Como meu corpo faz para saber que está
segurando duas folhas de papel ao invés de uma? Quais são os indícios físicos
de que estamos pensando? Se conseguirmos obstruí-los, então paramos de pensar?
Quantos sinais de perturbação você consegue enumerar na sua vida mental
cotidiana?
Esse
conjunto de perguntas parece apontar um eixo em torno do qual a prática de
contar histórias da norte-americana Lydia Davis orbita: o que importa, aqui,
talvez seja reconhecer não só sua capacidade de observação empírica e sua
seleção de detalhes, cujos implicadores emocionais funcionam como o movimento
que guia a narrativa como um todo, mas principalmente a ideia de que todo
fenômeno é perturbação.
O que mais parece
nos atingir em suas histórias é uma espécie de zona inderteminada em que não se
tem um narrador de um lado e uma matéria narrada de outro, mas a captação do
pensamento enquanto formas narrativas a partir da ideia de que seu surgimento
se dá nas rachaduras, nas fissuras. Suas histórias, numa subtração súbita tanto
de organizações morais e lógicas consolidadas, provocam, desatam o que se opera
enquanto incômodos, coceiras, insistências problemáticas.
Nesse sentido, boa
parte do seu trabalho busca turvar a fronteira verbal entre mundo narrado e
mundo comentado – seja incluindo narratividade em formas ensaísticas, seja utilizando
uma observação atenta do mundo sensível como fios que ou obstruem ou carregam a
sequência da história. É assim que suas narrativas buscarão flexões temporais,
extensão material, argumentatividade, deslocamento de detalhes, jogos entre
concentração e dispersão do foco de atenção e da temporalidade narrativa, etc.
que contradizem a expectativa linguística do leitor – em especial do que busca
classificar aquilo que lê, genericamente ou a partir de quaisquer outros padrões
literários.
Lydia publicou sua
primeira coletânea de contos, The
thirteenth wooman and other stories [algo como A décima terceira mulher e outras histórias], em 1976, e desde
então já chegou a quase uma dezena de
livros com suas ficções. Tem se destacado igualmente por sua atividade como
tradutora. Selecionamos, para a postagem, histórias do seu livro Break It Down, de 1986, traduzidas por
Lucas Matos, e algumas das narrativas de Tipos
de Perturbação, livro de 2007, cuja tradução, de Branca Vianna, foi
publicada pela Companhia das Letras em 2013. Além disso, acrescentamos um vídeo
inspirado em sua obra, realizado pela atriz/performer Cristina Flores e da
videoartista Flor Brazil.
*
vídeo inspirado em Tipos de Perturbação (Lydia Davis, 2007) por Cristina Flores/Flor Brazil (2014)
*
De Break It Down
(1986)
História
Chego do trabalho, e tem uma mensagem dele:
que ele não vem, que ele está ocupado. Ele vai ligar depois. Espero o telefone
tocar, então às nove horas vou até onde ele mora, vejo o carro dele, mas
ninguém em casa. Bato na porta do apartamento dele e então todos os portões das
garagens, sem saber qual é o portão da garagem dele – nenhuma resposta. Escrevo
um bilhete, leio e releio, escrevo um novo bilhete, e prendo na porta dele. Em
casa fico inquieta, e tudo que consigo fazer, mesmo tendo muito a fazer, que eu
viajo pela manhã, é tocar piano. Ligo de novo às dez e quarenta e cinco e ele
está em casa, foi ao cinema com a ex, e agora ela está ainda está lá. Diz que
vai me ligar de volta. Fico esperando. Finalmente, sento e escrevo no meu
caderno que quando ligar, ou ele virá até mim ou não virá e eu vou ficar
furiosa, então ou terei ele comigo, ou minha fúria, e pode ser tranquilo, já
que a fúria é sempre um ótimo conforto, como descobri com meu marido. E então
eu vou e escrevo, na terceira pessoa e no pretérito perfeito, que ela sempre
precisou ter um amor mesmo que fosse um amor complicado. Ele liga de volta
antes de eu ter tempo de terminar de escrever tudo. Quando liga, é um pouco depois
de onze e meia. A gente discute até quase meia-noite. Tudo que ele diz é uma
contradição: por exemplo, ele diz que não quis me ver porque queria trabalhar e
mais que isso queria ficar sozinho, mas ele não trabalhou nem ficou sozinho.
Não tem como eu fazer ele reconhecer nenhuma de suas contradições, e quando
esta conversa começa a soar igual a muitas que eu tive com meu marido eu digo
tchau e desligo. Termino de escrever o que tinha começado apesar de que agora
já não parece verdade que a fúria seja um conforto, nem um pouco.
