Talvez haja poucas figuras tão
diametralmente opostas em suas atitudes poéticas quanto Glauco Mattoso (nome
adotado pelo escritor paulista Pedro José Ferreira da Silva, de modo a trazer
para a assinatura a marca da doença que levou sua visão) e Jorge Luis Borges. A
antiestética, a pornografia sadomasoquista, a sátira de humor violento em
Glauco; o pendor para o clássico, o adensamento e aprofundamento das formas de
algumas tradições ocidentais em Borges. Em comum entre ambos, talvez somente a
cegueira e o fato de terem vivido (aqui também quanta diferença entre um e
outro) em países latino-americanos em tempos sombrios. Mas talvez na recorrência
do soneto em Glauco, na admissão de Borges que se limitou a alternar alguns
metros clássicos, ou neste texto que vai abaixo – excerto do seu Manual do podólatra amador combinado a
dois de seus sonetos, publicado na Bliss
– em que o escritor brasileiro insiste em encarar suas questões a partir de
histórias de infância, e no retorno a um conjunto de temas fundamentais, o
espelho, a espada, a velhice por parte do argentino se diga de outra maneira a
percepção, o encontro da palavra poética do que não se vê, ao não se ver.
As possibilidades de uma associação entre as duas figuras, entretanto, não passou despercebida ao próprio Glauco, que, em 2001, escreveu o ensaio Borges e eu sobre o ensaio Elogio da Escuridão, de Borges, se posicionando, como era de se esperar na contramão da cegueira sublime do argentino. Aqui, além dele, optamos por publicar o material mencionado que constava da revista de 2009, junto com algumas páginas do emblemático Jornal Dobrabil, levado adiante pelo autor na década de 70, e de mais três de seus inúmeros sonetos em que ele aborda os seus temas frequentes. No making of da Bliss havia um email de Glauco Mattoso em que ele nos dizia: “A propósito do êxtase, associado à elevação espiritual ou ao clímax sensorial, faço o seguinte contraponto: o masoquismo também pode ser uma espécie de êxtase, paradoxalmente rebaixando o sujeito ao invés de elevá-lo, e nesse sentido os pés representam o rebaixamento máximo, já que a sola está em contato com o chão. Lembrando que o solo (terra), ao lado do ar e da água, também tem conotação mística e filosófica”.
As possibilidades de uma associação entre as duas figuras, entretanto, não passou despercebida ao próprio Glauco, que, em 2001, escreveu o ensaio Borges e eu sobre o ensaio Elogio da Escuridão, de Borges, se posicionando, como era de se esperar na contramão da cegueira sublime do argentino. Aqui, além dele, optamos por publicar o material mencionado que constava da revista de 2009, junto com algumas páginas do emblemático Jornal Dobrabil, levado adiante pelo autor na década de 70, e de mais três de seus inúmeros sonetos em que ele aborda os seus temas frequentes. No making of da Bliss havia um email de Glauco Mattoso em que ele nos dizia: “A propósito do êxtase, associado à elevação espiritual ou ao clímax sensorial, faço o seguinte contraponto: o masoquismo também pode ser uma espécie de êxtase, paradoxalmente rebaixando o sujeito ao invés de elevá-lo, e nesse sentido os pés representam o rebaixamento máximo, já que a sola está em contato com o chão. Lembrando que o solo (terra), ao lado do ar e da água, também tem conotação mística e filosófica”.
Ou mais
sucintamente: “Lambidas nas solas de todos aí!”.
*
Borges e Eu
- Por Glauco Mattoso -
[1] Em 1955 Borges assumia a direção da
Biblioteca Nacional Argentina. Estava quase cego, mas já era catalogado como
escritor e classificado na prateleira de cima. Vinte anos depois, eu me mudava
de São Paulo para o Rio a fim de assumir o cargo de bibliotecário. Não na
Biblioteca Nacional, mas perto dali, na outra ponta da avenida Rio Branco.
