A Chegada
da edição de fevereiro da Revista Piauí trazia um pequeno perfil biográfico do
jornalista e escritor queniano Binyavanga Wainaina. No mês anterior Binyavanga havia feito seu outing numa coluna publicada no
site HTTP://africasacountry.com e
republicada, dois dias depois, no diário britânico The Guardian.
O texto da Piauí, assinado por Leandro Sarmatz,
chamava atenção para a “poderosa
conotação política”, que era o gesto de o escritor se declarar gay no
momento em que “diversos países africanos
– como Nigéria, Quênia e Camarões – endureceram ainda mais o tratamento
dispensado a homossexuais, criando um clima de terror, desamparo e tristeza
infinita.”
Em 37 dos 54 estados africanos a
homossexualidade é crime. Em países como
a Mauritânia e o Sudão, a punição pode chegar a pena de morte. Na Nigéria, uma
lei federal proíbe o casamento gay e criminaliza associações, sociedades e
encontros de homossexuais com pena de até 14 anos de prisão.
Em Uganda - terra natal da mãe do escritor
– um projeto proposto em 2009, intitulado Lei anti-homossexual – prevê 14 anos
de prisão para uma primeira condenação e prisão perpétua em caso de
reincidência. A mesma pena vale para o caso de um dos parceiros ser menor de 18
anos ou portador do vírus da AIDS. Causou revolta e polêmica a publicação - em
2010, pelo tablóide Rolling Stones – de uma lista com o nome e o endereço de “100
figuras homossexuais ugandesas” sob a legenda “Enforquem-nos”.
Seguindo o texto da Piauí: a voz amplificada de um gay célebre e
estimado nos círculos culturais tem ao menos o poder de fazer rodar pelo mundo
o despautério africano.
O gesto de Binyavanga pode ser lido como parte
de um esforço maior para que o presidente de Uganda, Yoweri Museveni, não
sancionasse a lei anti-homossexual.
Autor do elogiado One day i will write about this place [um dia vou escrever sobre
esse lugar], que evoca seus anos de formação entre o Quênia, Uganda e África do
Sul, Wainaina ganhou celebridade quando How to write about áfrica [ como
escrever sobre a áfrica] foi publicado na edição 92 da Granta (em 2005). No
texto, o autor se apropria ironicamente dos discursos ocidentais sobre a África
para elaborar um guia sobre como escrever sobre a África. O texto se tornou um
viral. Ganhando uma continuação em 2010 (how to write about áfrica II: the revenge
[como escrever sobre a áfrica II:
a vingança]) publicada na revista Bidoun.
No parágrafo final, Leandro Smartz dá
noticia da festa de aniversário do escritor, que completava 43 anos na semana
de publicação do texto em que se declarava gay, e que, segundo a cobertura da imprensa
africana, teria sido como um baile de debutante, ou coming-out party.
O que a matéria não conta, e nem tinha como
saber, é que três semanas depois do outing de Binyavanga (dia 24 de fevereiro)
o presidente de Uganda, Yoweri Museveni, sancionou a lei anti-homossexual.
Na última sexta feira (dia 1 de agosto) o
Tribunal Constitucional de Uganda, depois de uma ampla mobilização, conseguiu
anulá-la.
Na postagem dessa semana os três textos de
Binyavanga Wainaina citados na matéria em traduções de Lucas Matos, junto à vídeo performance de Como escrever sobre a África dirigida por Jesse Dylan e interpretada por Djimon Hounsu (Amistad; Diamante de sangue).
***
Como escrever sobre a África (Binyavanga Wainaina)
Tradução: Lucas
Matos.
Sempre use a palavra ‘África’ ou ‘Trevas’
ou ‘Safári’ no título. Subtítulos podem incluir ‘Zanzibar’, ‘Masai’, ‘Zulu’,
‘Zambezi’, ‘Congo’, ‘Nilo’, ‘Grande’, ‘Céu’, ‘Sombra’, ‘Tambor’, ‘Sol’ ou
‘Passado’. Também são úteis palavras como ‘Guerrilha’, ‘Atemporal’,
‘Primordial’ e ‘Tribal’. Perceba que ‘Pessoas’ quer dizer africanos que não são
pretos, enquanto ‘Povo’ quer dizer africanos pretos.