Ligo
para ele de novo em cinco minutos para dizer que sinto muito por toda essa
discussão, e que eu o amo, mas ninguém atende. Ligo de novo cinco minutos
depois, pensando que ele pode ter ido até a garagem e voltado, mas de novo
ninguém atende. Penso em dirigir de novo até onde ele mora e procurar sua
garagem para checar se ele está lá trabalhando, porque ele tem uma escrivaninha
lá e seus livros e lá é onde ele vai para ler e escrever. Estou de camisola,
passa da meia-noite e eu tenho que sair de manhã às cinco. Mesmo assim, me
visto e dirijo o par de quilômetros, mais ou menos, até sua casa. Estou com
medo que quando chegar lá vou ver outros carros, na calçada ao lado, que não vi
mais cedo e que um deles será o da sua ex-namorada. Quando passo pela cancela,
vejo dois carros que não estavam lá antes e um deles está parado tão perto
quanto possível da porta dele, e eu penso que ela está lá. Dou a volta no
pequeno edifício até chegar nos fundos onde está seu apartamento, olho a
janela: a luz está acesa mas não consigo enxergar nada direito por causa das
venezianas pela metade e do vidro embaçado. Mas as coisas dentro do quarto não
são as mesmas que eram no início da noite, e antes não tinha embaçado. Abro o
portão de fora, e bato na porta. Espero. Nenhuma resposta. Deixo o portão bater
e vou embora para checar as garagens. Agora a porta abre atrás de mim enquanto
estou indo embora e ele sai. Não posso vê-lo muito bem porque está escuro no
beco apertado ao lado da porta dele e as suas roupas são escuras e toda a luz
vem de detrás dele. Ele vem até mim e põe seus braços em volta de mim sem
falar, e eu penso que ele está sem falar não porque esteja com sentimentos
intensos mas porque ele está preparando o que vai dizer. Larga de mim, anda à
minha volta e na minha frente até onde os carros estão estacionados ao lado das
vagas das garagens.
Enquanto
estamos andando até lá, ele diz “Olha,” e meu nome, e eu fico esperando ele
dizer que ela está lá e também que está tudo acabado entre nós. Mas ele não
diz, e tenho a impressão de que ele pretendia dizer algo assim, pelo menos
dizer que ela esteve lá, e então ele pensou melhor por alguma razão. Em vez
disso, ele diz que tudo que deu errado hoje à noite foi culpa dele e que ele
lamenta. Ele para com as costas contra a porta da garagem e seu rosto na luz e
eu na frente dele de costas para a luz. Numa hora ele me abraça tão de repente
que a brasa do meu cigarro se esmigalha contra o portão da garagem atrás dele.
Eu sei por que estamos aqui e não no seu quarto, mas eu não pergunto nada até
tudo ficar certo entre nós. Então ele diz: “Ela não estava aqui quando eu te
liguei. Ela voltou depois”. Ele diz que a única razão de ela estar lá é que
alguma coisa está perturbando ela e ele é o único com quem ela pode falar sobre
isso. Então ele diz: “Você não entende, né?”.
Eu
tento descobrir.
Daí
eles foram no cinema e então voltaram para a casa dele e então eu liguei e
então ela saiu e ele ligou de volta e nós discutimos e então eu liguei de volta
duas vezes mas ele tinha saído para tomar uma cerveja (ele diz) e então eu
dirigi até lá enquanto isso ele voltou da cerveja que tinha tomado e ela também
tinha voltado e ela estava na sala então a gente conversou no portão da garagem.
Mas o que é a verdade? Ele e ela ambos podiam mesmo ter voltado no pequeno
intervalo de tempo entre minha última ligação e minha chegada na casa dele? Ou
a verdade é que durante a ligação que ele me fez ela esperou do lado de fora ou
na garagem ou no carro dela, e que ele então trouxe ela de volta para casa, e
que quando o telefone tocou com minha segunda e terceira ligações ele deixou
tocar sem atender porque estava de saco cheio de mim e de discutir? Ou a
verdade é que ela foi embora e voltou depois mas ele permaneceu lá e deixou o
telefone tocar sem atender? Ou talvez ele trouxe ela de volta e então saiu para
a cerveja enquanto ela ficou lá esperando e ouvindo o telefone tocar? A última
é a menos provável. De qualquer modo não acredito que teve nenhuma saída para
tomar cerveja.
O
fato de que ele não conta a verdade o tempo todo faz eu ficar incerta de sua verdade
às vezes, e então me esforço para descobrir por mim mesma se o que ele está me
contando é a verdade ou não, e de vez em quando eu consigo descobrir que não é
a verdade, e de vez quando eu não sei e nunca sei, e de vez em quando só porque
ele diz isso para mim de novo e de novo eu fico convencida que é verdade porque
não acredito que ele repetiria uma mentira tantas vezes. Talvez a verdade não
importa, mas eu quero saber, ao menos para que eu possa chegar a algumas
conclusões sobre umas dúvidas tipo: se ele está com raiva de mim ou não; se ele
está, quanta raiva; se ele ainda ama a ex ou não; se ele ama, quanto; se ele me
ama ou não; quanto; qual a capacidade dele de me iludir na hora e então depois
disso quando conta.
*
Os
medos da sra. Orlando
O mundo da sra. Orlando é um mundo de
trevas. Em sua casa, ela sabe o que é perigoso: o forno a gás, a escada
íngreme, a banheira escorregadia, e vários tipos de fiação ruim. Fora de casa,
ela sabe alguma parte do que é perigoso mas não tudo, e vive aterrorizada por
sua própria ignorância, e ávida por informação sobre crime e desastre.
Embora
tome todas as precauções, nenhuma precaução é suficiente. Ela tenta se preparar
para passar fome, frio, tédio, e para grandes hemorragias. Nunca está sem
bandeide, alfinete de segurança, e uma navalha. No seu carro, ela tem, entre
outras coisas, uns metros de corda e um apito, e também um Casa Grande & Senzala para ler enquanto espera as filhas que
muitas vezes passam horas fazendo compras.
