Confissão ou máscara?
Como pensar o desejo feminino?
Ou mais: como pensar o desejo feminino fora
da figura da impossibilidade? Fora do reflexo de sustentação do olho do outro? Fora
da cadeia de identificações com a figura masculina?
Numa mistura de ensaio e performance de
carta íntima, a professora e poeta Ana Cristina de Rezende Chiara parte dos
trabalhos de Leonilson, Ana Cristina César e Sylvia Plath para pensar um Artista no feminino.
O artista no feminino estaria empenhado num
jogo de “sedução continuada”, na promessa de confissão – sempre adiada – que pretende
mobilizar, afetar o outro. Mas que também o trona refém desse outro olho.
Como se libertar da tirania do olho do
outro? Como se transformar no outro?
Esta semana no BNTB, Ana Chiara manda uma
carta aos analistas.
***
Ana Cristina de Rezende Chiara (Ana
Chiara), Doutora em Letras pela PUC-RJ, Professora Adjunta de Literatura Brasileira
na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Dedica-se à pesquisa nos seguintes
temas: corpo, sexualidade, memória. Autora dos livros Pedro Nava: um homem no limiar (EdUERJ, 2001); Ensaios de possessão (Irrespiráveis) (Caetés, 2006); e Angela Melim por Ana Chiara (Col.
Ciranda de Poesia, EdUERJ, 2011). Participa do GT da ANPOLL de Literatura
Comparada e coordena o GrPESQ Corpo e Experiência (http://gpcorpoexperiencia.blogspot.com).
***
Carta
aos analistas: confissão da intimidade impossível
Para Carla
Damião e Márcia Tiburi 1
“I will not show you my eyes/ I.”
"Te
dou minha íris , benzinho. que queres mais?" (a.chiara)
I. Voilà mon coeur
“Voilà mon coeur” (Leonilson,
1989) é o título de um pequeno trabalho de Leonilson, um paninho onde o
artista costurou gotas de cristais. A obra bordada no feminino, digamos assim,
remete ao “o coração exposto” das figuras religiosas; nela se inscrevem, na
fragilidade e delicadeza dos materiais, tecido e cristais, significantes que
nem mostram nem escondem nada; o coração do artista acena como um lenço, um
véu, um velame, num adeus, bloqueando a possibilidade prometida de um serviço
amoroso, da exposição de seu íntimo ao olhar do outro. Em outras peças, o
artista se oferece. “Todos os rios desembocam na tua boca” (s/d) é o
título de outro de seus trabalhos, mas, em realidade, o artista sempre se
retrai no silêncio irredutível de suas peças. O que Leonilson expõe, em outras
obras - entre sangue e frases de diário, cartas endereçadas a um nobody, a um someone, a um príncipe perdido - é a recriação encenada de um rapaz
apaixonado, assombrado por um fantasma romântico, são cantigas de amigo, com
gêneros embaralhados; contudo, ao mesmo tempo, essa devoção amorosa parece
refluir para um ponto aquém ou além de qualquer biografismo. Penso agora, no
“Quarto do herói”, lembro com ternura título dado ao espaço que abrigou
Leonilson na mostra Onde está você
Geração 802, do CCBB. “Quarto do herói” foi o nome sintomático
dado ao antigo cofre-forte do banco, onde se expuseram os trabalhos do artista.
Nome-metáfora de uma exposição máxima (“Voilà mon coeur”) e de uma trava
radical (um cofre-forte).
Assim como Leonilson, para mim, um artista
no feminino, digo que certos artistas contemporâneos ensaiam no feminino uma
sedução continuada, chamam para uma “conversa íntima”, que será o motor da
criação e também o próprio logro do desejo de intimidade. Destinam “Cartas de
almor” (Lacan, 1985, 105-120), como o delirante Lacan chama o endereçamento do
desejo feminino. Lacan desliza nos significantes: letters, lettres, lèvres;
descreve o desejo feminino talvez como lebres (“lièvres”) loucas, como palavras
assustadas com os lábios (“lèvres”) rachados, feridas abertas na
impossibilidade de serem comunicadas: “Não estou conseguindo explicar minha
ternura, minha ternura, entende?” (CESAR, 2002, p.120), reclama a Ana C.; “para
olhar minhas cicatrizes, há um preço”, diz Sylvia Plath (PLATH, 2005, p.65).