Ainda não estava cego, mas já era portador de glaucoma e era funcionário do
Banco do Brasil, em cuja biblioteca exerci por poucos anos a função para a qual
me bacharelara. Poeta estreante, tinha em comum com Borges o mesmo que com
Homero, Milton ou Joyce: a remota afinidade com autores e títulos consagrados,
compulsados e consultados. Mal sabia eu que teria outra coisa em comum com
eles: a cegueira. Mais vinte anos, e assumi a realidade em que hoje vivo: o que
era "quase" se tornou definitivo.
[2] Até então distante de Borges, como de
outros poetas maiores, fui me aproximando da sua biografia, de coincidência em
coincidência. Além de bibliotecário, poeta, cego, bruxo e apaixonado pelo tipo
nipônico, o Além me armou uma cadeia de sucessos decorrentes. Já desiludido da
vida literária e da própria vida, em 1997 sou convidado pelo professor Jorge
Schwartz a integrar o corpo de tradutores da obra completa do gênio argentino, publicada
pela Globo a partir de 1998. Em parceria com Jorge traduzi justamente o livro
de estréia, FERVOR DE BUENOS AIRES. A publicação valeu aos tradutores o prêmio
Jabuti de 1999, e com minha parte no dinheiro do prêmio comprei um computador
adaptado para cegos. Graças a essa máquina falante readquiri o hábito de
escrever e o gosto pela poesia. Ao mesmo tempo, a insônia e os pesadelos
diuturnos provocados pelo trauma da cegueira me levaram a compor febrilmente,
memorizando tudo à maneira de Borges. Um furor lírico, onírico, onanístico e
mnemônico que resultou numa tetralogia de sonetos, parcialmente musicados e
gravados em CD por diversos intérpretes.
[3] Retornei do ostracismo ao convívio dos
literatos, reapareci na mídia e até montei uma página virtual. Tudo
desencadeado pela cegueira e pela necessidade de desabafar minha revolta contra
essa desgraça. E tudo devido à oportunidade de traduzir Borges, como se este
houvesse atravessado meu caminho. Não bastasse tanta coisa, o endereço na rede
e o correio eletrônico propiciaram novos encontros e reencontros. Entre os
novos, encontrei meu atual companheiro Akira; entre os contatos retomados, um
leitor que me envia o ensaio de Borges abaixo transcrito.
[4] Trata-se dum texto condensado pelo
READER'S DIGEST, em cuja edição brasileira, SELEÇÕES, apareceu em março de
1985. Originalmente foi discurso proferido no teatro Coliseo de Buenos Aires. O
copyright do artigo é de 1980 (do mexicano Fondo de Cultura Económica), e
consta ter sido publicado na França (número de maio de 1983 de LE DÉBAT), mas o
livro a que Borges alude no texto, EL ELOGIO DE LA SOMBRA, é bem anterior:
1969. O ensaio está incluído nas obras completas reunidas pela Globo: consultei
Jorge Schwartz, que me certificou ser o texto correspondente àquele intitulado
"A Cegueira", integrando o livro SETE NOITES. Neste depoimento Borges
recupera sua perda da visão e dá sua visão da cegueira, enaltecendo-lhe o lado
positivo e atribuindo-lhe o vigor criativo de sua fase mais madura.
[5] Porém Borges não fala apenas de si e
por si, mas refere-se aos cegos de maneira genérica e categórica, pisando,
portanto, em meu calo, e não me calo ante aquilo de que discordo. Borges
sustenta que a cegueira não é uma desgraça. Eu entendo que a cegueira não é uma
desgraça: é uma calamidade, uma catástrofe. Ele diz que é uma bênção; eu digo
que é uma maldição. Em ambos os casos, contudo, há sempre a coincidência que
nos aproxima: a compulsão de poetar, para protestar ou para pretextar. Seja
como for, vale considerar os argumentos de Borges que me proponho a refutar.
