Clarissa por Marcio
Junqueira.
Ela faz aniversário hoje. Ela é carioca, de Gêmeos. Ela fez Letras. Mas antes fez Cinema. Depois um Mestrado sobre revistas
de poesia da década de 70 no Brasil e uma especialização sobre edição de
livros. Na oficina do Carlito, ela era supercrítica. Tinha um olho/ouvido bom
para imagens enigmáticas. Uma vez ela levou um poema que tinha questões de
diagramação e eu achei: ok, legal. Depois ela apareceu com outros, muito
diferentes, com uns cortes inusitados e conversas cifradas e eu comecei a
prestar atenção. Foi ela quem convidou a mim e ao Lucas para a festa de
aniversário – no Loreninha? – em que
inventamos isso que temos vivido. Ela me parece a mais segura de nós três. Os
poemas dela são bastante visuais. Tanto em relação à construção quanto às
referências que invoca. Ela é dos amigos quem eu acho a melhor companhia para
visitar uma exposição. Junto com ela me apaixonei certa vez por Carlos Contente
e Rosana Ricaldi, no CCBB. Com ela estive pela primeira vez: dentro de um
penetrável de HO, na prainha, na PUC-RJ, no Méier, num Chá da Alice, e no Instituto
Moreira Salles. Ela tem muito interesse no objeto livro. Da construção à
comercialização, passando por questões ontológicas e de diagramação. Ela sempre
faz belos cadernos artesanais para os amigos (meu atual diário é um deles) e se
imagina coroa, dona de uma editora em Paraty. Ela tem os pais mais tietes que
eu conheço e quase uma centenas de parentes gaúchos sobre os quais ela conta
(ou inventa?) histórias. Ela pode exasperar quem espera um e-mail dela.
Ela é a poeta da
semana.
*
As fotos de Sontag
Não sabia: foto é beijo com direito a
abraço apertado. Dependendo do foco, é a possibilidade do beijo em eterna
rotação.
*
Aceso plano
Meu papel em branco
abarrotado de ideias suspensas
Já foi caderno já
foi tela já foi muro já foi ponte
Hoje é meu teto
onde gira o ventilador
(a parede, a mesa,
superfícies planas)
É quando cai o
vento sobre mim
*
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Estudo 2 (poema-tela. caneta sobre papel. 2007). |
*
Cena 1
A paixão é um estado de urgência no qual só
escapam os gatos.
Ela vem subindo a reticência e depara com
aflição de ter conquistado e de ter perdido.
Ela debruça a maldade na mentira e quando
atravessa a avenida vê o mascarado.
Ela deturpa a ação e no caos do amanhã
pendura um jaleco velho e amarrotado.
Ela causa estrago e de estilhaços no vidro
do carro sobrevive o dia após o outro.
Ela que nasceu da primeira camada e
palpitação do que é sentir e respirar, vira a cara.
Ela distancia as virtudes e causa as
maiores discussões quando passa do meio-dia.
A paixão é um estado de urgência que mata
os gatos, as palavras e os homens.
*
Sol laranja
Para
Iberê Camargo
Não é possível ver o sol
Nem sempre quando posso
Realmente visitar você não é te encontrar
Pouco com o tempo ouço
O som do trilho de Santa Teresa
Esse som cotidiano
Amor que volta, trepida
Já andamos por essa curva
Já construímos essa casa
Já bebemos dessa cor
Não sei, mas esse sol laranja
só me lembra você
*
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Clarissa Freitas & Marcio Junqueira num penetrável de HO no Centro de Arte Hélio Oiticica, RJ |
*
DUELO,
ELO: POLEM
Para
Lucas, Márcio e Marília
O encontro com as
revistas de poesia não costuma ser espontâneo, objetos circulantes de poucos
espaços e espaços para grupos restritos. Entretanto, não se nega a importância
dessas joias raras, mais raras quando pensamos a produção poética de 70. Essa
década contempla um surto de publicações, relíquias para muitos, e é impossível
não citar Leminski nessa hora de apresentação:
“Consolem-se os candidatos. Os maiores
poetas (escritos) dos anos 70 não são gente. São revistas. Que obras
semicompletas para ombrear com o veneno e o charme policromático de uma Navilouca? A força construtiva de uma Polem, Muda ou de um Código? O
safado pique juvenil de um Almanaque
Biotônico de Vitalidade? A radicalidade de um Pólo Cultural/Inventiva, de Curitiba? A fúria pornô de um jornal Dobrabil? E toda uma revoada de
publicações (Flor do Mal, Gandaia, Quac, Arjuna),
onde a melhor poesia dos anos 70 se acotovela em apinhados ônibus com direção
ao Parnaso, à Vida, ao Sucesso ou ao Nada”.
