Lucas
Matos,
por Thiago Gallego
Quando conheci Lucas Matos, ele era meu
professor substituto de redação. Então tinha dessas coisas que acontecem quando
você está na escola: chegar atrasado; chegar pontualmente e dormir; chegar
pontualmente e pensar em por que, independente de qualquer risada ou abraço,
você se sente tão sozinho naquela sala. Enquanto isso, o professor substituto
de redação lia algo sobre um cego no museu que, sendo cego, via Renoir, Van
Gogh e o resto pelas descrições do amigo.
O irônico é que
mais tarde fosse o ex-professor substituto de redação ser ao mesmo tempo tão
amigo e tão mentor (breeega - exclama a torcida). Daí sai que quando leio
Lucas, sempre a impressão de que ali tem algo inevitável, que vi surgir, junto
com a admiração surpresa ao que sequer imaginava existir. Feito coisa que,
embora eu não veja, ele insista: o filho do carteiro tem olhos azuis muito
abertos, como que assustado.
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dizendo domingo no parque (com remix augusto_dos_anjos_avassalador) no encontro Bliss não tem bis (Nov/2012) |
começou
com a ideia de fazer uma colagem. se não me engano, eu estava lendo na época um
ensaio do haroldo de campos sobre o kurt schwitters. e ficava pensando como
seria sair colando um no outro os versos que estivessem rondando, ou rodando
pela minha cabeça no momento. peguei o título e os personagens de uma canção do
gil (a primeira gravação – clássica, antológica – está no disco gilberto gil de 1968), partes da
estrutura de um poema da angélica freitas (ver o epílogo da série com
gertrude stein lá no rilke shake),
uma paródia de uma imagem do drummond (ver o morte do leiteiro, no a rosa
do povo), e um sintagma nominal do poema de que mais gosto da ana c. (ver
aquele que começa com ‘olho muito tempo
o corpo de um poema’, lá no cenas de
abril). e daí o poema seguiu mais ou menos como aqui embaixo e foi
publicado na bliss. isso em 2009.
depois comecei a pensar em como o poema funcionaria ‘ao vivo’ e ‘falado’,
diferentemente de na página. muita água rolou debaixo dessa ponte, e em 2012,
na hora de apresentá-lo no encontro bliss
não tem bis, realizado em parceria com a coart na uerj, eu achei que cabia
mais coisas na colagem e fiz um domingo
no parque (com remix_augusto_dos_anjos_avassalador). fiquei entre divertido
e espantado de ver como as coisas pareciam funcionar. e acabei optando por
considerar uma descoberta o fato de que se algum poeta merece a alcunha de
avassalador, só pode ser mesmo o augusto dos anjos. no dia em que calhou de eu
estar num estúdio – para gravar material para um outro projeto que estamos
tocando – eu acabei fazendo uma nova versão de áudio (essa que está logo acima)
inserindo novos textos. e desde então fico brincando com outras possibilidades,
e com a própria maleabilidade da colagem, que vai recebendo outras dinâmicas e
intervenções, crescendo em sentidos distintos, como se pudesse receber várias
vozes e fragmentos de textualidades diversas. o que importa é ver até onde vai,
antes de espedaçar, e talvez espedaçar, para tentar colar de novo, e ficar indo
e voltando nesses passos/espaços que o poema cria.
Domingo no parque
os três na sala de espelhos
josé é joão é joão é josé
os três estão de costas
os três estão de quatro
de longe não dá pra ver
os três estão de bruços
os três estão de braços dados
os três estão onde estão
onde estão eles beijam
juliana estala um chicote e diz
muito zangada não me deixem pra trás
não me deixem de lado
eles ficam onde estão
onde estão eles beijam
na saída alguém bate uma
foto dos três
entre cacos de espelho
e o leite derramado
um filete de sangue no chão
*
Esse
Cara
o
poema abaixo é, na verdade, junção de dois que pertencem a uma série chamada esse cara. fiz um título para
apresentá-los juntos. a imagem é uma colagem de um anúncio com o sean connery,
em seus filmes de agente espião very macho man, e o rosto da clarice lispector.