Primeiro transcrevo seu discurso; em seguida parafraseio seu raciocínio,
ilustrando o texto com alguns sonetos pertinentes, ou impertinentes, já que
nasceram da inquietude.
O ELOGIO DA ESCURIDÃO
[Um célebre escritor argentino nos fala das
benesses preciosas trazidas a ele pelas sombras de sua cegueira.]
Em 1955, tive a honra de ser nomeado
diretor da Biblioteca Nacional Argentina. Sempre imaginei o paraíso como uma
biblioteca. (Outros pensam nele como um jardim ou, talvez, um palácio.) Lá
estava eu, no meio de 900.000 livros em vários idiomas. No entanto, quase não
conseguia ler-lhes os títulos, as lombadas. Poder-se-ia dizer que,
praticamente, para meus olhos cegos, aqueles livros estavam em branco, vazios.
Continuo cego de um olho, mas tenho visão
parcial no outro, e consigo distinguir algumas cores. As pessoas pensam que os
cegos vivem em total escuridão, mas o seu mundo não é a noite que as pessoas
imaginam. Vivemos num ambiente impreciso, no qual poucas cores aparecem. O
branco desapareceu ou se transformou em cinzento. No meu caso, ainda existem o
amarelo, o azul e o verde. Eu, que tinha o hábito de dormir em completa
escuridão, fiquei durante longo tempo perturbado por ter de fazê-lo neste mundo
tenebroso, esverdeado ou azulado, o vagamente luminoso nevoeiro no qual os
cegos vivem mergulhados.
Assim, uma das cores que os cegos lamentam
já não poderem ver é o negro; o mesmo acontece com o vermelho. Tenho a
esperança de que um dia, com os tratamentos, eu possa enxergá-lo. Essa
magnífica cor brilha na poesia e tem nomes lindos em tantos idiomas: SCHARLACH
em alemão, SCARLET em inglês, ESCARLATA em espanhol, ÉCARLATE em francês.
Como havia perdido o amado mundo das
aparências, resolvi inventar outra coisa; eu criaria o futuro, aquele que vem
depois do mundo visível que desaparecera para mim. Era professor de literatura
inglesa na Universidade Argentina. Que poderia fazer para ensinar essa
disciplina, que ultrapassa os limites da vida do homem e das gerações?
"Tive uma idéia", disse então a
uns alunos que haviam acabado de se bacharelar. "Agora que vocês estão
formados, não seria interessante estudar a língua e a literatura inglesas
livres da frivolidade dos exames? Vamos começar pelo princípio."
Numa manhã de sábado, reunimo-nos no meu
escritório e começamos a ler THE ANGLO-SAXON READER e THE ANGLO-SAXON
CHRONICLE. Cada palavra se destacava como se estivesse gravada, como se fosse
um talismã. É devido a isso que os versos em língua estrangeira nos parecem em
relevo, de um modo que não acontece na própria língua, pois então ouvimos e
vemos cada palavra, pensamos na sua beleza, força ou simplesmente estranheza.
Quase nos embriagamos com o som de duas
palavras: o nome de Londres, LUNDENBURH, LONDRESBURGO, e o de Roma, ROMEBURH,
ROMABURGO. Essa sensação ainda se tornou mais intensa quando nos demos conta de
que a luz de Roma havia atingido aquelas ilhas boreais perdidas. Penso que
fomos para a rua gritando LUNDENBURH, ROMEBURH.
Eu havia substituído o mundo visível pelo
audível da linguagem anglo-saxônica. Daí passei para outro ainda, mais rico e
mais antigo, o da literatura escandinava; passei para as EDDAS e as sagas. Mais
tarde escrevi um ENSAIO SOBRE A ANTIGA LITERATURA GERMÂNICA. Criei muitos
poemas baseados nos temas dessa literatura, mas sobretudo o que me encantava
era ela própria.
Não permiti que a cegueira me derrotasse.