Em
geral, ela gosta de estar acompanhada por homens: eles oferecem proteção tanto
por seu tamanho largo quanto por sua visão racional do mundo. Ela admira a
prudência, e respeita o pretendente que reserva mesas antecipadamente e também
o que hesita antes de responder qualquer uma de suas questões. Acredita em
contratar advogados e se sente mais confortável falando com advogados porque
cada uma de suas palavras é endossada pela lei. Mas ela pede para uma de suas
filhas ou uma amiga ir fazer compras com ela no centro, antes de ir sozinha.
Ela
foi atacada por um homem num elevador, no centro. Era de noite, o homem era
preto, e ela não conhecia bem o bairro. Ela era mais nova na época. Ela foi
encoxada várias vezes num ônibus lotado. Num restaurante, uma vez, depois de
uma briga, um garçom exaltado derrubou café nas suas mãos.
Na
sua cidade, ela tem medo de ser levada embora nos subterrâneos na linha errada
do metrô, mas não pede direções a estranhos de uma classe mais baixa. Passa por
muitos pretos que estão planejando diferentes crimes. Qualquer um pode
assaltá-la, até outra mulher.
Em
casa, fica horas no telefone com as filhas e tudo que fala são premonições de
desastre. Não gosta de expressar contentamento, porque tem medo de estragar uma
maré de sorte. Se acontece de ela dizer que algo vai bem, ela usa um tom
sussurrado e bate na madeira da mesinha de telefone. Suas filhas contam bem
poucas coisas, sabendo que ela vai achar algum mau agouro no que contam. E
quando elas falam tão pouco, ela fica com medo que algo vai mal – ou com a
saúde ou com o casamento delas.
Um
dia ela conta para elas uma história pelo telefone. Esteve no centro fazendo
compras sozinha. Saiu do carro e entrou numa loja de tecido. Ela olhou os
tecidos e não comprou nada, mas leva um par de amostras na bolsa. Na calçada
tem muitos pretos andando de um lado pro outro e eles a deixam nervosa. Ela vai
até o carro. Enquanto ela pega suas chaves, uma mão segura seu tornozelo de
debaixo carro. Um homem estava deitado debaixo do carro e agora agarra seu
tornozelo sob a meia com uma mão preta e diz numa voz abafada pelo carro para
ela deixar sua bolsa e sair dali. Ela faz assim, apesar de mal conseguir se
manter de pé. Espera apoiada na entrada de um prédio e observa mas a bolsa não
sai do lugar onde foi deixada na esquina. Algumas pessoas a encaram. Então ela
anda até o carro, ajoelha na calçada e olha embaixo. Vê a luz do sol sobre a
rua adiante, o cano de descarga, entre outros, na barriga do carro: nenhum
homem. Pega sua bolsa e dirige até em casa.
Suas
filhas não acreditam na história. Perguntam por que um homem faria algo tão
peculiar, e em plena luz do dia. Remarcam que ele não pode simplesmente ter
desaparecido, simplesmente virar fumaça do nada. Ela fica fora de si com sua
descrença e não gosta de jeito que elas falam em plena luz do dia e virar
fumaça.
Alguns
dias após o ataque a seu tornozelo, acontece um segundo incidente. Está
dirigindo seu carro de noite até um estacionamento perto da praia como faz de
vez em quando, daí ela pode sentar e assistir ao pôr-do-sol pelo para-brisa. Esta
noite, porém, assim que ela olha para o calçadão e para a água, não vê a praia
deserta em paz que vê normalmente, mas um pequeno amontoado de gente em volta
de algo que parece estar estirado na areia.
Fica
curiosa imediatamente, mas meio inclinada a ir embora sem assistir ao sol se
pôr, ou ver o que está na areia. Tenta pensar no que poderia ser. Provavelmente
um animal de algum tipo, porque as pessoas não olham tanto tempo para algo a
não ser que tenha sido vivo ou que esteja vivo. Imagina um peixe imenso. Tem
que ser imenso porque um peixinho não é interessante, nem qualquer coisa como
uma água-viva que também é pequeno. Imagina um golfinho, e imagina um tubarão.
Também pode ser uma foca. Mais provável é que já esteja morta, mas também pode
estar morrendo e o amontoado de gente pretende vê-la morrer.
Agora,
afinal, a sra. Orlando tem que ir e ver com seus próprios olhos. Pega sua bolsa
e sai do carro, deixa tudo trancado, atravessa uma mureta de concreto e afunda
os pés na areia. Caminhando devagar, com dificuldade, de salto alto na areia,
pernas bem abertas, se agarra em sua bolsa brilhante e dura pela alça, e ela
fica balançando violentamente pra frente e para trás. A brisa marinha gruda o
vestido florido contra as suas coxas, e a barra da saia ondula alegre em torno
dos joelhos, mas seus cachos arrumadinhos não se movem e ela franze as
sobrancelhas enquanto avança.
Mistura-se
às pessoas em volta, e olha para baixo. O que está estirado sobre a areia não é
um peixe, nem uma foca mas um homem jovem. Ele está deitado muito aprumado com
seus pés juntos e os braços ao longo do corpo, e está morto. Alguém o cobriu
com jornais mas a brisa fica levantando as folhas e, uma a uma, elas se soltam
e deslizam até se prenderem entre as pernas dos transeuntes. Finalmente, um
homem de pele escura que parece um pouco índio aos olhos da sra. Orlando puxa
com o pé a última página de jornal e agora todos podem dar uma boa olhada no
homem morto. Ele é belo e esbelto, e sua cor é acinzentada e começando a
amarelar em alguns pontos.