Parece então que, ao artista no feminino, caberá a mobilização do outro,
afetá-lo, contaminá-lo sem oferecer a narrativa de uma experiência.
Existiria, segundo Marcos Siscar, no texto “Ana
C. aos pés da letra”, (SISCAR, 2009) uma afetação de sinceridade, uma teatralização do poema “dito com
o coração”, quando o sujeito lírico finge expor a sua intimidade, em cartas,
diários, notações confessionais. Estes gêneros da privacidade, muito usados por
Ana C., criam um halo de intimidade, mas confessam, ao mesmo tempo, seu caráter
de fingimento, o logro do destinatário “Hoje sou eu que/ estou te livrando /da
verdade” (CÉSAR, 2002, p.59). Esta observação também pode ser estendida a Sylvia
Plath: os mesmos vocativos aproximam o destinatário, para empurrá-lo depois com
violência expondo a abjeção de seu corpo. No poema “Lady Lazarus”, de 1962,
Sylvia encena um strip-tease cruel “A plateia comendo amendoins/ Se aglomera
para ver/ Desenfaixarem mãos e meus pés - / o grande strip-tease,/ Senhoras e
senhores” (PLATH, 2005, p. 63); Ana C. no poema “Epílogo”, do livro Luvas de pelica, coloca-se como um
ilusionista num palco: “Reparem nas minhas mãos, vazias./Meus bolsos
também estão vazios./Meu chapéu também está vazio. Vejam. Minhas mangas./ Viro
de costas, dou uma volta inteira”.
Ainda é Marcos Siscar, no texto “O Coração
transtornado” (SISCAR apud NASCIMENTO, 2005, 135-142), quem desenvolve a noção
de “dramaturgia jubilosa”. O crítico trabalha a hipótese de que, diferentemente
das referências ao coração, como sede dos sentimentos, este órgão está em
relação com o pensamento, numa perspectiva corporal dentro-fora. O coração, como víscera, agitar-se-á jubiloso
ao se perder. Quanto mais víscera, quanto mais dentro do corpo, menos dentro de
si, ou seja, menos dentro de uma intimidade, mais experiência visceral de perda
de si mesmo, experiência de confronto com esse buraco abjeto e escuro onde o
corpo é breu, brevidade, brecha:
“Aquilo que, [...], se manifesta como
problema de coração mostra-se repentinamente como experiência visceral. A
partir daí, o que deveríamos reaprender a chamar ‘coração’ não diz apenas a
qualidade de uma relação interior, mas deve ser aproximado do perigo da perda
de interioridade. Não há coragem senão a esse preço”.
O “coração” seria, neste caso, menos
sentimento, mais pensamento transtornado, tumultuoso, mais pulsão que sensação.
A máscara sedutora dos poemas escritos no feminino faz semblante de confissão
para se livrar do sortilégio do abandono pelo outro, é este temor que deve ser
exorcizado, ensaiando, com um rigor obsessivo e paradoxal, nessas pequenas
peças dramatúrgicas, não a confissão de um segredo, de sua “flor escondida”,
não o que vai “no coração”, mas o júbilo de dirigirem o espetáculo e se
retirarem de cena antes de serem deixadas.
- II- Sob uma redoma3
Então, é para você, que passo a contar
agora os bastidores desse teatro. É para você que abro a caixinha de pandora.
Não se assuste com o cheiro que exala. São trapos velhos, sentimentos
apodrecidos, fetos que teimam em nascer fora do prazo. Você está me entendendo?