Além disso, meu editor me trouxe excelentes notícias: se eu lhe entregasse 30
poemas por ano, ele os publicaria em forma de livro. Trinta poemas. Para isso
era preciso disciplina, especialmente quando é necessário ditar cada linha. Ao
mesmo tempo, porém, eu tinha suficiente liberdade, porque num ano surgem 30
oportunidades para escrever um poema. A cegueira não foi para mim uma desgraça
total. Deveria ser considerada como um modo de viver, nem por isso
completamente infeliz; um estilo de vida como qualquer outro.
Ser cego tem as suas vantagens.
Pessoalmente, devo certas dádivas às sombras: o anglo-saxão e os rudimentos do
islandês. Existe também a alegria de muitos poemas, além de ter escrito livros,
inclusive um chamado, não sem alguma duplicidade, como se de um desafio se
tratasse, O ELOGIO DA ESCURIDÃO. Os cegos também se sentem cercados de carinho.
Todo mundo tem afeto pelos cegos.
O poeta espanhol frei Luis de León
escreveu:
Quero viver comigo,
Gozar o bem que devo aos céus,
Sozinho, sem testemunhas,
Livre do amor, do ciúme,
Do ódio, da esperança, dos cuidados.
Se concordarmos que entre as benesses que
nos são enviadas pelos céus está a escuridão, quem poderá viver melhor consigo
próprio, quem será capaz de se conhecer melhor, como disse Sócrates, do que um
cego?
Gostaria de evocar aqui outros casos
ilustres. Não sabemos se Homero existiu mesmo; talvez não houvesse um só Homero
mas muitos gregos escondidos sob esse nome. Eles, porém, gostavam de imaginar
que o poeta era cego, para realçar o fato de que a poesia é antes de tudo
música, e a faculdade visual pode ou não estar presente num poeta.
A cegueira de John Milton foi proposital.
Ele estragou sua visão escrevendo panfletos em defesa da execução do rei pelo
parlamento. Costumava dizer que havia perdido a vista em defesa da liberdade.
Ele falava dessa nobre tarefa e não se queixava por ser cego. Compunha versos e
sua memória melhorou. Após cegar, Milton passava muito tempo sozinho. Escreveu
um longo poema, PARAÍSO PERDIDO, sobre o tema de Adão, pai de todos nós. Embora
cego, Milton conseguia manter na cabeça 40 ou 50 hendecassílabos, que depois
ditava às pessoas que vinham visitá-lo. Foi assim que escreveu PARAÍSO PERDIDO.
Vamos lembrar outro exemplo, o de James
Joyce. A quase infinita língua inglesa, que tantas possibilidades oferece ao
escritor, não lhe era suficiente. O irlandês Joyce lembrou-se de que Dublin
havia sido fundada por vikings dinamarqueses. Assimilou o norueguês, depois
estudou grego e latim. Aprendeu muitos idiomas, e acabou escrevendo num idioma
que ele próprio inventou, difícil de entender, mas que possui uma estranha
musicalidade. E declarou corajosamente: "De todas as coisas que me
aconteceram, a menos importante foi a cegueira." Parte da vasta obra que
deixou foi escrita na escuridão, trabalhando as frases de memória, às vezes
passando um dia inteiro preocupado com uma única frase.
Um escritor, um artista ou qualquer pessoa
deveria ver nas coisas que lhe sucedem uma como ferramenta, deveria pensar que
tudo lhe é dado com alguma finalidade. O que lhe acontece, inclusive as
humilhações, fracassos, desgraças, é-lhe dado como uma argila, como matéria
para sua arte. É preciso tentar beneficiar-se disso. Tais coisas nos foram
destinadas para as transformarmos, a fim de que, a partir das circunstâncias
dolorosas de nossas vidas, possamos fazer algo de eterno ou que aspire a sê-lo.
Se um cego pensar dessa maneira, estará salvo. A cegueira é uma dádiva.
Pense no crepúsculo. Ao cair da noite, as
coisas mais próximas desaparecem, exatamente como o mundo visível se afastou de
mim, talvez para sempre. A cegueira não é uma desgraça total. É mais um
instrumento que o destino ou a sorte colocou em nosso caminho.