A
sra. Orlando fica observando absorta. Espia os outros ao redor e vê que eles
também estão esquecidos de si. Um afogamento. Isto é um afogamento. Isto pode
até ser um suicídio.
Atravessa
a areia de volta. Quando chega em casa, ela liga imediatamente para suas e
conta o que viu. Começa dizendo que viu um homem morto na praia, um afogado,
daí começa tudo de novo e conta mais um pouco. Suas filhas ficam incomodadas
porque ela se anima tanto a cada vez que conta a história.
Nos
dias seguintes, ela fica dentro de casa. Então sai, de súbito, e vai até a casa
de uma amiga. Diz para a amiga que recebeu um trote obsceno, e passa a noite
lá. Quando retorna no dia seguinte, ela acha que alguém invadiu a casa, porque
certas coisas estão faltando. Mais tarde, encontra cada coisa num lugar
incomum, mas não consegue desfazer a impressão de que um intruso esteve ali.
Fica
sentada, dentro de casa, temendo intrusos e atenta ao que pode dar errado.
Enquanto está sentada, e especialmente à noite, escuta muitas vezes barulhos
estranhos que ela tem certeza que são predadores sob o beiral da janela. Daí
ela precisa sair e olhar a casa de fora. Percorre seu entorno no escuro e não
vê nenhum predador, volta para dentro de casa. Mas depois de ficar sentada lá
dentro por meia hora sente que tem que sair e checar a casa do lado de fora de
novo.
Entra
e sai e no dia seguinte também entra e sai. Então fica lá dentro e só fala pelo
telefone, mantendo os olhos nas portas e janelas, atenta a sombras estranhas, e
durante algum tempo ela não sai de casa, a não ser bem cedo de manhã para
examinar o chão em busca de pegadas.
*
O que
ela sabia
As pessoas não sabiam o que ela sabia, que
ela não era uma mulher mas um homem, muitas vezes um homem gordo, mas mais
vezes provavelmente, um homem velho. O fato de que era um velho tornava duro
para ela ser uma jovem mulher. Era duro para ela falar com um homem jovem, por
exemplo, embora o jovem estivesse claramente afim dela. Ela tinha de se
perguntar: “Por que esse jovem está flertando com um velho?”.
*
O
peixe
Ela está parada diante do peixe, pensando
sobre certos erros irrevogáveis que cometeu hoje. Agora o peixe está cozido, e
ela sozinha com ele. O peixe é para ela – não tem mais ninguém na casa. Mas ela
teve um dia problemático. Como pode comer este peixe que está esfriando na
superfície de mármore? E até o peixe, também, imóvel como está, despido de seus
ossos, coberto por sua pele de prata, nunca esteve tão completamente sozinho
como está agora: violado de modo definitivo e observado pelo olhar cansado
desta mulher que cometeu o último erro do seu dia e fez isso com ele.
*
Miriam
e o oboé
Noite passada, Miriam, minha vizinha do
andar debaixo, se masturbou com um oboé. O oboé bufava e guinchava em sua
vagina. Miriam gemia. Depois, quando pensei que tinha acabado, ela começou a
gritar. Fiquei deitada na cama, com um livro sobre a Índia. Podia sentir o
prazer passando pelo teto dela até o meu quarto. Claro que poderia haver outra
explicação para o que eu ouvi. Talvez não fosse o oboé, mas quem tocava o
instrumento que estava penetrando Miriam. Ou talvez Miriam estivesse atacando
seu cachorro com algo fino e musical, como um oboé.
Miriam,
que grita, mora embaixo de mim. Três mulheres de Minas moram acima de mim.
Então tem uma moça pianista com duas filhas no andar do térreo e umas lésbicas
no subsolo. Sou uma pessoa sóbria, uma mãe, e gosto de ir para a cama cedo –
mas como posso levar uma vida regrada nesse prédio? É um circo de vaginas
saltando e cabriolando: treze vaginas e apenas um pênis, meu filho caçula.
*
Mães
Todo mundo tem uma mãe em algum lugar. Há
uma mãe no jantar com a gente. É uma mulher pequena com óculos de lentes tão
espessas que parecem óculos escuros quando ela se vira. Daí a mãe da anfitriã
telefona enquanto estamos comendo. Isso faz anfitriã se afastar da mesa mais
tempo do que se esperaria. Essa mãe pode estar em São Paulo. A mãe de um
convidado é mencionada na conversa: essa mãe está em Rondônia, um estado do
qual poucos de nós sabe qualquer coisa, embora já tenha acontecido de um
parente morar lá. Um coreógrafo é mencionado depois, no carro. Ele vai passar a
noite na cidade, a caminho, na verdade, de uma visita para sua mãe, de novo em
outro estado.
Mães,
quando são convidadas de um jantar, comem bem, como crianças, mas parecem
ausentes. Muitas vezes o caso é que elas não conseguem acompanhar o que estamos
fazendo ou falando. Também é o caso, muitas vezes, de elas só entrarem na
conversa quando ela se volta para a nossa juventude; ou elas se acomodam quando
acomodações são indesejáveis; sorriem e são mal compreendidas. Ainda assim, mães
são sempre vistas, sempre procuradas, mesmo que só em feriados. Elas sofreram
por nós, e no mais das vezes num lugar onde não podíamos vê-las.
*
Numa
casa sitiada
Um homem e uma mulher moravam numa casa
sitiada. De onde eles estavam agachados na cozinha o homem e a mulher escutavam
pequenas explosões. “O vento”, disse a mulher. “Caçadores”, disse o homem. “A
chuva”, disse a mulher. “O exército”, disse o homem. A mulher queria ir para
casa, mas ela já estava em casa, bem ali no meio do país numa casa sitiada.
