A princípio, a influência das concepções da
arte concreta se fazem significativamente visíveis na produção de Lenora de
Barros: não só pela repetição do mote a partir do qual se compreende o trabalho
poético com o signo linguístico, vale dizer, na consideração de sua
materialidade verbivocovisual, mas também pela apresentação de uma constante de
percurso em seu pensamento artístico. Lenora parece sempre partir da lógica
construtiva de quem quer tornar um conceito experimentável, criar um nome na
medida em que ele se apresente simultaneamente como matéria para os sentidos. É
assim que ela parece se aproximar, em suas realizações, de questões conceituais
próximas a uma reflexão filosófica (note-se, por exemplo, a problematização
poética da relação entre tato e visão, tema que intrigou autores como Locke,
Leibiniz, Diderot, entre outros que se interessaram por estabelecer diferenças
entre as sensações simples; ou então, as perguntas acerca da angústia, ou que
residem na angústia, em uma série como “deve haver nada a ver”). Entretanto, os
deslocamentos que a artista coloca também são efetivamente flagrantes e
incontornáveis, recolocando certa forma de pensar ou de propor a linguagem em
outros termos e horizontes: destaque-se, nesse sentido, a reiteradamente
afirmada influência tanto da arte pop quanto do grupo Fluxus em seu trabalho. Nesse sentido, a emergência do corpo como
temática e sua entrada no espaço da reflexão estética parece anunciar uma curva
significativa com relação ao projeto concreto e construtivo estritos,
permitindo tanto o surgimento de questões políticas concernentes às relações de
gênero quanto uma abertura para o fluxo e para um deslocamento sucessivo dos
signos inesperados. Assim, criam-se linhas narrativas formais em sua obra, que
se dão quase sempre em torno dos signos do jogo, e nesse sentido, quase tudo
pode estar em jogo: o eu, o outro, as palavras que se instalam entre os campos
de linguagens diversas, etc.
Lenora
de Barros, nascida em São Paulo, em 1953, é filha do artista concreto Geraldo
de Barros, publicou, ao longo das décadas de 1970 e 1980, poemas em que se
mesclavam materiais fotográficos, performáticos e experimentações gráficas em
periódicos como Código e Qorpo Estranho. Em 1983, participa da 17ª
Bienal Internacional de São Paulo, com poemas em formato de videotexto,
publicando em seguida seu primeiro livro de poemas, Onde se vê. Se a questão visual aparece como um foco de interesse
de sua obra, no decorrer de suas atividades questões como a performance vocal e
a dinâmica temporal e interativa das instalações ganham espaço. Igualmente, com
o decorrer de seu trabalho, o discursivo vai cedendo lugar a operações de
fragmentação e divisão, que ao fazer correr a sílaba, movimentam a frase numa
espécie de curto-circuito entre significados possíveis e paradoxais.
Nessa
primeira postagem dedicada a sua obra, selecionamos obras de diferentes
momentos de sua carreira, numa espécie de panorama poético e visual de sua
prática, bem como croquis para suas performances, uma entrevista de 2002,
quando da I Mostra RioArte Contemporânea, realizada por Fernanda Lemos. Além
disso, um podcast com Arte Sonora, em que diversas performances vocais são
mostradas ao público e há uma conversa detalhada sobre o percurso da autora com
uma interessante oscilação quanto a sua perspectiva com relação ao futuro e
suas obras presentes ao final, e vídeo que recupera uma obra sua como “Deve haver nada a ver”.
***
Entrevista
de Fernanda Lopes com Lenora de Barros. Rio de Janeiro, 2002.
F: Fale um pouco
sobre o trabalho apresentado na I Mostra RioArte Contemporânea.
L: “Deve haver nada a
ver”, a instalação que apresento na 1ª Mostra RioArte pretende dar
continuidade, em nível mais amplo, à reflexão que venho desenvolvendo desde
minha exposição O que há de novo, de
novo, pussyquete? (Março, 2001, Galeria Milan, São Paulo). De certo modo,
ela é um pouco um “resumo”, uma versão compacta e essencial de questões que eu
colocava (e principalmente me colocava...) naquele momento. A necessidade de
espacialização da palavra, a transposição de uma estrutura verbal para uma
estrutura visual, por exemplo. Na instalação, cada placa acrílica, transparente
e suspensa corresponde a uma frase diferente extraída da frase inteira, tal
como “deve haver nada”, “nada a ver/ a ver nada”, etc., impressa em bolinhas de
pingue-pongue. É como se fossem “diversos versos”, compondo um “poema móbile”...