Nunca apresente uma foto de um africano bem
ajustado na capa do seu livro, ou dentro dele, a não ser que o africano tenha
ganhado o prêmio Nobel. Uma AK-47, costelas proeminentes, seios nus: use isso.
Se for necessário incluir um africano, assegure-se de que será alguém em trajes
dos Masai, Zulus, ou Dogons.
No seu texto, trate a África como um país.
É quente e empoeirado com campinas ondulantes, hordas imensas de animais e
pessoas altas, magras, que estão passando fome. Ou então é quente e enevoado
com pessoas pequeninas que comem primatas. Não se atole em descrições precisas.
A África é grande: cinquenta e quatro países, 900 milhões de habitantes que
estão muito ocupados passando fome, morrendo, guerreando e emigrando, para ler
o seu livro. O continente está cheio de desertos, selvas, chapadas, savanas e
muitas outras coisas, mas o seu leitor não liga para nada disso, então mantenha
suas descrições romanceadas, e evocativas, e gerais.
Certifique-se de que mostrará como
africanos possuem música e ritmo arraigados na alma, e comem coisas que nenhum
outro humano come. Não mencione arroz, nem bife, nem trigo; miolo de macaco é o
prato africano predileto, junto com bode, cobra, vermes e besouros, e todo tipo
de carne de caça. Certifique-se de mostrar que você é capaz de comer tal comida
sem torcer o nariz e descreva como você aprendeu a apreciá-la – porque você se
importa.
Assuntos tabus: cenas domésticas
cotidianas, amor entre africanos (a não ser que tenha morte no meio),
referências a escritores ou intelectuais africanos, menção a crianças na escola
que não sofrem por causa de bouba, ebola, ou laceração da genitália feminina.
Ao longo do livro, adote uma voz
sussurrada, em cumplicidade com o leitor, e um tom triste de eu tinha tantas expectativas. Deixe
estabelecido bem cedo que sua atitude liberal é impecável, e mencione perto do
início o quanto você ama a África, como você se apaixonou pelo lugar e não pode
viver sem ela. A África é o único continente que você pode amar – tire vantagem
disso. Se você é homem, se aventure pelas úmidas florestas virgens. Se é
mulher, trate a África como um homem que usa uma jaqueta no estilo safári e
some no horizonte ao pôr-do-sol. Há África para que a gente se compadeça, adore
ou domine. Qualquer ângulo que escolher, certifique-se de deixar a forte
impressão de que sem sua intervenção e seu importante livro, a África está
condenada.
Os personagens africanos podem incluir
guerreiros nus, empregados leais, adivinhadores e videntes, antigos sábios
vivendo num esplendor ermitão. Ou políticos corruptos, inaptos guias de viagem
polígamos, e prostitutas com quem você se deitou. O Empregado Leal sempre se
comporta como uma criança de sete anos e precisa de uma mão firme; ele tem medo
de cobras, leva jeito com as crianças e está sempre te envolvendo em complexos
dramas familiares. O Antigo Sábio sempre vem de uma tribo nobre (não as tribos
papa-grana como os Kikuyu, os Igbos, ou os Xonas). Ele tem olhos remelentos e é
próximo da Terra. O Africano Moderno é um gordo que rouba e trabalha no
escritório de vistos, recusando-se a dar autorização para Ocidentais
qualificados que se importam realmente com a África. Ele é um inimigo do
desenvolvimento, sempre usando seu cargo público para dificultar que
expatriados pragmáticos e de bom coração implementem ONGs ou Áreas de
Conservação Urbana. Ou ele é um intelectual formado em Oxford que se
transformou num político assassino em série com terno da Savile Row. Ele é um
canibal que gosta de champanhe Cristal, e sua mãe é uma rica médica-curandeira
que é quem manda mesmo no país.