*
Visita
ao marido
Ela e o marido estão tão nervosos que
durante a conversa ficam indo ao banheiro, fechando a porta e usando a privada.
Então eles saem e acendem um cigarro. Ele vai e urina e deixa a tampa levantada
e ela vai e abaixa e urina. Perto do fim da tarde, eles param de falar em
divórcio e começam a beber. Ele, uísque; ela, cerveja. Quando está na hora de
ela partir para pegar o trem, ele bebeu muito e vai no banheiro uma última vez
para urinar e não se faz questão de fechar a porta.
Enquanto
se preparam para sair, ela começa a lhe contar a história de como conheceu seu
amante. Durante a fala, ele descobre que perdeu uma de suas luvas caras e fica
imediatamente chateado e distraído. A história fica pela metade e ele não acha
a luva. Ele está menos interessado na história quando volta para a sala sem ter
encontrado sua luva. Mais tarde quando estão andando juntos na rua ele conta
alegremente como comprou para a namorada sapatos de trezentos reais porque está
amando.
Quando
ela fica sozinha de novo, está tão preocupada com o que aconteceu em sua visita
ao marido que atravessa as ruas muito rápido e esbarra em várias pessoas no
metrô e na estação de trem. Ela não enxerga nenhuma delas mas vai de encontro
contra elas como uma força da natureza tão repentinamente que ninguém tem tempo
de desviar e ela fica surpresa de haver pessoas. Algumas delas a acompanham com
o olhar e dizem “Céus!”.
Na
cozinha dos pais mais tarde ela tenta explicar alguma coisa difícil sobre o
divórcio para o pai e fica furiosa quando ele não entende, e então percebe no
fim da explicação que ela está chupando uma laranja apesar de ela não se
lembrar de ter descascado nem de decidir comê-la.
*
A mãe
A garota escreveu uma história. “Mas como
seria melhor se você escrevesse um romance”, disse a mãe. A garota construiu
uma casa de boneca. “Mas como seria melhor se fosse uma casa de verdade”, disse
a mãe. A garota fez um travesseirinho para o pai. “Mas uma colcha não seria
mais prático”, disse a mãe. A garota cavou um pequeno buraco no jardim. “Mas
como seria melhor se você cavasse um buraco grande”, disse a mãe. A garota
cavou um buraco grande e foi dormir dentro dele. “Mas como seria melhor se você
dormisse para sempre”, disse a mãe.
*
Problema
X está com Y, mas vive do dinheiro de Z. Y
por sua vez sustenta W, que vive
com seu filho com V. V quer se mudar para o Rio mas seu filho mora com W em São
Paulo. W não pode se mudar por está num relacionamento com U, cujo filho também
mora em São Paulo, mas com a mãe, T. T recebe dinheiro de U, W recebe dinheiro
de Y para ela mesma e de V para seu filho, e X recebe dinheiro de Z. X e Y não
têm filhos. V encontra pouco com seu filho mas o sustenta. U mora com o filho
de W mas não tem como sustentar.
*
Cinco
Sinais de Perturbação
De volta à cidade, ela está sozinha a maior
parte do tempo. É um apartamento amplo que não é dela, apesar de não lhe ser
estranho.
Passa
os dias consigo mesma, tentando trabalhar, e às vezes tirando os olhos do
trabalho para preocupações como encontrar um lugar para viver, porque ela não
pode ficar neste apartamento depois do verão. Então, no fim de tarde, ela
começa a pensar que devia ligar para alguém.
Fica
observando tudo muito de perto: ela mesma, este apartamento, o que está do lado
de fora das janelas, e o clima.
Tem
um dia de trovoadas, com amarelo escuro e verde claro nas ruas, penumbra no
beco. Ela olha para o beco e vê espuma descendo o concreto, da limpeza das
calhas pela chuva. Então um dia de muito vento.
Agora,
ela está em frente à porta e observa a maçaneta. A maçaneta de bronze está se
movendo sozinha, muito suavemente, de um lado pro outro, então balançando. Ela
fica assustada, então escuta passos do outro lado da porta, e tecido se
arrastando pela porta, outros barulhos suaves, depois de um momento, se dá
conta de que é o porteiro que veio limpar a entrada. Mas ela não se move até a
maçaneta parar de mexer.
Olha
para o relógio várias vezes e fica ciente da hora exata, e então daqui a dez
minutos, mesmo sabendo que não precisa saber que horas são. Ela também
exatamente como se sente, inquieta agora, furiosa em dez minutos. Está careca
de saber como se sente, mas não consegue parar, como se fosse desaparecer (ir
por aí) caso parasse de observar por mais de um instante.
Tem
uma luz forte vinda da cozinha. Ela não acendeu nenhuma lâmpada. A luz vem da
janela aberta (é quase o final do verão). É de manhã.
Noutro
dia, o sol, bem cedo, baixinho, ilumina o parque do outro lado da rua pelas
beiradas, de modo que um tronco nu e as folhas na extremidade externa desse
lado do bosque fiquem esbranquiçados pelos raios solares como se alguém tivesse
jogado um punhado de cinzas sobre eles. Atrás deles, escuridão.
Na
sua frente, enquanto ela fica parada diante da janela olhando para o parque, as
plantadas no beiral perderam algumas de suas folhas.