eu gostaria de dedicar a postagem do poema aqui à memória de aaron schwarz.–
Em que
se narra as aventuras de Silas, cujo nome não sabemos ser verdadeiro ou falso
porque se trata de um agente secreto, e tudo na vida de um agente secreto é
segredo, e o que acontece quando ele é encarregado de assassinar a mulher que
matou os peixes, mas não sabemos se, de fato, ele foi encarregado de assassinar
a mulher que matou os peixes, nem se, de fato, alguma coisa acontece, porque se
trata de um agente secreto e tudo na vida de um agente secreto é segredo.
mas me informaram
que hoje em dia
graças a deus
vivemos na era da informação
isso porque hoje
a informação chega rápido
a informação chega em grande quantidade
a informação chega de todos os lados
agora
há muitas coisas
que hoje chegam rápido
que hoje chegam em grande quantidade
que hoje chegam de todos os lados
e que parecem com uma informação
e que estão vestidas de informação
e que se apresentam como uma informação
(olá eu me chamo informação qual o seu
nome?)
mas que são qualquer coisa
assim como um chiclete
não me levem a mal
eu gosto de chicletes
eles são bons pra mastigar
eles são bons pra fazer bolas
eles são bons pra prender nos cabelos das
garotas
pra grudar debaixo de mesas e cadeiras
chicletes são bons
acontece que os chicletes
mastigados perdem o docinho
fácil fácil
e fazem a clarice lispector escrever
sobre coisas complicadas
assim como o infinito
não me levem a mal
mas eu não sou a clarice lispector
na era da informação
as pessoas criaram agências
agências que trabalham
pra divulgar arquivar circular produzir
falsificar e barrar as informações
as agências de informação
podem ser públicas privadas ou secretas
as agências de informação públicas assim
como as privadas
servem para informar de modo claro objetivo
imparcial
qualquer um sobre assuntos de interesse
geral
como a constituição das modelos e dos
famosos dieta peso tamanho das partes do corpo,
etc.
ou as leis do mercado para abrir um negócio
de sucesso com receitas para quem está
só começando
ou eventos espantosos do jogo do flamengo
no sábado e dos últimos lançamentos
[de
produtos de alta tecnologia
as agências de informação públicas assim
como as privadas
às vezes apresentam problemas
com a descarga
e certas informações acabam retidas
porque prejudicam interesses importantes
ou interesses de pessoas importantes
por isso existem agências secretas
as agências secretas trabalham
com informações que não devem
ser de conhecimento geral
são informações importantes
que devem ser conhecidas
somente por pessoas importantes
e as agências secretas se encarregam
de impedir que as informações importantes
se misturem com as outras
que chegam rápido
que chegam em grande quantidade
que chegam de todos os lados
e as agências secretas se encarregam
de impedir que as informações importantes
se misturem com chicletes
de outro modo qualquer um poderia
mastigar informações importantes
qualquer um poderia prendê-las
nos cabelos das garotas
ou grudá-las debaixo de mesas e cadeiras
e isso seria contra as regras
da escola da associação de moradores da
polícia
e isso seria uma ameaça à segurança
nacional à segurança mundial à segurança da
vovó
silas, por exemplo,
trabalha numa agência secreta
mas é melhor você pensar que não trabalha
mas é melhor você pensar que silas não é
seu nome
mas é melhor você pensar que silas não existe
mas é melhor você pensar que cia é o nome
de uma marca de chicletes
porque tudo numa agência secreta é
segredo
a não ser para pessoas importantes
que precisam saber informações importantes
a distinção entre informações
de interesse geral e informações
importantes
é como a distinção entre pessoas
importantes e qualquer um
pessoas importantes normalmente têm pressa
pessoas importantes são sérias e não mascam
chicletes
pessoas importantes se você pedir com
jeitinho
usam um chapéu escrito importante
sem achar tão ridículo assim
pessoas importantes principalmente
têm formas de conseguir informações
importantes
e são bem poucas segundo as pesquisas
pesquisas comprovam que
pesquisas comprovam
pouquíssimas coisas
pesquisas comprovam que
pesquisas pesquisam
pesquisas pesquisam
então por exemplo
se a mulher que matou os peixes
está mesmo morta
ou se os peixes mortos e
a mulher viva
ou os peixes mortos-vivos e
a mulher farta dizendo ok
eu só tenho mistérios
eu sou a agente 00gênero
pesquisas pesquisam
então por exemplo
por que os filmes de james bond
já não fazem tanto sucesso hoje
como nos tempos em que a cia
estava ocupada em
armar assassinar torturar
estava ocupada em ensinar a
armar assassinar torturar
mas hoje graças a deus
vivemos num mundo globalizado
você não precisa ser os estados unidos da
américa
para adquirir o seu próprio agente secreto
mas hoje graças a deus
vivemos num mundo globalizado
você não precisa ter uma dívida com o fundo
monetário internacional
para praticar de casa vodoo economics
mas hoje graças a deus
vivemos num mundo globalizado
você não precisa ser a união das repúblicas
socialistas soviéticas
para ter os seus próprios silos de mísseis
mas hoje graças a deus
vivemos num mundo globalizado
a cada dia silas
ou qualquer um como silas
está diante da mulher
que matou os peixes
que recebeu ordens de
armar assassinar torturar
pesquisas comprovam que
pesquisas comprovam
pouquíssimas coisas
pesquisas comprovam que
pesquisas pesquisam
pesquisas pesquisam
então por exemplo.