Entre os seus personagens você deve incluir
sempre a Africana Faminta, que anda por campos de refugiados quase nua, e
espera pela benevolência do Ocidente. Há moscas sobre as pálpebras de seus
filhos, e eles têm barriga d’água; os seios dela são magros e vazios. Deve
parecer completamente desesperada. Não pode ter um passado, nem história; tais
diversões arruínam o momento dramático. Gemidos são bons. Ela nunca deve falar
qualquer coisa sobre si mesma no diálogo, exceto para dizer de seu sofrimento
(indizível). Também certifique-se de incluir uma mulher calorosa e maternal que
tenha uma risada contagiante e que se preocupe com o seu bem estar. Chame-a
simplesmente de Mamã. Seus filhos são todos delinquentes. Esses personagens
devem pairar ao redor de seu herói, fazendo ele parecer bom. Seus herói pode
ensiná-los, dar comida para eles, dar banho neles; ele carrega muitos bebês e
já viu a morte de perto. Seu herói é você (se for reportagem), ou uma bela,
trágica celebridade/aristocrata internacional que agora se importa com animais
(se ficção).
Personagens maus do Ocidente podem ser
filhos de ministros do partido Tory, africâneres, empregados do Banco Mundial.
Quando falar de exploração estrangeira da África, mencione negociantes chineses
e indianos. Culpe o Ocidente pela situação da África. Mas não seja muito
específico.
Pinceladas abrangentes do começo ao fim são
boas. Evite apresentar personagens africanos rindo, ou se esforçando para dar
educação aos filhos, ou simplesmente se virando em circunstâncias mundanas. Faça
com que eles tragam à luz alguma coisa sobre a Europa ou a América, na África.
Personagens africanos devem ser coloridos, exóticos, extraordinários – mas
vazios por dentro, sem diálogos, sem conflitos ou desfechos em suas tramas,
nenhuma profundeza ou peculiaridade que confunda o caso.
Descreva, com detalhes, seios nus (jovens,
velhos, conservados, recém-abusados, grandes, pequenos) ou genitálias
mutiladas, ou genitálias inchadas. Ou qualquer tipo de genitália. E corpos
mortos. Ou melhor: corpos mortos nus. E especialmente corpos mortos nus
apodrecendo. Lembre-se, qualquer obra que você produzir na qual as pessoas apareçam
imundas e miseráveis será considerada ‘a verdadeira África’, e você quer isso
na sua jaqueta empoeirada. Não se enoje quanto a isso: você está tentando
ajudá-los a conseguir o socorro do Ocidente. O maior tabu ao escrever sobre a
África é descrever ou mostrar brancos mortos ou em sofrimento.
Por outro lado, animais devem ser tratados
como personagens complexos, bem desenvolvidos. Eles falam (ou resmungam
enquanto agitam com orgulho suas jubas) e têm nomes, ambições e desejos. Também
apresentam valores familiares: viu como
os leões ensinam seus filhos? Elefantes são ternos, e são boas feministas,
ou dignos patriarcas. Idem, para os gorilas. Nunca, jamais diga algo negativo
sobre elefantes ou gorilas. Elefantes podem atacar propriedades dos humanos,
destruir suas colheitas e até matá-los. Sempre fique do lado do elefante.
Grandes felinos falam como estudantes de escola pública. Hienas você pode
ofender, e apresentam sotaques vagamente próximos aos do Oriente Médio.
Quaisquer africanos pequeninos que vivam na selva ou no deserto podem ser
retratados com bom humor (a não ser que eles estejam em conflito com um
elefante, ou um chipanzé, ou um gorila, nesse caso eles são a encarnação do
mal).
Depois de celebridades ativistas e
humanitários, preservadores ambientais são as pessoas mais importantes da
África. Não ofenda nenhum deles. Você precisa que eles te convidem para o seu
parque/rancho ou ‘área de preservação’ de 30.000 acres, e é o único jeito de
conseguir entrevistar a celebridade ativista. Várias vezes uma capa com um
preservador ambiental com aparência de herói faz milagres para as vendas.