Nenhuma hipótese de sinceridade, espontaneidade e do acolhimento femininos pode
caber aqui, Meu Querido, só o cadáver deste amor.
O risco que quero correr é deslizar para
este confronto entre o que estou chamando de um artista no feminino, sua
demanda do olhar do Outro e a possibilidade de este artista poder manter-se
ereto, suspenso no ar, sem esse amparo. O coração que eu quero expor neste
trabalho não é o meu, nem o teu, mas o coração da arte que nos libertará do
peso deste olhar, do peso deste mau olhado.
Ela estava toldada. Sob um toldo. Sob uma
redoma de vidro (PLATH, 1999). A vida sob uma redoma. Ele descia as pálpebras,
cortina de cílios, sem poder nunca alcançá-la, sem querer vê-la em realidade. Do
desencontro dos dois, extraio tudo que não pode ser dito, nem é representável.
Digo quase tudo. Digo aquilo que escapa entre um homem e uma mulher, um Ted e
uma Sylvia, entre um Navarro e R; entre a mulher (uma analisanda) e seu
psicanalista, entre mim e vc. Amor. Digo isso com suavidade, antes de matá-lo
cinco vezes em sonho, a cada noite.
Olhar que seduz é a baba que recobre os
textos de Sylvia Plath, assim como os de Ana C. Olhar endereçado a um impossível
leitor, a um leitor hipócrita, incapaz de vê-las, escondidas sob técnicas
profissionais de sedução, vocativos açucarados, dispostos de forma cruel, antes
da próxima retirada de cena. Mulheres, aparentemente sob controle de seus
intérpretes, seus analistas. Não quero aqui controlar nada, nem desmistificar,
nem desconstruir “as tramas da consagração”(cf. LEONE, 2008); tampouco quero
fazer leituras mirabolantes, análises de discurso. Estou até o tampo; trampo de
etiquetas e rótulos. Preciso te dizer de novo? Não, não quero o real demais.
Quero a aura das poetas, a auréola do bico dos seios delas onde vou sugar este
leite, este fel, esta festa4, quero o halo de martírio que as
envolve, essas prostitutas sagradas, mulheres oferecidas, quero a magreza das palavras
delas, a anorexia santa dos seus encontros fortuitos com Deus5. Sim,
eu quero tudo, quando finjo querer muito menos; quando desejo mais, quero mais,
mais ainda, um mais além, não é assim que os psicanalistas nos definem? As que
demandam amor, as garotinhas miseráveis?
Não vivemos ardis de feminilidade, segundo
as teorias analíticas, até a última gota, desnorteadas, como bebês que buscam
seus reflexos nas pupilas das Mães? Esse jogo sedutor, esse teatro mambembe,
não é para recuperarmos nossos corpos no brilho sedutor do desejo nos olhos
deste Outro? Não somos, nos manuais, aquelas que fazem semblante6?
Nunca essencialmente femininas porque sempre fora do alcance da própria
feminilidade? Máscaras, artifícios por oposição ao rosto masculino?
Então eu te aviso, Querido, não me venha
com propostas indecentes de escrever, de pôr no papel o que me atormenta, a
minha doce compulsão, o meu pecado, a minha droga. Não basta que eu transfira
meu amor pra você? Essa operação complicada, assombrosa e inverossímil? Não me
venha com cartas no bolso do colete. Nada de caderninhos terapêuticos, a
escrita não me salva de nada. Pensar que a escrita consolaria alguém ofende as
poetas que trago aqui. Pois te aviso, nelas o artista no feminino mergulha na
escrita para poder morrer e ressuscitar. Elas cavalgam na escrita em direção ao
sol vermelho, à pupila vermelha( “Ariel”,
PLATH , 2005, p.58), ao umbigo
do mundo, galope de suicídio, quedas de uma janela.
