Na segunda semana de postagens dedicada ao
trabalho de Lenora de Barros, procuramos selecionar um conjunto de reflexões
que se debruçassem sobre dois de seus procedimentos fundamentais em sua maneira
de propor o fazer artístico: o desdobrar e o deslocar. De algum modo, se tais
aspectos podem ser rastreados desde o seu trabalho em revistas como Poesia em Greve e suas colaborações em
periódicos nas décadas de 1970/1980 que ecoaram e foram retomadas em
exposições, a partir de desdobramentos (em novos formatos, com nova organização
dos elementos visuais ou dinâmicos, etc.) operados na década seguinte, isso se
intensifica a partir da sua atividade na coluna semanal ...umas, desenvolvida entre 1993 e 1996 dentro do espaço de um
caderno cultural do Jornal da Tarde. O
material das colunas, efetivamente, chegou a ser tema de exposição recente,
entre março e maio deste ano, no espaço Pivô.
Nesse
sentido, talvez a pergunta que mais inquiete, e que por isso de maior
interesse, seja justamente a pela passagem – não só a passagem de um jornal
para um espaço de reflexão artística (como a coluna sobrevivia, dialogava,
recolocava os temas cotidianos da reportagem cultural), mas também dos
sentidos, de imagens sobre cabelos e cortes até diversas ordens de
experimentação com cartazes de Procuro-me/Procura-se. O que se insinua, na colocação
do deslocamento como gesto fundamental da reflexão artística, é uma espécie de
recusa dos signos tradicionais da identidade. Toda obra é um pouco Proteu, e
existe para assumir novas formas num movimento vertiginoso que convoca a cada
momento diferentes formatos, meios, mas também diferentes modos de percepção e
de relação com o corpo (da artista, do espectador, etc.)
As
proposições estéticas de Lenora talvez possam ser tomadas não como proposições
estáveis, no sentido de encerrarem um esforço conceitual e logicamente
estabelecido acerca da natureza do objeto artístico, mas como experiências
sobre a duração específica da obra de arte, e seu modo de registrar ou receber
o jogo contínuo entre semelhança e diferença. A passagem de um espaço a outro
condensa e potencializa transformações que ocorreriam com a passagem do tempo,
por exemplo. A passagem de um meio para outro deixa a nu, por outro lado, a
insistência de certos temas sobre o corpo, e sobre o pensamento artístico –
mudar de meio é escapar da estabilização, engessamento da ideia. Toda a
passagem implica uma mudança de perspectiva – de uma ponta a outra, de um
jornal a sala de exposição o que muda é o olhar.
Nessa
postagem, apresentamos 3 excertos da dissertação ...umas, de Lenora de Barros: trânsitos entre coluna de jornal,
proposição artística e arquivo, uma entrevista realizada pelo espaço Pivô,
quando da exposição do material, e mais um conjunto de imagens com poemas e
fotografias de Lenora scaneadas de Relivro
(2012) que reúne sua obra, fotos das obras Não
me mostre (2005), Duas operações (1994/2004),
silêncio e cala boca (1990/1996), There is no utopy like a place – junto com
link para áudio de performance vocal – (1994), e uma entrevista em vídeo sobre sua obra.
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Reprodução coluna "...umas" Corpos/Dupla Face (s/d.) |
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Coluna "...umas" - várias (Imagem Exposição no Espaço Pivô (2014)) |
Três
excertos da dissertação ...umas, de
Lenora de Barros: Trânsitos entre coluna de jornal, proposição artística e
arquivo (Eduardo de Souza Xavier).
Este estudo tem como objetivo analisar a
coluna de jornal denominada ...umas,
assinada por Lenora de Barros no Jornal
da Tarde (JT), ligado ao Grupo Estado, entre 1993 e 1996, ...umas foi a coluna experimental na
qual a artista articulava imagens e textos oriundos de variadas situações, como
da mídia, do cinema, das histórias em quadrinhos, do universo das artes
visuais, da poesia e do próprio fotojornalismo e onde também veiculava suas performances, poemas visuais, escritos e
outras proposições. É interessante que neste jornal, dedicados a noticiar e
transmitir informação, Lenora de Barros tenha estabelecido um espaço de criação
e experimentação intimamente ligado às questões desenvolvidas em sua trajetória
artística, publicando ali suas obras de forma integral, ou em fragmentos, junto
com comentários e imagens desdobradas de obras de outros artistas.
Publicada,
semanalmente aos sábados, ...umas ocupava
parte de uma página do suplemento cultural e de entretenimento do JT. A coluna
era publicada sempre no canto esquerdo da página do jornal, medindo 51,5 x 10,5
cm, sendo que sua altura era equivalente à própria página do jornal, enquanto
sua largura ocupava cerca de 1/3 da página. Neste espaço, Lenora de Barros
apresentava também comentários sobre a história da arte, misturando senso
crítico e ironia ao abordar a obra de artistas contemporâneos de importância no
cenário nacional e internacional. Em função de seu caráter experimental,
pode-se considerar que ...umas estava
distanciada da habitual crônica escrita nos jornais, pois nela a artista
desenvolvia a criação em um espaço gráfico livre, que articulava imagens,
textos, palavras e poesias, unidas por um tema distinto a cada semana.