(JORGE LUIS BORGES)
Minha réplica ao Mestre é a seguinte:
A NEGAÇÃO DO NEGRO
[6] Em 1972 bacharelei-me em
biblioteconomia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Não
compareci à colação de grau, menos porque o paraninfo fosse o então governador
Laudo Natel, títere do regime militar, que pela farsa da cerimônia onde se
entregava um canudo vazio, já que o diploma pendia de registro em Brasília. Não
obstante, fui o primeiro da turma e me orgulhava da profissão escolhida. Tive a
honra de estagiar na Biblioteca Municipal Mário de Andrade, cujo patrono
inaugurou a moderna poesia brasileira com um livro intitulado PAULICÉIA
DESVAIRADA. Cantava Mário sua cidade com o mesmo fervor de Borges.
[7] Sempre imaginei uma biblioteca como um
inferno, termo que no jargão técnico designa o depósito das obras proibidas à
consulta do público, somente acessível aos censores e aos bibliotecários.
Durante períodos ditatoriais o acervo dos "infernos" chega a ser
maior que o da seção de empréstimos ao leitor. Eu, que já era leitor de Sade,
aproveitei para conhecer, além da obra completa do Divino Marquês, a obra
incompleta do Profano Marx. Aludi ao deslumbramento do aprendiz de bibliófilo
em dois sonetos, ao mesmo tempo em que evocava minha iniciação heterossexual
comparando a origem nipônica da namorada à de Maria Kodama, companheira de
Borges:
SONETO 358 COINCIDENTE
De bibliotecário foi o grau
primeiro que colei, e uma colega
nissei foi a primeira que se entrega
a mim. Não titubeio, e creio: Crau!
Não fui, porém, apenas lobo mau,
nem ela brincou só de pega-pega.
A gente cria laços e se apega
ao outro, quando está na mesma nau.
Também ela sofrera hostilidade
dos pais, mais japoneses que os do Império,
e tinha em mim alguma afinidade.
Nós éramos à parte, um caso sério.
Kodama foi do Borges, mas quem há de
ser minha, quando cego? Que mistério!
SONETO 359 REINCIDENTE
Nos livros respirei literatura.
De bibliotecário para autor
a diferença é pouca: está na cor
da capa ou na lombada da brochura.
Mas nunca encontra aquilo que procura
quem sonha em ser do Borges seguidor:
Terá seu labirinto aonde for,
e a cada dia a noite é mais escura.
Meus livros e os de Borges, mesma
estante...
Será? Que paulistano desvario!
Serei Bocage ou Sade? Homero ou Dante?
Meu olho já estaria por um fio.
Planejo um suicídio, mas distante,
e parto de São Paulo, rumo ao Rio.
[8] Em 1973, quando ingressei no curso de
letras vernáculas da USP, já estava cego do olho direito, que não resistira à
cirurgia feita no ano anterior para tentar deter o avanço do glaucoma. Ainda
enxergava do esquerdo, porém à custa duns óculos fundo-de-garrafa que me
corrigiam a crescente miopia. Do olho perdido a lembrança mais nítida era a
bola de luz em que se transformava um simples ponto luminoso, desfocado pelo
efeito míope. Quando a luz era vermelha, a cor desmaiara progressivamente até
converter-se em branco. Quando o vermelho coloria um objeto opaco, sem brilho,
era percebido como um cinza escuro. O vermelho e o verde foram as primeiras
cores desaparecidas, mas o verde, também desbotado para o cinzento, não me
causava tanta sensação de ausência quanto a falta do vermelho. Duas décadas
depois, a mesma descoloração se repetiria na retina do olho esquerdo,
prefigurando a cegueira iminente. Ironicamente, enquanto eu perdia o vermelho
de vista, a vista ganhava um tom avermelhado em seu aspecto exterior, devido à
hemorragia interna. Não por acaso dei às tonalidades rubras a mesma ênfase com
que Borges decantava o escarlate:
SONETO 332 CROMATOLÓGICO
O branco é somatória; o preto, ausência.