“Amor, Amor, Amor”, eu sussurro em teu ouvido
distraído, as mulheres mortas por olhares indiferentes, violentos ou invejosos
de seus homens, são meu tema aqui. São elas que me assombram. Não me olhes com
essa indiferença compassiva, por favor. Por isso retiro meus óculos quando
conversamos, para desfocar o teu olho, para não ter de encarar nos olhos o real
que você teima em agitar na minha frente.
Se exponho, em cena, esse teatro da
intimidade. Se me comporto mal e divido, com o público essas anotações é porque
vc. me pediu, saindo de férias. Foi uma provocação, Querido? Se trago à luz
essas cartas trocadas, roubadas, extraviadas, cartas sem nunca chegar ao
destinatário, cartas com destinação, mas sem destino, cartas de naufrágios,
cartas entre o coração transtornado de uma mulher e o olho calculador de um
homem, se te escrevo agora é para quebrar, de vez, o espelho entre nós dois. Se
dirijo essa “dramaturgia do arbitrário” (“Cariátides 2”. HUGUES, 1999, p.25) é para
libertar a mulher do peso da tua pupila. Se uso o poeta, Ted Hugues, é para que
ele confesse entre a culpa e a devoção, que só pôde ver sua mulher Sylvia
Plath, “por um instante sobre o caixão aberto”. Enquanto isso, um outro
mantinha seus olhos encobertos por um jornal, obrigando a Ana C. a dizer: “Por
que essa falta de concentração? Se você me ama, por que não se concentra?”
(CESAR, 1985, p.154). E você, qual é a sua, Coração? O que vê quando se recusa
a me olhar?
O que exponho aqui como osso fraturado, é o
choque dessas subjetividades inconciliáveis, inconsoláveis: um homem e uma
mulher. O que quer uma mulher? Um mais além do que a necessidade? Uma palavra
de amor que a sustente no ar? Que a mantenha ereta, erétil, tesa, em pé,
ultrapotente? Numa outrapotência (cf.
DERRIDA,2005)? Numa outra frequência? Afinal, o que um homem pode querer que a
mulher queira - sem deixá-la escapar ao controle dele, sem ficar escondido,
toldado por um pensamento armado como uma tenda? “O gozo fálico tem assim, por
princípio, tornar a mulher inacessível ao homem” (ANDRÉ, 1998, p.230)
Eu negocio aqui a rendição do olhar que não
se rende. Do olhar apolíneo de um homem, olho controlador, e do olhar revirado
de uma bacante, como uma Sylvia Plath, como um plaft, um tapa no teu rosto. Entre o olhar detivesco de um homem,
um Ted qualquer, um “teddy bear”, um ursinho de brinquedo, um olhar que busca
os segredos, e o olho semicerrado de uma Ana C., em pleno disfarce e sedução.
Eu quero falar da paranoia de sustentação do real. Da vulnerabilidade da mulher
que precisa ser sustentada pelo olhar de um outro. Sim, Meu Amor, é o teu olhar
que me deixa de pé, parecem dizer os poemas. O que o olhar do Ted para a Sylvia
e do Navarro para a Ana C., assinada R, quer encobrir é o desejo delas (em
auto-exposição), o que o olhar no masculino não suporta é um “voilà mon coeur”
dito por uma mulher, um voo, um roubo de cena, um arroubo no feminino. Estes
olhos que os homens pousam nas mulheres, são olhos normalizadores, não apenas
querem sexo-seguro, mas querem o desejo seguro, querem segurar o desejo, querem
ficar no controle do desejo.
Por que Ana C. força o olhar do outro para
que a veja sempre no voo pela janela, para que contemple seu corpo caindo uma,
duas vezes, esguichando o sangue de uma
poeta (MORICONI,1996)? Por que Sylvia Plath queria essa forma miserável de
amor póstumo, esse olhar complacente do marido, no dia do aniversário, mesmo
dentro do caixão? Fora deste circuito do olhar do outro, as poetas suicidas
abandonariam a cena sado-masô, os rituais de sacrifício e de auratização da
melancolia amorosa?