...umas estabelece uma relação intensa
com outras obras de Lenora de Barros, demonstrando o quanto esta experiência,
ligada inicialmente a um meio de comunicação, foi incorporada na sua
trajetória. Muitas das proposições apresentadas na coluna foram desdobradas em
obras, apresentadas em espaços expositivos de artes visuais depois da
publicação de ...umas. São estes
deslocamentos entre os espaços nos quais a artista apresentou suas proposições
que motivaram a realização deste estudo.
[...]
Sob a perspectiva
dos deslocamentos e desdobramentos na obra de Lenora de Barros, é marcante o
exemplo de Procuro-me, obra da
artista que foi inicialmente publicada na edição de ...umas intitulada Formas
Capilares. Em Procuro-me, a
artista apresenta autorretratos nos quais está com a mesma expressão de
espanto, mas com diferentes estilos de penteado. As imagens foram feitas em um
software de montagem de imagens, disponível em salões de cabeleireiro em São
Paulo e nelas, a repetição dá lugar à fragmentação e à perda de identidade,
pois a artista está sempre igual, mesmo mudando constantemente sua aparência. O
próprio contexto para o qual era utilizado o software – um arquivo de penteados
já prontos para o usuário automaticamente escolher e mudar o seu visual – é
pensado nesse sentido em Procuro-me.
Quatro
de aproximadamente 40 imagens foram publicadas com o título Hair Styles na coluna ...umas. Junto a elas, imagens ligadas
ao tema “cabelo”, como a obra Xipófagas
Capilares (1994), de Tunga; 1978-1988 (1990), de Lorna Simpson; Escadas de Metrô (1957), de Leda
Catunda; uma fotografia de 1921, feita por Man Ray, de Marcel Duchamp com um
cometa raspado em sua cabeça; e da mulher com os cabelos mais longos do mundo
na época. (...) inicialmente, a questão
centrou-se na temática do cabelo como metáfora para questões como
entrelaçamento, união e continuidade.
Em
2001, sete anos após a realização das imagens iniciais, Lenora de Barros
veiculou esta proposição novamente em um jornal. Motivada pelos ataque às Torres Gêmeas
ocorridos naquele ano, as imagens foram publicadas no formato do cartaz de terrorista
procurado, veiculado pelo governo norte-americano na contracapa do Caderno Mais!, da Folha de São Paulo. Mesmo que esta versão relacione-se, em certa
medida, ao acontecimento histórico do 11 de setembro de 2001, Procuro-me instiga diversos
questionamentos que vão além deste fato, os quais viriam a ser desenvolvidos
pela artista em desdobramentos posteriores, direcionados para a questão da
perda e da procura da identidade.
O
formato do cartaz foi mantido quando Lenora de Barros deslocou estas imagens
para um espaço expositivo. Em 2002, no Centro Cultural Sérgio Porto, no Rio de
Janeiro, a artista realizou a exposição Procuro-me,
na qual apresentou um mural com os cartazes, uma instalação sonora e uma
vídeo-performance. A artista distribuiu cartazes pela cidade, fixando-os em
muros e distribuindo-os para as pessoas na rua. No âmbito desta exposição, a
seriação expande-se no espaço expositivo através da repetição dos próprios
cartazes e, nesse sentido, a artista procura a si mesma, nas suas diversas
representações presentes nas imagens. Do mesmo modo que cartazes espalhados na
cidade por vezes buscam pessoas desaparecidas, os cartazes de Procuro-me parecem indicar a busca de
uma identidade perdida e fragmentada frente a uma sociedade composta por multidões
de pessoas que se assemelham e que buscam, a todo instante diferenciar-se, por
exemplo, através do próprio visual ou do corte de cabelo.
No
mesmo ano, os cartazes expandem-se para ocupar a fachada do Centro Cultural
Maria Antônia, em São Paulo, neste caso, voltados para o lado de fora do espaço
de exposição provocando quem passasse pela rua. O curioso é que, ao serem
expostos na fachada do prédio, os cartazes foram pichados por um grupo chamado Art-Atack, que era contra proposições de
arte contemporânea e fazia, inclusive, projetos de suas ações, tendo enviado
cartas para Lenora de Barros, Lorenzo Mammi (então diretor do Centro Cultural
Maria Antônia) e Fabio Cypriano (que havia noticiado a exposição). Nestas
cartas, por exemplo, o grupo planejava tirar dos cartazes a sílaba “pro” de
“procuro-me”, formando a palavra “curo-me”, em uma analogia com uma suposta
cura da arte contemporânea almejada por seus integrantes.