O verde é o tom de azul com amarelo.
O cinza é um preto e branco menos belo.
Violeta é um desafio pra ciência.
Marrom e creme é mera conseqüência.
Abóbora e laranja não pincelo.
Magenta e sépia existem só no prelo.
Vermelho é comunista ou emergência.
Mania do pintor, como do vate,
as cores são constantes citações:
carmim, rosado, púrpura, escarlate.
Nuances, sangue em manchas e borrões
fizeram do meu olho este tomate,
e só guardei da cor recordações.
[9] Borges decidiu reinventar o futuro.
Parecia ver o mundo com óculos cor-de-rosa. Tinha confiança nos médicos e tinha
a confiança dos editores. Já era famoso quando cegou, e a cegueira só faria
aumentar seu prestígio. Tinha motivos para não se lamentar. Comigo dava-se o
inverso. Quanto mais cego, mais me apegava ao passado, às reminiscências da
memória visual. Fiz dos traumas de infância (como os abusos sexuais de que fui
vítima à mercê da molecada suburbana) a matéria-prima de minha poética
sadomasoquista e escatológica. Desenganado pelos médicos, enganado pelos
editores, perdi as esperanças de conviver pacificamente com a deficiência
física e a indiferença alheia. Mas limitei-me a resumir no detalhe fetichista
minhas divergências com Borges, que afinal apenas realçavam os denominadores
comuns:
SONETO 53 BORGIANO
"Fervor de Buenos Aires" foi a
estréia.
Seguiu-se à sagração da sua cidade
a Universal da Infâmia, a Eternidade,
e a História alcança as raias da Epopéia.
Estive na portenha urbe européia;
Também perdi a visão na meia idade;
Coincidência ou não, também fui Sade,
um bruxo logo abaixo de Medéia.
Talvez eu tenha achado no Argentino
um tom de tango astral na escura zona
e o dom da decadência do Destino.
Mas falta algo, que Borges não menciona...
Algum lugar no cosmo que imagino...
Alguém lambendo o pé do Maradona!
[10] Borges não se dava por vencido pela
cegueira. Sentia-se motivado a continuar produzindo, até porque seu editor lhe
encomendava trinta poemas por ano. Em mim a cegueira tinha o peso da derrota,
mas, talvez porque nenhum editor me garantisse publicação, produzi, não trinta,
mas trezentos poemas num ano, sem outro estímulo a não ser desabafar meu
inconformismo. No fundo, amparo ou desamparo têm como pano de fundo o mesmo
infortúnio, diante do qual cada um de nós reage de maneira diversa, porém
tendente ao mesmo resultado: capitalizar a tragédia pessoal e multiplicar-lhe
os dividendos.
*
*
*
*
Histórias
de Infância
SONETO REPISADO [1210]
No inglês se chama "bullying",
mas aqui
é o ato de "zoar", verbo que
inclui,
além da "zombaria", algo que
influi
também fisicamente no guri.
A turma não apenas xinga e ri;
diverte-se naquilo de que fui
a vítima ideal: colegas "mui
amigos" me pisavam, e eu lambi...
Lambi sola descalça e até calçada,
conforme já contei. Levado eu era
ao mato, após cair numa emboscada.
Lambi, mas me vinguei! Não virei fera,
mas tudo devolvi, pois ponho em cada
soneto um pé que nunca se supera!
Sustento que, assim como o sadismo, o
masoquismo & demais manifestações da libido, todos somos potencialmente
fetichistas ou, mais especificamente, podólatras, bastando que algum incidente
significante desencadeie tal fixação em algum momento precoce das nossas vidas.
Partindo desse pressuposto, todos os podólatras teriam protagonizado sua
própria versão da fábula da Cinderela.