No livro Cartas de aniversário, Ted Hugues, escrevendo cartas endereçadas à
Sylvia a cada aniversário post mortem,
retroage no casamento para justificar que a morte rondava a mulher. Em
“Retratos”, relata que um pintor Howard pintava o retrato de Sylvia Plath. Ted
vê a morte nela pelos olhos do pintor _ jogo cruel e especular _
Estou pintando e ouço uma voz, de mulher,/
Chamando Howard, Howard – débil, distante,
Morrendo aos
poucos” (HUGUES, 1999, p.217)
Isenta-se assim de culpa por tê-la olhado
com um olho mau? Lacan associa o olho mau ao desejo de reduzir a força do
outro, deter o seu movimento: “Isso é a verdadeira inveja – a inveja que faz o
sujeito empalidecer diante da imagem de um eu completo [...]”. (LACAN, apud. FOSTER,1996,
p.266). No mesmo poema Ted afirma que Sylvia tinha “lábios exatos” (HUGUES, 1999,
p.217), em outro, “O Tiro”, que a carreira dela “tinha a fúria de uma bala de
alta velocidade” (HUGUES, 1999, p.47). No poema Febre 40º, Sylvia escrevera
ardente: “Amor, amor, a fumaça escapa de mim/ como a echarpe de Isadora”
(PLATH, 2005, p.49). A releitura do poema, feita por Ted, no poema “Febre”
revela o quanto a entrega da mulher aos delírios da febre o assustara: “O que eu
estava dizendo, no fundo era: “Não faça drama”” (HUGUES, 1999, p.107).
As “Três cartas a Navarro”, assinadas por
R., constam do livro póstumo de Ana Cristina César, Antigos e soltos: poemas da pasta rosa (2008). São fac-símiles de cartas endereçadas a um
suposto Navarro por uma suposta R. Nessas cartas, R expressa a vontade de
barrar as exegeses de cunho psicológico “ratazanas esses psicólogos da
literatura“ (Carta 1. CÉSAR, 2008, p. 17),
hesita mais uma vez sobre a possibilidade comunicativa da escrita “Na
próxima tentativa (e cinco espinhos são) não soltarei mais que balbucios” (Carta 2, idem, ibidem) e, por fim, expõe o
lugar de onde fala, o coração transtornado, essa extimidade, termo utilizado
por Lacan, que diz da impossibilidade de acesso ao íntimo, diz daquilo que se expõe entre o “amor, desejo” e
um tu que é “esquiva pessoa” (Carta 2 idem, ibidem). A extimidade faz a
intimidade circular intersubjetivamente. Lacan define assim: “Extimidade fala
que o íntimo é o Outro – como um corpo estranho, um parasita.”7: Ana
termina essa carta com a seguinte frase “Falava-te de vísceras. Guarda este
segredo; esta secreção. Não,” (Carta 3. idem, ibidem).
Você está acompanhando o que eu digo? Sim,
Amor, Sim, Amor. O que estou te dizendo, será que consigo te explicar toda essa
ternura? É que, se, essas poetas, essas mulheres, essas garotinhas miseráveis,
pudessem devir totalmente obscenas, sem anteparos dos discursos amorosos, se
pudessem se olhar no espelho sem se sentirem abjetas, estariam livres do olhar
para o qual fazem semblante. Ana C. temia perder o olho do outro, e ter de
sustentar a poesia dela com uma tragada sem a aprovação amorosa do outro. Eu me
esforço aqui pra tirá-la da morte e pô-la de pé sozinha na insustentabilidade
da condição do artista no feminino, revertendo esse desejo de seduzir o outro,
pra ficar seduzida por si própria. O salto, a seguir, seria tomar o olho do
outro e fazê-lo dela8, poder se ocupar do outro; acho que é isso que
diferencia o desejo de poesia libertado no artista no feminino. A Ana precisava
do olho do outro olhando pra ela, enquanto podia querer o olho do outro pra ver
o mundo como o outro vê.