Qualquer branco, bronzeado, e com trajes cáquis que já teve um antílope de
estimação ou uma fazenda é um preservador ambiental, alguém conservando a rica
herança da África. Quando fizer uma entrevista com ele ou ela, não pergunte por
quanto tem de financiamento; não pergunte quanto ele ganha com a caça. Nunca
pergunte quanto ele paga aos seus empregados.
Os leitores vão ficar decepcionados se você
não mencionar a luz na África. E o pôr-do-sol, o pôr-do-sol africano é um must.
É sempre amplo e vermelho. Há sempre um céu imenso. Grandes extensões vazias são
de importância capital – a África é a Terra dos Extensos Espaços Vazios. Quando
escrever sobre as condições da fauna e da flora, certifique-se de mencionar que
a África é superpopulosa. Quando seu personagem principal estiver no deserto ou
na selva vivendo com povos indígenas (qualquer um pequenino), tudo bem
mencionar que a África sofreu severa depopulação por causa da Aids e da Guerra
(use maiúsculas).
Você também vai precisar de uma boite
chamada Tropicana, onde mercenários, malvados novos ricos africanos, e
prostitutas, e guerrilheiros, e expatriados possam curtir a noite.
Sempre encerre seu livro com Nelson Mandela
dizendo algo sobre arco-íris ou renascenças [renaissances]. Afinal, você se importa.
Djimon Hounsou lê Como
escrever sobre a África
*
Como escrever sobre a África II: A Vingança (Binyavanga Wainaina)
Tradução: Lucas
Matos.
Romancistas, trabalhadores de ONGs,
roqueiros, preservadores ambientais, estudantes e escritores de livros de
viagem rastreiam meu e-mail, pedindo: Você pode por favor comentar meu dever de
casa/panfleto/conto/pedido de financiamento/haicai/filho adotivo/retrato de
genuína sogra africana? Todos que fazem isso são brancos. Ninguém da China
pede, ninguém de Cuba, nenhum negro, pretinho, pardo, bege, chocolate,
capuccino, mulacto. Escrevi Como escrever
sobre a África num jato, um desabafo para ventilar o ar; não era para ver a
luz do dia. Agora as pessoas me escrevem para pedir minha permissão para
escrever sobre a África. Elas querem que eu diga o que acho, como elas se
saíram. Seja franco, dizem, seja sincero. Diga o que pensa. Cheguei a pensar em
investir num selo de qualidade.
Imaginei que ficaria de pé sobre as
fronteiras virtuais da África, um minuteman
preto com um carimbo, avaliando pedidos – em que SIM quer dizer “Siga
adiante, pague cem dólares”, e NÃO quer dizer “Prenda e deporte”. É quase
sexual. Chegam rastejando dos lugares mais incomuns, e pedem para ser
chicoteados. Eu sou mau, Senhor Binya, bate em mim. Ah! Mais forte. Ai! Eles
parecem um bocado desapontados quando não bato. De vez em quando, faço, e a
sensação é boa e ruim, como muito wasabi. Bono mandou um livro de poemas.
Alguém escreveu um ensaio “Como escrever sobre o Afeganistão”. Troquei apertos
de mãos não com um, mas com dois presidentes europeus que leram meu texto e
balançaram as cabeças: que mau, muito mau. Dividi um cigarro em Frankfurt com
os guarda-costas de Yar Adua, o presidente da Nigéria, que me disseram que não
gostam das academias de Abuja porque as mulheres dos grandões dão em cima deles
e causam todo tipo de problemas. Eles preferem as academias nos hotéis da
Europa. Mas os cigarros alemães não eram tão bons quanto os nigerianos. Os
vegetais alemães não eram tão bons quanto os nigerianos. A cerveja alemã,
quando você olhava de verdade, fundo na espuma, não era nem tão leve nem tão
dourada quando a nigeriana. No final das contas, disseram, apagando os cigarros
e cheirando a colônia francesa, a Nigéria é o melhor dos lugares. Você já
esteve em Abuja?, perguntaram. Não, disse. Abuja é ultramoderno, disseram, e
todos nós olhamos para os prédios velhos, molhados e cinzas na nossa frente.