segundo fontes pouco confiáveis, esta é uma foto de silas disfarçado de lucas matos disfarçado de banheiro do circo voador disfarçado de show da orquestra imperial disfarçado de disfarçado |
*
3
Contos.
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isto não é um autor. (ceci n’est pas un freudisme) |
Conto.
Eu uma vez conheci um casal de atores que
trabalhava na Rede Globo de Televisão.
E quando ele queria elogiar a empresa, ele
dizia que a Rede Globo era como uma mãe.
E uma amiga da minha época do colégio casou
com um concursado da Petrobrás.
E quando ele queria elogiar a empresa, ele
dizia que a Petrobrás era como uma mãe.
Agora, eles nunca mencionaram um teste de
DNA.
Agora, eles nunca mencionaram qual dos
nucleotídeos era o preferido.
Guanina, Adenina, Timina, Citosina.
Então, quando eu era criança, eu fui
proibido de ver telenovelas.
Minha mãe era como uma empresa onde eu
trabalhasse
E achou que a minha produtividade infantil
diminuía
Se eu perdesse tempo ocupado com
O Edson Celulari transformando a Giulia Gam
em ouro.
A gente morava numa vila da Tijuca onde a
área dos fundos das casas vizinhas
Era contígua uma a outra. E em cima da
nossa área tinha uma telha
Para proteger da chuva, do vento, do que
quer que ameaçasse
A produtividade das crianças. A telha
ficava logo abaixo da janela do meu quarto.
E eu combinei com a vizinha e toda noite eu
pulava a janela
Eu pulava a janela toda a noite e ficava
encima da telha
A vizinha assistia à novela e durante os
intervalos ia para a área
Me contar o que tinha acontecido em cada
bloco.
Então, quando eu era criança, eu preferia
cair, porque gostava de ficar com o joelho ralado.
Então, eu tinha algo para mostrar para os
outros.
Então, eu tinha algo para impressionar as
garotas.
Mas às vezes elas simplesmente diziam:
Olha, eu sei que você é um homem muito
ocupado.
Eu não quero tomar seu tempo. Mas às vezes
elas simplesmente diziam:
Plim-Plim. Mas às vezes elas simplesmente
diziam:
Houve uma reestruturação no seu setor. Não
estamos contratando no momento.
Eventualmente, eu ficava triste porque a
vizinha tinha muito sono e péssima memória.
E eu ficava com fiapos de telenovelas que
nunca encaixavam direito uns nos outros.
*
Outro conto (com algumas coisas de Yoko
Ono).
Quando eu estava crescendo era comum que eu
brigasse com uma das minhas irmãs, ou que elas brigassem entre si.
A minha mãe não gostava disso.
Então, ela desenvolveu uma técnica que
sempre fazia com que a briga parasse.
Primeiro, ela tentava simplesmente ordenar.
Algo como “parem de brigar”. E podia ficar nisso um tempo, até se irritar e
gritar. E então éramos três gritando. E gritando como se fôssemos muito mais.
Gritar nunca foi a minha coisa preferida,
mas às vezes você pensa que não tem outras opções. Eu gostaria de saber por que
os homens podem levar tudo a sério. Eles têm esta delicada e longa coisa
suspensa para fora de seus corpos, que sobe e desce por vontade própria. Humor
é provavelmente alguma coisa que o macho da espécie descobriu pela sua própria
anatomia. Mas os homens são tão sérios. Então, ela ficava exasperada, realmente
exasperada porque todo mundo pensa que mãe dá ordens e que ordens são coisas
que são obedecidas, e é compreensível que alguém fique um pouco ou mesmo muito
frustrado quando dá uma ordem e nada ou ninguém obedece. A não ser que a pessoa
se exercite nisso para perceber o quanto algo como uma ordem pode ser
enlouquecedor. Tipo tente dizer todo dia para o vento: “pare de ventar”. Ou
para o pensamento: “pare de correr”. Tipo tente fazer todos que te conhecem e
todos que não te conhecem e todos que não vão sequer ter a chance de te
conhecer passarem a te chamar de King Lear.