Eu te pergunto então como seria, hein? Como
você aplicaria as fórmulas das análises sobre histéricas, neuróticas, paranoicas?
Como repetiria a explicação que já está pronta, redondinha? Os jogos de
palavras? Como conseguiria detê-las em seu “jato de poesia”? Que máscara
protetora antivírus você usaria contra essa contaminação, se elas pudessem te
olhar depois do espelho partido?
Não disfarça, não olha o relógio, já estou
terminando. Do mesmo modo que Clarice inicia um livro por uma vírgula, Ana
finaliza a “Carta 3”
por essa pequena suspensão da respiração, como quem se prepara para saltar
sobre o outro. Te assustei, agora? Fica calmo, você está a salvo. Sou eu que
aqui corro o risco de tropeçar no meu desejo. Sou eu que quero tomar a coragem
do grande Sim à vida. Eu, a Sylvia e a Ana, Meu bem, somos nós que dizemos um
grande Sim e fechamos a cortina sobre nós antes dos aplausos. Bem assim, ó Querido,
nós apenas sem mais ninguém, nós atrás de uma cortina de lágrimas diante de uma
plateia vazia. Cada uma por si: “Posso ouvir (agora) minha voz feminina: estou
cansada de ser homem” (CÉSAR, 2002, p. 102).
Estamos bem, não se assuste. Estamos no auge de nossas forças, mesmo
mortas no panteão da psicanálise onde a mulher não existe, nosso lado “negro
avança e draga” (PLATH, 2005, p.95).
III. Possibilidades em aberto: as insígnias
fálicas
Ao destacar o aspecto fingido, ou encenado,
ou performatizado, da “intimidade confessada”, pelo “artista no feminino”,
associando-o, no caso das poetas mulheres, ao diálogo amoroso e/ou à cena da
psicanálise, quando esta se debruça
sobre a figura do gozo feminino como uma impossibilidade, fora do reflexo da
sustentação do olhar do outro, ou ainda pela cadeia de identificações com as
figuras masculinas, como já estudei em outros ensaios9, não desejo
outra coisa a não ser mover o pensamento para possibilidades de afirmação do desejo
no feminino sendo, como no conceito
deleuziano, uma linha de fuga dessa
economia. Busco também os deslocamentos de gênero, como em Leonilson, as
possibilidades, em aberto, de campos de força inéditos, funcionando como aquilo
que Roland Barthes designou como o “sorriso”10 que resiste às formas
enrijecidas do poder político, ao fascismo da língua. Trato aqui, obviamente,
da política das artes.
As palavras da crítica Lisette Lagnado
reconhecem, como já apontei inicialmente, o caráter intimista da obra de
Leonilson: “A obra de José Leonilson reservou seu lugar na ficção epistolar
contemporânea. Cada peça foi rigorosamente construída como uma carta para um
diário íntimo” (LAGNADO, 1998, p.27); ela assinala ainda o procedimento elíptico e embaralhador no tocante as marcas
de gênero. Podemos observar que, mesmo inscrevendo-se numa linhagem de artistas
que executam trabalhos com tecidos e bordados (Leda Catunda, Artur Bispo do
Rosário), é certo que se pode reconhecer, na delicadeza e minimalismo dos
trabalhos de “costura” de Leonilson, certas marcas de um ‘possivelmente
feminino’ na sua recusa ao ‘fazer artístico’ institucionalizado, no seu
aparente inacabamento, configurando uma espécie de ‘sorriso’, um ‘détachement’
afirmativo contrário ao discurso hegemônico, uma corrosão dos discursos de
poder, não irônico, mais sutil, no sentido barthesiano. Reconhecemos, em certos
‘escritos bordados’ nos trabalhos dele, o uso dos vocativos ‘açucarados’ de Ana
e de Sylvia, a estratégia de sedução como forma de endereçar de forma cativante
um convite de intimidade com público. Mas a questão é saber de que modo e para
quê?