---
Um dia, um cara que conheço me ligou com
alguma agitação. Ele tinha acabado de ler Como
escrever sobre a África e queria saber por que eu escreveria sobre ele do
modo como tinha feito. Eu tinha dito “Depois de celebridades ativistas e
humanitários, preservadores ambientais são as pessoas mais importantes da
África. Não ofenda nenhum deles”. Ele ficou ofendido. Não havia mencionado o
nome de ninguém, mas ele se sentiu pessoalmente afrontado. Sim, ele é um
preservador ambiental, e sim, ele hospedou uma celebridade ou outra – mas ele
não lucrava com caça, e pagava muito bem seus trabalhadores. Claro, eu disse.
Você passou dos limites, ele disse. Nunca entendi de verdade o que isso
significa, onde estão colocados esses limites, e por que uma expressão tão
morna promete o Apocalipse interpessoal.
---
Como
escrever sobre a África surgiu de um e-mail. Num acesso de raiva, talvez com
baixa tacha de açúcar no sangue – uma condição familiar – gastei algumas horas
de uma noite no meu flat de estudante de pós em Norwich, Inglaterra, escrevendo
ao editor da Granta. Era uma resposta
à edição África, que era povoada por
cada um dos bichos papões literários que qualquer africano conhece desde
sempre, uma espécie de “Os Melhores Hits do Coração das Foditrevas”. Não foi a
questão sombria que me pegou, foi a estupidez. Não havia nada novo, nenhum
insight, mas muitas “reportagens” – Oh, céus, uau, olha, caramba, uh – como se
a África e os africanos não fossem parte da conversa, não estivessem, de fato,
morando na Inglaterra do outro lado na rua do escritório da Granta. Não, nós estávamos “lá”, onde os
bravos homens de cáqui podiam ir e testemunhar. Foda-se isso. Daí eu escrevi um
longo – verdadeiramente longo – e-mail desconexo para o editor.
Para minha surpresa, a Granta escreveu de volta imediatamente. O editor, Ian Jack,
desaprovava a edição África – aquilo
foi antes do tempo dele. Um ano e pouco depois, um outro editor da Granta ligou. Estavam fazendo uma nova
edição África, e eles queriam a minha
perspectiva. Claro, claro, eu disse. Então esqueci. E me lembrei, me senti
culpado, senti o peso de um continente nas minhas costas. Estava com bloqueio
sobre bloqueio. Bebi uma Tusker. Afinal, escrevi algo sobre Bob Geldof. Uma
merda, disse o editor – não com essas palavras, mas foi o que ele quis dizer, e
ele estava certo. Então voltei ao trabalho. O prazo chegou. O prazo se foi.
Estava ocupado trabalhando num conto, trabalhando no meu romance. Uma Tusker
gelada. O novo número da Kwani. A
praia, em Lamu. O editor ligou com uma ideia – por que a gente não publica seu
longo e louco e-mail? Um excerto, quer dizer. Claro, disse, distraidamente. Ele
me mandou um rascunho. Ufa, pensei, distraidamente. Corta, cola, corta, cola.
Poucos floreios aqui e ali. Enviar.
Levou uma hora.
A edição saiu, meu artigo apareceu online.
Tornou-se a história mais compartilhada na história da Granta. Comecei a ouvir por amigos, por estranhos; comecei a
receber minhas próprias palavras encaminhadas para mim com um título animador,
como algo em que eu poderia me interessar, como se eu não o tivesse escrito.
Virei viral, virei spam. Comecei a receber convites – para conferências,
palestras, conselhos nacionais. Comecei a receber cartas. Agora sou ‘aquele
cara’, a consciência da África: eu vou te advertir e te dar absolvição.