Ela
sabe que se falar no telefone, sua voz vai comunicar algo que ninguém quer
ouvir. Terá dificuldades em se fazer ouvir.
No
meio dos ruídos aleatórios vindos do pátio (ela os cataloga de tarde: pratos
tinindo, a risada de uma mulher, uma descarga, uma televisão, água corrente),
súbito começa uma briga entre um homem e sua mãe (ele grita com seus graves:
“Mãe!”).
Ela
pensa, estando de volta após alguns anos, que este é um lugar cheio de
dificuldades.
Assiste
a muita televisão, mesmo que não goste muito de nada, e também tenha um
problema em focar a imagem. Assiste ao que quer que tenha uma transmissão
clara, mesmo que possa achar ofensivo. Numa noite, assiste a um rosto num filme
por duas horas e sente que seu próprio rosto mudou. Então, na noite seguinte à
mesma hora, não assiste à televisão e pensa: a hora pode ser a mesma mas a
noite não é a mesma.
Depois,
quando lista e faz uma conta dos sinais de perturbação pelo menos dois são
associados ao aparelho de TV.
Agora
ela não pode adiar por mais tempo. Precisa sair e procurar um lugar para morar.
Ela não quer fazer isso porque não quer dizer a si mesma que não tem um lugar
que seja seu. Preferia não fazer nada quanto ao problema e fica neste
apartamento o dia inteiro.
Diversas
vezes ela sai para olhar apartamentos. Não pode pagar muito, então olha os mais
baratos. Olha um em cima do mercadinho, e um acima de uma pizzaria. O terceiro
não passa de uma carcaça com um grande buraco no piso do quarto de fundos, e o
jardim está tomado por espinheiros. O agente imobiliário pede desculpas.
Muitas
vezes ela chora com o que vê na televisão. Normalmente, é algo do noticiário da
tarde, uma morte, ou muitas mortes em algum lugar, ou um ato de heroísmo, ou um
filme sobre um recém-nascido com uma doença grave. Mas às vezes um anúncio, se
envolve idosos ou crianças, também vai fazer com que ela chore. Quanto mais
nova a criança, mais facilmente chora, mas mesmo um filme de adolescente vai às
vezes fazer com que ela chore, apesar de ela não gostar de adolescentes. Muitas
vezes, depois que o noticiário acaba, ainda está soluçando enquanto caminha até
a cozinha.
Janta
na frente da televisão. Depois de uma hora ou duas começa a beber. Bebe até
ficar bêbada, então derruba coisas no chão, e sua caligrafia fica difícil de
ler, deixa de fora algumas das letras de certas palavras e precisa ler todas as
palavras de novo com cuidado, acrescentando as letras faltantes e depois disso
gravando algumas palavras uma segunda vez acima da escrita ilegível.
Está
se esquecendo de suas ideias sobre moderação.
Lava
a louça tão selvagem que o detergente espirra para todos os lados, e a água
derrama no chão e nas suas roupas. Durante o dia, lava as mãos muitas vezes,
esfregando uma na outra vigorosamente, quase com violência, porque sente que
tudo o que toca está coberto por gordura.
Para
em frente à porta e escuta alguém assobiando no lobby de mármore.
Um dia, vê um apartamento no qual está
disposta a ficar. Não é muito bonito, mas ela se sente pronta para ficar com
ele porque quer ter um lar de novo, quer sentir seu vínculo com a cidade pelo
aluguel, não quer seguir se sentindo do jeito que está, solta no mundo, a única
sem lugar nenhum. Imagina que quando se mudar, vai dar uma festa. Assina uns
papéis. O agente imobiliário vai ligar mais tarde e dizer se o negócio foi
adiante ou não. Anda até em casa, e para para comprar comida no caminho com uma
espécie de tranquilidade forçada, como se algo fosse se quebrar se ela se
movesse muito rápido. Continua se movendo desse jeito, de leve, com ponderação,
o resto do dia. Então, mais tarde, à noite, o agente liga e diz que ela perdeu
o apartamento. O dono decidiu, de repente, não alugar. Ela mal pode acreditar
na explicação.
Agora
ela está certa de que nunca vai encontrar um lugar para morar.
Deita
na cama com uma garrafa de cerveja. Termina a cerveja e quer colocá-la de lado.
Não pode pôr direto sobre a madeira da mesinha de cabeceira porque vai deixar
marca, e a mesinha não é dela. Põe em cima de um livro, mas o livro também não
é dela. Desloca para outro livro, um que é dela, um songbook.
Então
ela levanta porque vê que as roupas que despiu mais cedo estão amarrotadas numa
cadeira. Quer deixá-las esticadas para o caso de decidir usá-las no dia
seguinte, vai esticá-las, mas como está um bocado bêbada elas ficam meio
amassadas, como pode ver. Está bêbada porque tomou duas garrafas de cerveja, um
copo de Drambuie, e então uma
terceira garrafa de cerveja.
Apesar
de estar bêbada, ainda consegue manter algumas coisas na cabeça, mesmo que com
certo esforço. Ela vê quão bem está mantendo as coisas na cabeça e pensa que
ainda é esperta. Pensa no quanto sua esperteza não parece servir tanto assim,
não do jeito que era. Sua esperteza contou menos e menos conforme ela foi
crescendo. Fica deitada no escuro tentando se recompor. Ela pode sentir a beira
do precipício, este recuo. Agora passa das duas da manhã, mas ela não pode se
deixar adormecer.