Ora, tal como
recolhida & recontada por Perrault e pelos irmãos Grimm, a saga gira em
torno do pezinho da Borralheira, que é menor (portanto mais belo) que o de
todas as donzelas do reino, cujo príncipe decide se casar com aquela que calça
o sapatinho deixado pra trás quando sua dona sai às pressas do baile, ao qual jamais
teria ido sem a ajuda mágica duma fada, que transforma a maltratada &
maltrapilha Cinderela em nobre dama, pra desgosto de suas algozes, ou seja, a
madrasta e suas duas filhas.
As
divergências entre as versões de Perrault e Grimm não desviam o enredo de seu
desfecho. Em Perrault é a fada madrinha quem, com sua varinha de condão,
transforma a abóbora em carruagem; em Grimm a magia vem da árvore que Cinderela
plantara no túmulo da mãe. Em Perrault, o sapatinho é de cristal; em Grimm, de
ouro. Ambas as versões culminam no fato de que o sapatinho, provado por todas
as damas do reino, não serve em nenhuma, exceto na Cinderela, donde a escolha
da dita como noiva do príncipe. Em Grimm, porém, há mais detalhes (escabrosos,
até) quando as duas irmãs malvadas vão experimentar o sapato. Aconselhadas pela
mãe, uma delas amputa o calcanhar, outra os dedos, pra que seus pés caibam no
sapato. Conseguem calçá-lo, mas o príncipe, alertado pelo sangue que escorre,
dispensa as pretendentes e acaba descobrindo na Borralheira o pé certinho.
Muita simbologia, como se vê, inclusive no fato de que a Cinderela era
humilhada pelas duas a ponto de lustrar-lhes os sapatos que usariam no baile.
Tudo pra justificar a desforra da oprimida sobre as opressoras, cujos pés são
maiores e portanto mais feios. A "cinderelização", pelo visto, é um
fenômeno de mão dupla, ou duplo pé: dum lado, a humilhação da própria; de
outro, a fixação do príncipe em seu sapato. No eixo do entrecho, o tamanho dos
pés, humilhantes ou humilhados.
Fica claro que o podólatra é
"despertado" pra podolatria a partir da presença física do objeto do
fetiche (o sapatinho), que por sua vez evoca um episódio decisivo (a passagem
da Cinderela pelo baile).
Pois bem, em que
momento eu teria sido "cinderelizado"? Certamente ao ser currado
pelos moleques da Vila Invernada, e, dentre estes, o principal Cinderelo teria
sido o baixinho de pé chato e dedão curto, cujo formato plantar e cuja atitude
sarcasticamente sádica passaram a ser, pra mim, o referencial duma busca
permanente e baldada. Por ter sido uma cinderelização às avessas, isto é, sem
encanto nem romantismo, fiquei refém dessa perspectiva perversa que envolve
apenas a humilhação (mais o sacrifício) dum lado e o gozo (mais a gozação) do
outro. Por consequência, transformei aqueles aspectos negativos (crueldade,
fealdade, sujidade, mau cheiro) em sucedâneos de aspectos positivos (gentileza,
beleza, limpeza, perfumarias), inclusive ao tematizar a coisa literariamente.
Perseguir o ideal antiestético, aliás, passou a ser, no meu caso, mais que
simples desabafo canalizado pra arte: acabou virando bandeira dum inconformismo
comportamental, que transcende o plano psicológico pra invadir o social e o
político, donde o alcance apontado por alguns observadores da minha obra. Pretensioso
ou não, superestimado ou não, o fato é que consegui fazer do sambenito gala, e
me arrisco à modéstia de propor que qualquer outro, em meu lugar, poderia
sentir e fazer o mesmo.