Se fosse esperto, teria esperado uns anos e
transformado num app de iPhone: uma pequena história satírica sobre como
escrever sobre a África todo dia, interativa e adaptável, por noventa e nove
centavos. Foda-se a Granta...
obrigado, Granta.
Estava ocupado trabalhando no meu romance.
Daí estava bebendo vodka sabor chili com o editor desta revista, e antes que me
desse conta concordei em escrever uma sequência para Como escrever sobre a África. Tudo bem, disse, distraidamente. Bem,
aqui estamos.
*
Sou homossexual, mãe (Binyavanga Wainaina)
Tradução: Lucas
Matos.
11 de
Julho de 2000.
Esta
não é a versão correta dos fatos.
Ei, mãe. Estava descansando minha cabeça em
seu ombro, aquela última tarde antes de morrer. Ela estava deitada na cama do
hospital. Kenyatta. Tratamento intensivo. Estado crítico. Lá. Porque dessa vez
não estarei longe na África do Sul, fodendo tudo no meu jeito caótico. Vou
chegar na hora e estar lá antes de ela morrer. Meu coração chega na hora. Estou
segurando a mão de minha mãe morrendo: levanto sua mão. Sua mão deve estar
inchada pela diabete. Seus órgãos estão falhando. Ei, mãe. Oooh. Minha mente
soluça. Meu coração! Estou sussurrando em seus ouvidos. Ela está desperta,
escutando, amor suave calmo, minha cabeça ao alcance de seu hálito. Ela é tão
grande – minha mãe, neste mundo, tão próxima do outro mundo, cada respiração
lenta, mas estável, como deve ser. Inspira. Ela pode suportar tudo. Vou
sussurrar, mais alto, na minha ideia-sopro. Para ela. Ela escuta, mesmo que já
não escute. Ela consegue?
Mãe. Vou dizer. Manhê? Vou dizer. Soa tão
fácil, um sopro de voz, um barulho vindo da minha boca, e ela expira. Meu
coração engasga cortante, e agora minha cabeça grita, cortante, tão tão
sentida, tão tão furiosa.
“Nunca te abri meu coração, mãe. Você nunca
pediu”.
Só na minha cabeça digo. Isso. Não a minha
boca. Mas com certeza o salto na minha respiração e no meu peito, aqui ao lado
dela, foi percebido? Ela está mais próxima de mim?
Ninguém, ninguém nunca na minha vida
escutou isso. Nunca, mãe. Não confio em você, mãe. E. Eu. Puxo o ar com força,
prendo-o embolado ao redor do umbigo, deixo-o sair devagar e constante, limpo e
sem tropeços na minha boca, alto e claro, por sobre o ombro, até chegar nos
seus ouvidos.
“Sou homossexual, mãe”.
Julho,
2000.
Esta
é a versão correta dos fatos.
Estou vivendo na África do Sul, sem ver
minha mãe há cinco anos, apesar de ela estar doente, porque estou com medo e
vergonha, e porque em breve completo trinta anos e vou ficar sem visto para
voltar se sair daqui. Estou transtornando tudo para ajeitar minha vida e poder
vê-la. Mas ela está em Nakuru, em colapso, e vão levar seus rins ao Hospital
Kenyatta em Naiorobi, onde há um aparelho de diálise e uma tempestade tropical
de especialistas esperando por ela.
Parentes vão correr para vê-la, os órgãos
vão falhar, e os aparelhos vão entrar em ação. Estou com pressa, ajeitando tudo
para sair da África do Sul. Ainda falta dois dias para conseguir deixar o país,
pegar um voo internacional, quando, na manhã do dia 11 de julho de 2000, meu
tio liga perguntando se estou sentado.
“Ela se foi, Ken”.