Na
parte branca de um caminhão, uma águia azul-escura com suas asas abertas.
Observando, ela vê pela janela o caminhão dos correios parar ao lado do
hidrante. Vê o pacote do correio lançado para fora do caminhão na calçada, e o
zelador do prédio o carrega pela calçada e então começa a segurá-lo sobre os
ombros enquanto conversa com outro zelador, e ela fica furiosa conforme observa
porque pode haver uma carta para ela no pacote.
Ouve
falar de um apartamento numa ruazinha legal, mas não vai olhar porque também
ouve dizer que no andar debaixo vivem um doente mental e seu pai e eles brigam
e gritam, e ela não quer ter que ouvir isso.
O
dia está escuro de novo com a ameaça de chuva. Sob a luz amarela, ela limpa as
folhas mortas das plantas da casa e molha os vasos. Neste dia, há mais ordem.
Na
sala de jantar, ela endireita livros pesados que estavam muito inclinados para
o lado nas prateleiras e abertos, estatelados, por tanto tempo que as capas
perderam a forma original, empenadas. Tem outra estante na sala de estar, com
portas de vidro, e no topo dela um relógio que emite um silvo toda vez que o
ponteiro dos segundos passa de certo ponto. Agora, ela anda pelo corredor,
endireitando mais livros conforme se aproxima deles. O corredor é longo e
escuro, com muitos ângulos, de modo que cada quebrada dá em novos corredores, e
o corredor parece, às vezes, infinitamente longo.
No
quarto, onde ela assiste à televisão, escuta muitas vezes um quarteto de
cordas, ou alguma outra música clássica. É um som diminuto, mas perfeitamente
claro. Quando o ouviu pela primeira vez, se havia um rádio em algum ponto do
quarto ligado com o volume bem baixinho. Andou lentamente ao redor do quarto,
escutando. As paredes são escuras, as janelas manchadas, e tem uma cômoda larga
e baixa de madeira verde riscada, com um espelho na parte de cima, para onde
ela olha de novo e de novo, e também olha nos três grandes espelhos do armário.
A música estava vindo do aquecedor, que fica abaixo de uma fotografia
emoldurada de um homem barbudo; é o clássico cujos livros estavam caindo na
sala. Ela colocou o ouvido próximo ao aquecedor e descobriu que a música vinha
da torneira. Agora às vezes ela deita na cama ouvindo a música. É apenas baixa
o suficiente para não impedir de pensar.
Um
dia, umas mosca anda sobre sua mão e ela sente que a mosca é uma presença
amigável. No mesmo dia, ela quer parar um policial na rua e conversar com ele. Então
o impulso passa.
Ela
decide ligar para diversas pessoas. Diz a si mesma que precisa conversar com
alguém. Fica preocupada e então com raiva de si mesma, por estar sempre
pensando em si e olhando o mundo de modo tão sombrio. Mas ela não sabe como
parar.
Lê
um livro sobre o zen e anota num pedaço de papel as oito partes do caminho
óctuplo do Buda, e pensa que ela pode seguir isso. Vê que basicamente se trata
de fazer tudo certo.
Apesar
de já ser suficientemente tarde para ir para a cama, ela come mais alguma
coisa. Cereal, e então, depois do cereal, pão com manteiga, e então
marshmallows, e outros petiscos. Deita de bruços e olha as capas de uns livros.
Ela pode continuar lendo agora sem comer. Sua barriga está tão cheia que não
tem como deitar sobre ela confortavelmente, e ela se sente como se estivesse
deitada sobre uma pedra ou sobre um bando de palitos. Encheu a pança como se
estivesse enchendo uma mochila ou um bote para uma longa jornada. Vai ser lento
e quente, e ela vai acordar e dormir de novo várias vezes, ter sonhos
desagradáveis, ou nenhum sono mas questões incômodas. Nenhuma lágrima,
entretanto.
A
chuva continua a cair constante, um pouco mais alta apenas que o
ar-condicionado. É uma percussão suave com um ocasional espirro mais alto vindo
do pátio.
Não
consegue dormir. Deita com seu ouvido no colchão e escuta as batidas do seu
coração, primeiro o fluxo de sangue bombeado pelo peito, que ela pode sentir, e
então um meio segundo depois o baque no ouvido. O som é tum-dum, tum-dum. Então
ela começa a dormir e acorda de novo quando sonha que seu coração é uma
delegacia de polícia.
Outra
noite, são os pulmões; fecha os olhos e sente os pulmões tão extensos quanto o
quarto, e tão escuros, e protegidos por uma frágil casca de ossos, e em um
pulmão escuro, ela está agachada e o vento sopra em seu redor, para dentro,
para fora.
Algumas
coisas em seu comportamento agora lhe parecem estranhas. Então acontece alguma
coisa que devia amedrontá-la, mas ela não está amedrontada.
Como
acontece: no final do dia, ela liga no noticiário e imediatamente está em
contato, olho no olho, numa intensidade quase insuportável, com o âncora. Ele é
a primeira pessoa que falou com ela no dia inteiro. Agitada por esses poucos
minutos de contato direto, ela vai até a cozinha fazer um omelete. Bate os ovos
e despeja na frigideira, onde a manteiga está começando a derreter. Enquanto
toma forma, o omelete borbulha e murmura , fazendo sua própria espécie de
barulho violento, súbito ela pensa que ele vai começar a falar. Amarelo claro,
cintilando, manchado de óleo, suspira suavemente e se recolhe na frigideira.