* * *
Eis aí, senhoras
& senhores, mocetonas & mancebos: escarafunchei, escrachei,
desembuchei, debochei. Mas não respondi à pergunta que me faço desde antes de
escrever este livro: donde me vem esta fixação em pés? Situei, sim, no tempo os
episódios que deixaram a impressão plantar, mas a questão é saber se eu já tava
predisposto a prestar mais atenção no pé que em outras coisas precocemente
vivenciadas. Afinal, convenhamos que, em tese, eu poderia ser tarado por cuspe,
catarro, sebinho, mijo ou porra... ou até por merda. Por que o chulé? Fedido
por fedido, tem coisa que fede mais e tem fé demais, isto é, inspira maior odor
de credibilidade. Fodido por fodido, tem coisa que fode mais, e a cegueira foi
demais pra minha cabeça. No entanto, a inferioridade é anterior à cegueira, e o
vexame da homossexualidade pública é anterior ao fiasco da heterossexualidade
privada.
SONETO 509 ASSUMIDO
Mattoso, que nasceu deficiente,
ainda foi currado em plena infância:
lambeu com nojo o pé; chupou com ânsia
o pau; mijo engoliu, salgado e quente.
Escravo dos moleques, se ressente
do trauma e se tornou da intolerância
um nu e cru cantor, mesmo à distância,
enquanto a luz se apaga em sua lente.
Tortura, humilhação e o que se excreta
são temas que abordou, na mais castiça
e chula das linguagens, o antiesteta.
Merece o que o vaidoso não cobiça:
um título que, além de ser
"poeta",
será "da crueldade" por justiça.
Às vezes tenho a impressão de que toda
minha vida se resume a uma cruel brincadeira de criança, da qual o resto não
passa de repeteco. Até a expressão literária seria um jeito de continuar me
expondo ao ridículo e ao menoscabo, exatamente como na primeira curra. Estar no
centro da rodinha, ser o saco de pancada, mas ao mesmo tempo centro das
atenções, protagonista, astro principal. A glória da infâmia compensando a
injustiça do destino. Ao menos diante da plateia de curradores. Não os quinze
minutos de glória a que cada mortal teria direito, mas a glória eterna,
congênita e vitalícia, porém perante meia dúzia de gatos pingados. A plena
observância do ditado que adotei como lema: "Mais vale ser um sapão de
brejinho que um sapinho de brejão". Sem esquecer que um sapo sempre tem
chance de virar príncipe, desde que seja beijado por alguma linda princesa.
Histórias de infância, pra variar.
*
Acareado
Pior será ser cego ou invisível?
Não sabe o cego quando alguém o espia
E o outro é gato pardo em pleno dia:
ignoto, não é lindo nem horrível.
Ao cego, a luz é negra; o escuro, níveo.
Ao ser fantasmagórico, a agonia
é ver que pode entrar na cova fria
e dela sair antes que algum olho crive-o.
Por isso os invisíveis vagam como
sonâmbulos, capazes de atos tais
de cuja culpa exima-se o mordomo:
Esperam que, num flagra, algum ser mais
estranho que eles mesmos, seja um gnomo,
ou seja um cego, os veja como iguais.
*
Decadente
Existe uma nobreza no declínio
que só quem é maldito reconhece.
Tal como haver pecado numa prece,
ou arte, como em Quincey, no assassínio.
Requinte e perversão é meu domínio.
O conde anão que até a sarjeta desce.
A cortesão que manda e obedece.
O senador que explora o lenocínio.
Alcovas. Vinhos finos. Poesia.
Bocage, Botto e Piva à cabeceira.
Chamemos de luxúria a putaria!
Um tal contexto é sopa pra quem queira
deitar-lhe o mel da tara que o vicia:
o sadomasoquismo na cegueira.
*
Soneto
futebolístico
Machismo é futebol e amor aos pés.
São machos adorando pés de macho,
e nesse mundo mágico me acho,
em meio aos fãs de algum camisa dez.
Invejo os massagistas dos Pelés
nos lúdicos momentos de relaxo,
servindo-lhes de chancha e de capacho,
levando a língua ali, no chão do rés.
É lógico que um cego como eu
não pode convocar o titular
de um time brasileiro ou europeu.
Contento-me em chupar o polegar
do pé de quem ainda não venceu
sequer a mais local preliminar.
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