Essa estrutura visual é complementada pela oralização do texto que você ouve
nos headphones. A leitura feita por mim e tratada em estúdio pelo músico Cid
Campos, procura reproduzir, no aspecto sonoro, os vários planos de leitura – ou
seja cada texto é lido de forma diferente e em alturas diferentes de acordo com
seu sentido (tal qual as placas e bolinhas suspensas...). Procurei trabalhar
com transparências, suspensão, bolinhas soltas, sonoridades diferenciadas, tudo
muito sutil de modo a criar uma atmosfera quase “invisível/inaudível”, no
limite da leitura e da apreensão.
F: O que são “ping-poems”?
L: Criei essa
expressão a partir da exposição “Poesia é coisa de nada”, que realizei em 1990,
em Milão, na galeria Mercato del Sale. Ela nasce como título de um trabalho –
uma bolinha com essa frase impressa, colocada “estrategicamente” sobre uma
almofada. Visualmente você tinha a impressão de que a bolinha era muito pesada,
embora sabendo, mentalmente, o quanto pesa uma bolinha de pingue-pongue... Minha
intenção, nesse caso, foi criar uma espécie de paradoxo visual, “estranhamento”...
É ainda nesse momento que começo a usar bolinhas de pingue-pongue como suporte
para outros textos poéticos (“coisa em si”, “coisa de nada”). Desde então,
passei a chamar toda a série que realizo usando bolinhas, ou o universo do jogo
de pingue-pongue, de “ping-poems”. A partir da minha exposição na Galeria
Millan, em São Paulo, cunhei também uma outra expressão que se refere aos
trabalhos realizados com raquetes, as “pussyquetes”...
F: A palavra é uma
presença acho que quase constante no seu trabalho. Qual a função/papel da
palavra nos seus trabalhos?
L: Sim, de fato, e no
meu caso não poderia ser de outra forma. Iniciei minhas primeiras experiências
a partir da palavra, mas já nesse momento, influenciada pela poesia concreta,
estava preocupada com o aspecto visual, sonoro, matérico dos signos, e de como ressaltar
e expressar esses aspectos formalmente. Publico meu primeiro livro, “Onde se vê”,
em 1983. São 12 poemas visuais, alguns deles produzidos anteriormente em videotexto
para uma exposição organizada por Julio Plaza no MIS de SP (1982). Sair do
espaço bidimensional da página e trabalhar com videotexto foi para mim fundamental – ou seja,
experimentei novas possibilidades formais com palavra, até então “desconhecidas”
por mim: o uso da cor, da luz, do volume, do movimento como elementos
constitutivos do poema. Essa experiência, sem dúvida, foi uma das coisas que me
impulsionaram a me aventurar mais para o espaço propriamente dito. Eu já
desenvolvia também, desde meados dos anos 70, algumas experiências com a
fotografia – ou seja, “performances fotográficas”, nas quais apareço como “personagem”,
agente de uma ação. Nesses trabalhos, nem sempre a palavra está presente. Geralmente,
como uso o recurso da sequência, acabo criando sentidos que podem ser
apreendidos só visualmente.
De
todo modo, a palavra é, sim, uma dimensão fundamental dentro de meu processo
criativo. Ela cria liames, sentidos entre os elementos visuais. Ela é a “costura”
dos possíveis significados. Desde 1994, quando participei da mostra “Arte e
Cidade – a cidade e seus fluxos”, com a instalação “Ácida Cidade”, passei a
desenvolver mais verticalmente o aspecto sonoro da palavra, através de
oralizações como a que mostro no RioArte. Essa dimensão da linguagem verbal, a
sonoridade X sentido, tem me interessado bastante e é o caminho que venho
tentando desenvolver, especialmente quando trabalho com instalações, onde posso
expandir essas questões mais plenamente.
F: A utilização dela
passou por mudanças ou sempre foi tratada sob um mesmo aspecto (sonoridade,
escrita, significado...)?
L: Acho que de algum
modo já respondi a sua pergunta, mas há algo a acrescentar a tudo isso...
Percebo, ao longo da minha trajetória, que a minha relação com a palavra vai se
tornando, digamos, mais “atômica”. Melhor dizendo, a presença dos sentidos
transmitidos pelas palavras em meu trabalho é cada vez mais concentrada,
pontual: textos curtos, palavras “soltas”, imagens verbais isoladas, sílabas,
frases rarefeitas...
De
algum modo, algo que venho perseguindo desde “poesia é coisa de nada” pode
estar começando a se esboçar...
[...]
F: A questão do lúdico, a participação do público
também é um traço do seu trabalho, não é? (...) Como seus trabalhos lidam com a
participação do público? A participação direta do público é importante para o
seu trabalho?
L: Sim, sem dúvida. Muitos trabalhos meus,
principalmente os que envolvem a dimensão sonora, só funcionam e se realizam
plenamente se o espectador “entrar no jogo”.