Ou
melhor, ela não espera que o omelete fale, mas quando ele não diz nada, ela
fica surpresa. Mas quando ela pensa depois no que aconteceu, vê que na verdade
sofreu algo como uma invasão. A mudez do omelete emanava dele como um imenso
balão e pressionava contra seus tímpanos.
Mas
não é esse incidente, senão o último sinal de perturbação, na estrada, que a
amedronta o suficiente para fazê-la listar e contar os sinais de perturbação,
embora ela não consiga, ainda assim, definir se o que lhe parece um sinal de
perturbação deve contar como tal já que justamente é o seu normal, como falar
consigo em voz alta, ou comer demais, ou se deve ser contado porque para alguém
deve parecer pelo menos de algum modo anormal, e assim, depois de pensar em dez
ou onze sinais, ela oscila entre cinco e sete sinais como sinais reais de
perturbação e finalmente opta por cinco, em parte porque não pode aceitar a
ideia de que haja tantos, até sete.
Ela
espera que tudo isso seja apenas efeito da exaustão. Pensa que vai terminar
quando encontrar um lugar para morar. Não vai se importar muito com que tipo de
lugar é, não a princípio pelo menos. Agora tem duas possibilidades: um
apartamento iluminado e espaçoso num bairro que ela acha um perigo, ou um
conjugado apertado e atravessado pelo barulho do trem numa parte da cidade de
que ela gosta.
O
que aconteceu foi que chegando numa fila para o pedágio numa estrada, ela tinha
setenta e cinco centavos na mão. A tarifa era de cinquenta centavos, então ela
tinha que pegar duas moedas e deixar uma de lado. O problema é que ela não
conseguia decidir qual moeda deixar. Ficou olhando para baixo, para as moedas,
então para frente de novo, tentando dirigir ao mesmo tempo, chegando cada vez
mais perto do guichê, afastando-se da esquerda para o centro como se soubesse
que poderia precisar parar. A cada vez que olhava para elas, separava os
setenta e cinco centavos em grupos de vinte e cinco e cinquenta, mas sempre que
se sentia preparada para deixar uma, lhe parecia que era uma das que fazia par,
então não poderia deixá-la. Isso aconteceu de novo e de novo, conforme ela se
aproximava do guichê, até que finalmente contra a sua vontade, ela colocou uma
de lado. Disse a si mesma que a escolha era arbitrária, mas sentiu a forte
impressão de que não era assim. Sentiu que na verdade era governada por uma lei
importante, apesar de ela não saber que lei era.
Ficou
amedrontada, não só porque havia violado algo, mas porque não era a primeira
vez que por alguns minutos tinha perdido a capacidade de agir. E porque, apesar
de no final ter conseguido devolver uma das moedas, dirigir até o guichê e
pagar o pedágio, e seguir para aonde estava indo, ela podia facilmente não ter
sido capaz de fazer nenhum movimento, e podia ter parado o carro no meio da
estrada e permanecido lá indefinidamente.
Além
disso, se ela não tivesse sido capaz de tomar uma decisão sobre algo tão
pequeno, como poderia não ter sido, então ela podia não ser capaz de tomar uma
decisão sobre qualquer outra coisa, porque o dia inteiro tem decisões assim a
fazer, como entrar nesse ou naquele quarto, andar pela rua nessa direção ou na
outra, ir do metrô à rua por essa ou aquela saída. Havia muitos modos de
raciocinar sobre cada decisão, e muitas vezes ela não conseguia decidir nem o
modo de raciocinar, ainda mais tomar a decisão em si. E assim, desse jeito, ela
poderia ficar completamente paralisada e incapaz de seguir com sua vida.
Mas
mais tarde nesse dia, enquanto se pôs de pé na água, submersa até a cintura,
pensou que estava certa: tudo isso provavelmente não é senão exaustão. Está de
pé, sem os óculos, com água na altura da cintura, em uma praia rochosa. Ela
está esperando algum tipo de epifania, porque sente que uma está vindo, mas
apesar de vários outros pensamentos lhe ocorrerem, nenhum parece muito com uma
epifania para ela.
Está
de pé olhando direto para as ondas acinzentadas que vêm de encontro a ela,
agitadas por um vento forte de modo que elas têm fragmentos ásperos, como
rochas, e ela sente seus olhos serem lavados pelo cinza da água. Ela sabe que
são as rachaduras maiores de sua que a perturbam, não apenas a falta de casa,
mas encontrar uma casa, ajudaria. Pensa que tudo isso provavelmente vai acabar
dando certo, que não vai acabar mal. Então, ela observa as chaminés da fábrica
bem distante, quase invisível através do estreito e pensa, todavia, que isso
também não era a epifania que ela estava esperando.
***
De Tipos de Perturbação - ficções (Companhia
das Letras, tradução de Branca Vianna, 2013).
Colaboração
com a mosca
Eu pus a palavra na página,
mas ela acrescentou o acento.
*
Ideia
para um documentário de curta-metragem
Representantes de diversos fabricantes de
produtos alimentares tentam abrir suas próprias embalagens.
*
Mão
Além da mão que segura este livro que estou
lendo, vejo outra mão, ociosa e um pouco fora de foco – minha mão
sobressalente.
*
Conhecendo
seu corpo
Quando seus globos oculares estão em
movimento, quer dizer que você está pensando, ou prestes a pensar.
Se
não quiser pensar neste momento, tente manter seus globos oculares parados.
*
***
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