O trecho retirado
de um artigo do poeta Paulo Leminski intitulado O Veneno das Revistas de Invenção coloca para o leitor diversos
títulos de periódicos ressaltando uma voz possível para os poetas num período
complicado para publicação devido à censura.
Por hoje, vou falar
da Revista Polem que saiu em 1974 com
apenas um número pela Editora Lidador. A revista é lançada antes da mãe Navilouca, trazendo permanências e
deslocamentos. A partir do atraso do lançamento da Navilouca, Polem chega
ao público antes e em formato menor (18x25cm), com a proposta de misturar
poesia experimental com outras áreas de produção artística, notoriamente artes
plásticas. Quando se fala em poesia experimental entendem-se a agregação de
diferentes artistas, normalmente classificados pela crítica historiográfica em
correntes separadas, a saber: os concretos, que iniciaram suas pesquisas na
década de 1950 (Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos), os tropicalistas
de 1960 (Torquato Neto, Rogério Duarte, Caetano Veloso e Hélio Oiticica) e os
marginais da década de 1970 (Waly Salomão, Chacal, Ivan Cardoso, Luis Otávio
Pimentel). A eles, integram-se artistas plásticos como Carlos Vergara, Antonio
Dias, Rubens Gerchman e Iole de Freitas.
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Capa, Polem, 1974 |
A participação de
Iole de Freitas chama muita atenção, pois sua intervenção através da imagem
mostra a montagem de diferentes poéticas da década de 70. Um remix ajustado ou
desajustado daquilo que se pensava como linguagem poética. A imagem destacada
no poema abaixo apresenta as propostas cortantes de gerações distintas que
duelam, mas estão lado a lado dando a liga necessária para se pensar a poesia
de forma a garantir o elo. Se com relação à perspectiva da câmera, as mãos se
encontram em posições distintas, não é difícil notar um jogo de espelhamento
entre elas. O duelo é do poema consigo, da própria linguagem que abre veios em
si mesma e faz mover suas variadas lâminas. O elo entre leitor-autor, duelo. O
duelo entre autor e leitor, elo. Através da revista se espalha e fecunda
posteriormente um outro ser-produto que garantirá a vida dos dias por vir. Não
se quer eliminar e, sim, multiplicar através do “pólen”. A linguagem é essa
abelha vespertina.
É necessário
entender que, se tomamos como ponto de partida a identificação da revista com
um referencial da poesia concreta, certamente isso não significa uma filiação
ortodoxa às diretrizes da vanguarda concreta. Tal constatação é imediata quando
observamos a primeira página:
O verso simples e
descontraído como um assobio mostra-se mais perto da construção poética dos
poetas marginais. As revistas da década de 70 apresentam como emblema a primeira
página que vem em forma de manifesto ou carta de apresentação, e nesse caso
como um poema-gesto. O rigor e o frescor, o formal e o informal, o apelo
gráfico e as nuances da caligrafia são alternados pela roleta que aparece na
contracapa e capa (imagem abaixo), num jogo esperto do projeto gráfico da
revista desenvolvido por Ana Maria Silva de Araújo.
Na participação de
Chacal, a escrita espontânea da carta com seu registro a próprio punho faz
parte desse lugar poético, a caligrafia, a vida do momento.
Já de forma mais
enigmática, a palavra quase indecifrável, é preciso vasculhar um
poema-escultura da folha para se apreender alguma possibilidade de sentido. O
poeta Ubirajara lança uma pergunta: o quanto da palavra é apenas imagem?
Depois, chega-se a
uma ode de Augusto de Campos a Duchamp intitulado Marcel Duchamp: o lance de
dada. Revela uma poesia discursiva, contaminada com o espírito da revista e na defesa desse
trabalho dos próprios anos 70. Evidencia-se que o filtro de leitura usado para
dialogar e fazer valer as experiências da vanguarda foi a ideia de variação
contínua, e seleção organizada (?) pelo acaso. Qual o lance do poema/do poeta
na roleta? Que invenção se faz, e, ao se fazer, faz-se simultaneamente anônima?
Não à-toa, Augusto diz em seu poema que o que interessa é o lance inventivo.