Quando expõe ‘seu ‘coração’, no “Voilà mon
coeur”, Leonilson nos confronta, de modo irônico e paradoxalmente terno, com
uma cadeia de significações onde a exposição e o toldamento excitam o desejo do
público pondo em questão não apenas aquilo que o outro pode fazer com o que lhe
oferecem (“faça dele o que quiser” é a frase bordada no verso do pano), mas, de
certo modo, questionando a expectativa do outro: o que fazer com um coração
posto a nu? Leonilson barra o acesso ao local da intimidade, já que posto a nu,
o coração perde a ‘identidade’, se podemos dizer assim, o seu apelo secreto,
seu mito. Uma exposição máxima do artista levaria ao desgaste do uso, à
mercantilização da obra, à inserção no mercado. Do mesmo modo que Ana C.
reclamava dos abutres críticos que buscariam os fantasmas biográficos nos
poemas, Leonilson perturba essa demanda sob a máscara do herói apaixonado. Nesta falsa exposição do ‘eu’, revela-se,
portanto, o negaceio da voz interior, de um pathos
individual, embora crie efeito sempre lírico. Ao tematizar o abandono, é o
abandono do outro que está em causa, como uma “puxada de tapete”, pois, à
promessa de entrega total, sobrepõe-se a insuspeita liberdade da negação
absoluta: “O que você desejar, o que você quiser, eu estou aqui, pronto para
servi-lo”, ele bordou num trabalho de 1991.
Essas promessas ambivalentes resultam de um
constante movimento de deslocamento por limites ambíguos não só da paixão
amorosa, como das opções sexuais, até chegarem a uma recusa da dicionarização
normativa, ou por erros ortográficos deliberados, ou por silepses de gênero:
“Leonilson recusa as regras da sintaxe e impõe uma concordância baseada na sua
vontade própria. È o caso de “O Ilha” (1990) e “O Penélope” (1992) que reúnem
os gêneros masculino e feminino num único objeto” (LAGNADO, 1998, p.49).
Digamos que o “lado negro”, torto ou
perigoso (um dos adjetivos atribuídos a si mesmo por Leonilson) também avança
sobre o público desafiando limites, ampliando as (im)possibilidades da
confissão íntima no cenário contemporâneo.
De algum modo essa complexidade está condicionada a uma exigência cada
vez maior dos meios midiáticos para que nada fique oculto, nenhum segredo seja
guardado e toda a intimidade seja confessada, o que cai na rede é peixe,
vejam-se os diários íntimos publicados como blogs. Fim do secreto é o crime
contra o real, diria Baudrillard. Ao teatralizarem uma intimidade impossível
esses artistas no feminino, destronando os pais, elegem as mães como modo de
dissolver o pátrio poder da Língua da Arte em favor de outra potência, a da
fala do artista. Aos artistas no feminino talvez caiba o sorriso desafiador
enquanto empunham suas insígnias fálicas de resistência a essa desmedida
contemporânea.
“Hay un pequeno comentário de Lacan sobre lo que la madre transmite,
trata sobre una chica que dice a su madre: cuando tu mueras, yo tendre tu
sombrero y tus vestidos; vemos que es algo que tiene una cierta proximidad con
el cuerpo, con la envoltura, una metonímia del cuerpo. Lacan dice que eso no
debe ser interpretado como un modo de agresividad hacia madre […] sino como
aquello que habla de la transmisión de la madre a la hija de las insignias de
lo femenino, insignias fálicas” (BROSSE, 2001, p. 57)
FIM
NOTAS
1. Este trabalho é tributário das
comunicações A representação pictórica do
corpo morto: a Ophelia de Millais , por
Carla Damião (UESC) e
Ofélia – A Anti-Ninfa Morta , por
Márcia Tiburi (Universidade Makenzie), no IV Colóquio de Filosofia e ficção,
UERJ, 2009.