O
trabalho foi outra vez alvo de um ataque e teve diversas partes recortadas. A
partir disso, Lenora de Barros resgatou o trabalho e fez uma espécie de
restauro, imprimindo novamente as palavras que haviam sido pichadas e
transformando o “procuro-me” em “procura-se”, já que a autoria do segundo
ataque não havia sido confirmada. Dois anos depois, com o material que sobrou
dos cartazes pichados e recortados, a artista elaborou uma nova proposição,
apresentada na exposição Retalhação,
em uma das salas do Centro Cultural Maria Antônia, em 2007.
Como
se observa, o exemplo destes deslocamentos e desdobramentos indica questões que
estão muito além da técnica ou formato nos quais materializam as proposições
artísticas. Os desdobramentos de Procuro-me
são extremamente significativos, pois demonstram o quanto o espaço no qual se
coloca determinada proposição influencia na sua percepção e também na relação
com o público. Nesse sentido, quando exposta na fachada do espaço de exposição,
os cartazes tiveram um destino que não estava previsto pela artista. Ao
resgatar o trabalho, a artista acabou agregando sentidos que talvez não fossem
aferidos aos trabalhos sem os ataques, por exemplo.
Nota-se
que os entendimentos desta proposição, que tem por base o mesmo conjunto de
imagens, modifica-se de acordo com o ambiente no qual é apresentada, indicando
a necessidade de uma maior contextualização quanto à situação de cada um de
seus desdobramentos. Na mesma medida em que a artista se procura nas imagens
dela mesma, se poderia indagar onde está a obra, dentro destes múltiplos
deslocamentos que compõem. A resposta para esta questão não seria única, pois é
justamente nos espaços entre um momento de apresentação e outro que a
proposição se faz e se modifica, questionando o caráter único da obra de arte
bem como sua autonomia em relação ao espaço de exposição.
[...]
De
maneira a evidenciar a relação entre ...umas
e arquivo, é trazido a seguir um depoimento da artista, no qual relata o modo
como realizou a coluna.
“Quando eu vivi a experiência da coluna
[...], fui criando um método e trabalhava muito com memória. Então, eu começava
com um tema, por exemplo, ‘formas capilares’, aí vinha o Tunga. Então, eu ia
aos arquivos do Jornal da Tarde e pedia a pasta ‘cabelo’, daí vinha cabelo,
cabeleireiro, etc. Era um trabalho que eu fiz muito ali, no arquivo do jornal.
[...]. O meu ateliê era um pouco o banco de dados lá do Jornal da Tarde. [...]
Mas, naquele tempo, eu não tinha tanta consciência de que aquilo pudesse gerar
outras obras. Foi só um tempo depois que eu parei de fazer as colunas, que
comecei a pinçar coisas ali. [...] Vendo de longe, se eu fizesse a coluna
agora, acho que talvez não haveria diferença entre a galeria e um espaço de
exposição. Porque alie era um exercício criativo”. (Barros apud Xavier, 2011,
p. 39).
Este
depoimento de Lenora de Barros sobre o processo de criação de ...umas aponta para o uso do arquivo em
sua obra, que pode ter dois direcionamentos. O primeiro diz respeito ao método
de elaboração da coluna a cada semana, realizado em sua maioria nos arquivos do
JT. Nesse sentido, a coluna configura-se como uma reunião de fragmentos
selecionados pela artista que, interrelacionados, formam novas questões unidas
pela temática de cada coluna. Já o segundo direcionamento refere-se à
incorporação das edições de ...umas em
sua prática artística posterior, na medida em que a artista se utilizou de
ideias, imagens e problemáticas ali apresentadas, desdobrando-as em novas
circunstâncias de apresentação.
Os
dois aspectos estão formalmente ligados ao uso do arquivo na arte contemporânea
e fazem parte de uma conjuntura que na última década ganhou força no cenário
artístico. O arquivo como uma maneira contínua ou descontínua de ordenar
elementos fragmentários do passado encontra-se em diversas abordagens na teoria
da arte no cenário atual. Do mesmo modo, a forma do arquivo pode ser encontrada
nas próprias obras, através de procedimentos como catalogação, documentação e
acumulação de materiais, imagens, objetos, ou mesmo fato descritos.
(XAVIER, Eduardo de Souza. ...umas, de Lenora de Barros: trânsitos
entre coluna de jornal, proposição artística e arquivo. Dissertação de
Mestrado. UFRGS. Porto Alegre, 2012).
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Entrevista
sobre Exposição Umas e outras (PIVÔ – 2014)
De Relivro (2012)
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Não me mostre (2005)
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Duas operações (1994/2004)
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silêncio e cala boca (1990/1996)
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There is no utopy like a place (1994)
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Acrílica sobre Mdf, 60 x 50 cm, díptico utopy |
Para ouvir a performance vocal da obra,
clicar aqui
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Entrevista
Entrelinhas
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