Malgrado qualquer tentativa de narrativas historiográficas, e de divisões,
polaridades instaladas e que geram campos minados reproduzidos sucessivamente,
o lance inventivo pode assumir “estratégias diversas”, não tem que “se limitar
a compartimentos e comportamentos estanques”.
marcel duchamp é um nome bem conhecido
mas poucos conhecem bem marcel duchamp
muitos fizeram duchamp sem saber q o estavam
fazendo
(eu também)
mas como poderíamos saber?
duchamp é o maior inventor anônimo do
século
aos poucos
ele foi sendo desenterrado: debaixo da
montanha picassiana
sob o brilhante arabesco dos kless ou
kandinskys sob os cristais perfeitos de mondrian
lá estava ele
intacto
no meio do refugo e dos detritos (...)
revisto agora
“tel qu’em lui-même”
desencarnado de dada
livre da maquilagem surrealista
duchamp revolve a mallarmé
e não me digam q vejo mallarmé em tudo
lebel johncage octavio paz (e o próprio duchamp
também o viram (...)
do verbal ao não verbal
da não-figura à figura
duchamp
deshierarquizou a arte
o que interessa é a “descoberta”
o lance inventivo
q pode assumir as estratégias mais diversas
e não tem q se limitar
a compartimentos ou comportamentos
estanques
(“a” literatura, “o” verso, “a” pintura)
nem ao “status” do suporte
(quadro, livro em q a invenção é projetada
dados os dados
duchamp nos dá
uma opção-estratégia
aparentemente viável
ante o bloqueio massacrante
do dilúvio informativo
a ação na raiz das coisas
sem suportes apriorísticos:
um livro ou um vidro
uma capa ou um copo
um postal ou um disco
um dado ou um vaso
um xeque ou um cheque
ou o silêncio
mas tudo ou nada
entre o visível e o invisível
o imprevisível
choque
(CAMPOS, 1974, 35 – 50)
A inclusão de
Caetano Veloso nas revistas e na discussão poética dos anos 70 possui uma força
singular, não só pela aproximação entre a vanguarda concreta e o movimento da
Tropicália, mas pela sua colaboração constante com os periódicos da época, e sua participação num pensar entre o canto e o verso. O tríptico abaixo evidencia isso, com um poema visual, em que palavra e fotografia
dividem e pensam o espaço da página, em que o três é tanto a base dos
triângulos de texto e foto, quanto o número de letras da palavra voz e a repetição, rima
do poema. Nos lábios da foto, como se movimenta o ar? Como canta, faz cantar em
silêncio, o poema retangular na leitura de cada um, dividida com a lábia da
fotografia?
A arte popular do
profeta Gentileza em fotografia ilumina com susto e surpresa, especialmente se
pensávamos que a linhagem de experimentação com referências concretas se daria
dentro de um quadro de hiperracionalismo e de informação prioritariamente
literária. Fato é que os movimentos advindos da/ na poética concretista
explorada nos anos 70 não são fechados ou centrados. Como o Tropicalismo traz
associação entre arte popular e erudita, certamente abre portas para gozo
estético mais abrangente.
Parece que as
revistas experimentais sempre revelam um elemento surpresa, no caso da Polem é uma HQ de Ivan Cardoso que
mostra as máscaras sociais, revela elementos míticos e assustadores, como
vampiros e lobisomens. A utilização da história em quadrinhos revela a
influência da poesia marginal e o trabalho da linguagem poética que extrapola o
campo da literatura.
Há também a
publicidade do disco dos baianos, galerias de arte em Ipanema com obras
clássicas e caras, livro de Torquato Neto intitulado Os últimos dias de Paupéria e uma página de propagandas antigas que
mostram o caráter sofisticado, mas também diversificado de referenciais do da
revista e de seus leitores. Algo lembrado por Millôr Fernandes no seminário Imprensa Alternativa e Literatura: os anos
de resistência, após as perguntas de Carlos Lima: Quais os destinos da
imprensa alternativa? Esse destino será sempre a classe média? Resposta de
Millôr: Eu acho que não há possibilidade de você ter uma imprensa alternativa
que não seja de classe média.
Certamente, alguns
questionamentos atravessam décadas, a vontade de se fazer poesia, mostrando que
não é linhas estanques nem de territorialidades cifradas que se faz um poema, a
vontade de promover encontros permanece. Bem-vindas são Modo de Usar & Co., Coyote,
Inimigo Rumor e nessa estrada vamos.
Misturando.
*
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