Quando atingia o ápice da irritação e
frustração, ela tirava a blusa. E em seguida o sutiã. E ficava ali, com os
peitos de fora.
Eu não sei se você já tentou seguir
brigando com alguém enquanto uma terceira pessoa se despe ao lado. Você pode
fazer a experiência: convide alguém para brigar e uma outra pessoa para
subitamente ficar sem roupa. Anote o que acontecer.
Ela repetiu isso várias vezes porque tinha
uma época em que nós brigávamos muito, sempre com os mesmos resultados. Talvez
pudéssemos adotar a tática para situações de conflito: treinar exércitos de
pessoas desarmadas para irem a um campo de batalha se despir. Fazer dos
policiais pessoas que diante de um crime se fizessem nuas.
Tem essa comédia antiga em que as mulheres
tentam acabar com a guerra acabando com o sexo, mas é o contrário.
Algum dia todos vamos evaporar juntos.
*
Conto final (com algumas coisas de Laurie
Anderson).
ultimamente, eu venho pensando nas coisas
que deixo de fazer.
por algum motivo, em algum ponto da vida,
elas superaram as coisas que faço – em níveis percentuais.
admito alguns fracassos.
primeiro, admito alguns fracassos seria o
título do meu reality show predileto.
então, toda semana, qualquer um, um
dentista, um chofer de caminhão, uma cantora pop, uma presidenta da república,
ou a isabela – que na sétima série chorava no banheiro do colégio por causa de
acne, e hoje ocupa um cargo público importante para o sistema judiciário.
então, buenas noches señores y señoras.
bienvenidos. la primeira pregunta es: ¿quién es más macho, abacaxi ou faca? la
segunda pregunta: ¿ qué es más macho, lâmpada ou transporte escolar? e cada um
falaria de uma cagada ou outra. sem maquiagem, sem música de fundo, sem a
crença de que é tudo coisa do passado, vamos relaxar e respirar ar puro agora.
gracias. a gente volta depois dos comerciais.
quando eu tinha quatorze anos eu peguei
otite e pensei “só pode ser aids”. eu nunca tinha feito sexo. eu nunca tinha
compartilhado seringas. eu nem tinha me masturbado até ejacular. bem, eu tinha
um sonho e nele eu ia para uma cidade do interior e todas as garotas na cidade
se chamavam betty.
as aulas sobre suores noturnos e gânglios
inchados tinham deixado uma impressão forte sobre mim. os murmúrios de
aidéticos cuspindo nas suas retinas, costurando armadilhas nas poltronas dos
cinemas, também. eu estou de volta a quando eu era uma criança, de volta a bem
antes quando eu era um bebê, quando eu era um embrião, uma manchinha, um ponto
só. quando eu era uma barra de chocolate garoto no bolso de trás do jeans do
meu pai. eu não era bem informado.
ninguém gosta de ouvir quando alguém
insiste em falar sobre sonhos ou memórias embaraçosas, o que é quase sempre a
mesma coisa. eu também prefiro piadas.
a saúde precisa de silêncio.
a saúde precisa de fotos de enfermeiras
brancas com batom vermelho e os indicadores sobre os lábios. ei, olha lá. bem
ali. é o antonio carlos jobim sentado numa cadeira. e ele está soprando anéis
de fumaça perfeitos no ar. e ele está cantando: céu, tão grande é o céu e
bandos de nuvens que passam ligeiras. toda vez que eu vejo esses anéis de
fumaça penso que você está ali.
ultimamente, eu venho pensando nas coisas
que deixo de falar.
eu não gostei do que você fez, ou eu vejo
um iceberg e lembro de você.
eu não te quero mais e ainda sinto ciúmes,
ou eu vejo anéis de fumaça e penso que você está ali.
eu te odeio, ou eu te odeio.
eu queria saber o que você achou, ou eu
queria saber por que sempre acho que você não gosta de mim.
olá.
*
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