2. "Como vai você, Geração 80?"
foi realizado na Escola de Artes Visuais do Parque Lage do Rio de Janeiro. A
exposição retomou a pergunta feita há 20 anos, reunindo 130 trabalhos de 48
artistas que participaram daquela exposição histórica, ou que têm sua poética
associada às questões da época.
3. Nesta parte do trabalho, performatizo uma
“carta” utilizando a estratégia de “finta de intimidade” utilizada pelas poetas
estudadas, para discutir a questão da demanda do olhar do Outro pelo sujeito no
feminino. Seria bom lembrar que “qualquer semelhança é mera coincidência”.
4. Cito aqui transformado o verso de Ana C.
“É daqui que eu tiro versos, desta festa...” do poema Sete chaves. In. CESAR, Ana. A
teus pés. São Paulo: Ática, 2002. p.40.
5. Lacan faz referência aos transes
extáticos , sempre ligados à anemia e ao jejum “É na medida em que o gozo é
radicalmente Outro que a mulher tem mais relação com Deus do que tudo que se
pôde dizer na especulação antiga[...]” . “Letra de uma carta de Almor” In. LACAN, Jacques. Seminário: Livro 20. trad. M.D.Magno. 2ªed. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor. , 1985.
6. ANDRE, Serge: Fazer semblante é
expressão desenvolvida pelo psicanalista André: “Mais exatamente, a
feminilidade só pode ser atingida ou designada pelo viés de um semblante” .”
“Da Mascarada à poesia”. In. O que quer
uma mulher? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.p.269.
7. Lacan, apud. CESAR, Ana Cristina. Album de retazos: antologia crítica
bilíngüe. poemas, cartas, imagens, inéditos. Comentado por Gonzalo Aguilar,
Florência Garramuño. selecionado por Florencia Garramunho; Luciana di Leone;
Carolina Puente. 1ª ed. Buenos Aires: Corregidor, 2006.
8. Cito o título “Tomar os olhos de Orlando
e fazê-los meus” do trabalho de Marcos Alexandre Motta, no IV Colóquio
Filosofia e ficção, UERJ, 2009.
9. Refiro-me aos textos: “Escrita travesti”
e “Estou sentada diante de teu texto...: Hilda Hilst e Sylvia Plath, as filhas
engendram os pais”. In: A Literatura dos
anos de 1950. Rio de Janeiro: Caetés, 2006, v.1, pp. 11-30.
10. Refiro-me ao que Roland Barthes declara
no CD de entrevista (Roland Barthes:fragments de voix- entretiens avec
Jean-Marie Benoist et Bernard –Henri Lévi- Les grandes heures. Ina/Radio
France-1977/2004, part IV. La réactions au pouvoir).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ANDRE, Serge. O que quer uma mulher? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
CESAR, Ana. A teus pés. São Paulo: Ática, 2002.
_______. Inéditos e dispersos. São Paulo:Brasiliense, 1985.
_______ . Album de retazos: antologia crítica bilíngüe. poemas, cartas, imagens,
inéditos. Comentado por Gonzalo Aguilar, Florência Garramuño. selecionado
por Florencia Garramunho;Luciana di Leone; Carolina Puente. 1ª ed. Buenos
Aires:Corregidor, 2006.
_______ . Antigos e soltos: poemas e prosas da pasta rosa .org. Viviana Bosi.
São Paulo:Instituto Moreira Salles, 2008.
DERRIDA, Jacques. Geneses, genealogias, generos e o gênio. PA:
Sulina, 2005.
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CD:
Roland Barthes:fragments de voix-
entretiens avec Jean-Marie Benoist et Bernard –Henri Lévi- Les grandes heures.
Ina/Radio France-1977/2004, part IV: la politique politicienne).
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