Eu
confesso que sou uma pessoa interativa por excelência. Adoro interagir, me
comunicar. Às vezes preciso até me policiar e me aprumar em direção ao
silêncio, à intimidade, à solidão, à concentração... Acho que de algum modo esse
traço de minha personalidade acaba se refletindo formalmente em alguns de meus
trabalhos. Por outro lado, sou uma artista formada no século XX e sob o signo
da Modernidade, sou de uma geração que realmente acredita na máxima do
Chacrinha: “quem não se comunica, se trumbica” – seja com a palavra, com a
imagem, com a música, ruídos, com o corpo, e até mesmo com o silêncio, que
também, hoje sabemos, significa, lembrando aqui John Cage...
F: Como é seu processo de trabalho?
L: Não posso dizer exatamente como é o meu
processo de trabalho, isso porque ele varia muito. De um modo geral, trabalho
muito com anotações, croquis, faço vários projetos ao mesmo tempo e vou
deixando “fermentar”.
Não
há uma regra fixa dentro de meu processo criativo que determine prioridades de
linguagens. Ora a palavra, uma frase, um “verso” surge e a partir dessa forma
verbal estabeleço a expressão visual que vou dar a esse “conteúdo”. Ora o
processo se inverte, a linguagem visual se impõe e a partir dela concebo o
texto. Ora só crio textos “puros”, ou somente imagens fotográficas, ora somente
objetos, poemas-objetos e/ou instalações onde essas várias formas de linguagem
se confrontam... De todo modo, acredito totalmente numa frase que meu pai
costumava dizer: “O processo de criação é 10% inspiração e 90% transpiração”.
F: Qual a influência
que seu pai (Geraldo de Barros) teve na sua formação como artista plástica?
L: Meu pai era um
homem maravilhoso, de personalidade forte e, principalmente, uma pessoa
extremamente criativa, curiosa, inquieta. Foi determinante na minha formação e
na de minha irmã, Fabiana, que também é artista plástica. Fez questão, e não
media sacrifícios para isso, desde que éramos muito crianças nos dar todas as
condições para que exercitássemos nossas vocações. Adorava levar-nos a museus e
nos mostrar tudo aquilo que ele considerava interessante e belo. Era também um
homem de opiniões radicais, e, em alguns momentos, pouco flexível. Nesse sentido,
tínhamos, às vezes, alguns confrontos, mas, no final, bastante salutares do
ponto de vista intelectual. Posso seguramente afirmar que devo muito, muito
mesmo a ele, que me ensinou a “olhar e ver” a realidade, sempre de uma forma
diferenciada, “subversiva”, a acreditar no sonho, no poder da criação, e
preservar, sempre, a qualquer custo, a liberdade da imaginação. Tudo isso, com
muito rigor e consciência construtiva. A imagem que meu pai usava para
descrever o ato de criação e para mim um lema: “Criar é saltar do viaduto do
Chá e sair andando...”.
F: Você vê
proximidades entre o seu trabalho e o dele?
L: Não propriamente
uma proximidade muito explícita, visível, “palpável”, mas acho que fui muito
influenciada por um certo “modo de ver” e apreender a realidade de meu pai,
conforme já disse. Ele, obviamente, pertencia a uma outra geração, quando as
questões, no âmbito da arte, eram outras também. Suas “utopias” eram outras,
diferentes das minhas... O mundo era outro... É claro que não posso negar e nem
quero a sua presença dentro de mim, e, de certa forma, dentro de meu trabalho. Isso
é inevitável... Por outro lado, procuro manter um distanciamento e me relacionar
com a obra de meu pai da mesma forma que me relaciono com a obra de outros
artistas. Tenho, por exemplo, outras influências dentro de meu trabalho que, de
algum modo, dialogo com mais freqüência...
[...]
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De Não quero nem ver (2005 - scaneado de Relivro, Automática Edições, RJ, 2012)
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Croquis & Anotações para vídeoperformance Nem me mostre |
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Há mulheres |
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O tato do olho |
Poema (1979)
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Poema, Performance Fotográfica, 1979. |
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Garotas são POP (Scaneado de Relivro, Automática Edições, RJ, 2012)
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Homenagem
a George Segal (1975 - 1985/1990)
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Homenagem a George Segal, 1990 (Foto p&b por Ruy Teixeira). |
Para ver a videoperformance [1984], clique aqui
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Procuro-me
(2001/2003)
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Ping-poems
para Boris & Ping-poem/ Deve haver nada a ver (2000/2002)
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Ping-poemas para Boris, 2000. Foto: Sérgio Guerini. |
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Podcast
com Arte Sonora
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