prender nem nos prejudicar com isso. e creio que
não te escrevo mais. Esta carta está me deixando numa tristeza que você não
imagina. Estou besta. Enquanto a festeira durar vou ficar quietinho sem pegar
no lápis mais.
Um
abraço do
MARIO.
***
De
Daniel Massa para ?
26 ou 27 de fevereiro de 2013
Atravesso o Marrocos a bordo de um trem
noturno. Divido o vagão com quatro pessoas. Há um homem na cama abaixo da
minha. Sonhei com um diálogo entre o homem e o funcionário do trem. Ele pedia
para ser acordado na estação de Rabat. O funcionário dizia que não era possível
ajudá-lo, indicou o tempo médio do percurso até a cidade e sugeriu que ele
colocasse o celular para despertar.
O árabe rasgava o meu ouvido, mas eu podia
entender cada palavra que eles disseram. Em algum momento, eu havia me tornado
fluente na língua.
Acordei no meio da madrugada com um
despertador. O homem desceu. Pela janela, eu conheci Rabat.
*
Há muita coisa em minha cabeça agora. Não
sei direito que horas são.
Mais cedo,
presenciei um cortejo fúnebre na Medina de Tânger. Trinta homens se revezavam
para carregar um caixão que era erguido acima da cabeça de todos eles. Em nada
se parecia com os cortejos de minha infância em Saquarema. Marchavam como se
coreografados, eram soldados de uma guerra suja qualquer.
Gritavam palavras
de ordem, uma oração que parecia amaldiçoar a deus.
Somos todos
soldados de uma guerra já perdida.
Se vamos ser
derrotados, que ao menos cuspamos no chão e deixemos claro o nosso desagrado.
Atravesso a mim
mesmo a bordo de um trem noturno.
27 de fevereiro de 2013
Jamma El Fna.
Repito por três vezes enquanto o taxista corrige a minha pronúncia.
Quando me vejo na praça, tudo se apaga.
Homens se misturam a macacos e a cobras e a laranjas e a barracas e a
barracas e a homens e a bicicletas e a motocicletas. São milhares de
motocicletas.
Não há pobres na Medina. Não há ricos na Medina.
Todas as normas de segurança do código de trânsito se resumem a uma:
- Encontre espaço.
Todas as orientações de higiene da vigilância sanitária se fazem uma:
- Experimente.
Eu durmo cheio.
28 de fevereiro de 2013
E foi assim que me apaixonei à segunda
vista.
Você não pode se perder se não há um destino te esperando.
E eu flanei por todos os becos da Medina de Marrakech. Bailei entre
motocicletas, me deixei tocar por árabes, judeus, turistas, pessoas, paredes.
Há qualquer coisa de ordem no caos.
1 de março de 2013
Você desce para cima nas montanhas do Alto
Atlas. Por mais que o ônibus insistentemente cisme em se jogar estrada abaixo,
há sempre um novo abismo que se mostra após cada curva.
Me canso e durmo.
*
Em Aït-Ben-Haddou eu volto dez vidas.
Haverá num passado distante uma reencarnação que tenha me feito berbere.
Deixo um pedaço aqui.
2 de março de 2013
As montanhas agora são dunas e onde havia
cinza vejo apenas vermelho.
Tudo que é sólido desmancha
no ar. E o Marrocos se esfarela pela janela.
*
Caminho duas horas sobre o deserto em
companhia de um camelo.
Meu companheiro mastiga algum resto de comida durante a viagem. Eu
rumino qualquer coisa que já não é mais. Se houvesse um espelho, talvez eu
pudesse me ver espumar como ele. Mas o que tenho na boca é intragável e não me
alimenta mais.
Cuspo.
O sol some por trás das dunas.
*
Omar nasceu no Saara. Fala a língua
berbere, inglês, francês, árabe e um pouquinho de espanhol.
Omar não gosta de cidades grandes. Quando precisa ir a Marrakech, amarra
um elástico no deserto para puxá-lo de volta.
Omar não ama o mar.
Quando Omar ri nasce uma flor no deserto. Nessa noite ele quase sorriu e
eu pude ver alguma coisa verde no meio da areia.
*
O melhor do Saara é mijar sob as estrelas e
sentir o vento gelado do deserto beijar a cabeça do seu pau.
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