Quero ligar para titia Grace na reunião de
família em nanossegundos para dar um jeito urgente de chorar no Papai, mas eles
dizem que ele está chorando, relampejando e trovejando em seu carro 505 nos
contornos de Nairobi porque sua mulher morreu e ninguém consegue encontrá-lo há
horas. Três dias atrás, ele me disse que era tarde demais para ir vê-la. Me
disse para não correr o risco de perder a autorização para voltar à África do
Sul indo para seu funeral. Eu não devia ficar viajando despreocupadamente com
esse meu jeito de artista, sem documentos. Kenneth! Ele me repreende no
telefone. Não posso arriscar ser deportado, diz, e perder tudo. Mas é a minha
mãe.
Tenho vinte e nove. É 11 de julho de 2000.
Eu, Byniavanga Wainaina, sendo bem honesto, juro que sei que sou homossexual
desde que tinha cinco anos. Nunca toquei um homem sexualmente. Já dormi com
três mulheres na minha vida. Uma delas, deu tudo certo. Apenas uma vez, e com
ela. Mas no dia seguinte, não pude.
Vai levar cinco anos, após a morte da minha
mãe, até que eu encontre um homem que me faça uma massagem e um pouco de sexo
rápido, pago. Em Earls Court, Londres. E estarei livre, vou contar a meu melhor
amigo que vai me surpreender, me compreendendo sem compreender. Vou contar-lhe
o que fiz, mas não que eu sou gay. Não consigo dizer a palavra gay até ter
trinta e nove, quatro anos depois daquele breve encontro com massagem. Hoje é
18 de janeiro de 2013 e tenho quarenta e três.
De qualquer modo. Não será uma tempestade
de diabetes que vai matar a mãe no Centro de Terapia Intensiva do Hospital
Keniatta, antes de eu dar os passos para pegar um avião e ir ficar ao seu lado.
Alguém.
A enfermeira?
Vai deixar uma pequena janela aberta na
noite antes de ela morrer, no frio de julho do Hospital Kenyatta.
É meu aniversário hoje. 18 de janeiro de
2013. 2 anos atrás, a onze de julho de 2011, meu pai teve um derrame intenso
que causou morte cerebral em minutos. Exatamente onze anos depois do dia que
minha mãe morreu. Seu coração ainda bateu por quatro dias, mas ele não tinha
como saber.
Tenho cinco anos.
Ele está ali, de macacão, embaraçado, seu
peito é uma trilha de estrada de ferro com marcas de suor, e pequenas contas de
pelos. Tudo nele é lento-suave. Marcas marrons num dente quebrado, um longo
sorriso sem fim. Bom para mim o modo lento como se move, porque transpareço ao
movimento das pessoas, e posso tropeçar tão facilmente e cair em resmungos e
temer junto a estúpidos. Um sorriso longo e fácil, ele me levanta no ar e
balança. Ele cheira a diesel, e o mundo em que os outros se movem desapareceu.
Estou longe de tudo e de todos pela primeira vez na minha vida, é glorioso, e
logo é um túnel de medo. Nada nele trava, como um trator, ele sobe firme e
forte qualquer montanha. Se ele for embora agora, comigo, vou com ele para
sempre. Sei que se ele me devolver ao chão, minhas pernas não vão poder se
mexer. Estou tão envergonhado, me interrompo o abraço. Saio fora de perto dele,
e o evito para sempre. Por vinte tantos anos, continuo abraçando sem jeito os
homens.
A sensação vai voltar. Mais forte, mais
firme. Com sete anos talvez. Certa vez com outro lento, fácil jogador de golfe
no Clube de Golfe de Naruku, e estou tremendo porque ele apertou minha mão.
Então estou chorando sozinho no banheiro porque o retorno dessa sensação de
repente me fez isolado e solitário. A sensação não é sexual. Ela vem e me
acerta em cheio. É esmagadora. Ela quer fazer um lar. Vem a cada par de meses,
como um surto de malária e me deixa abalado por dias, confuso por meses. Não
faço nada quanto a isso.
Tenho cinco anos quando me fecho numa
felicidade turva que não pede nada a ninguém. Aéreo. Doce. Estou grato por
tanto amor. Dou mais do que recebo, frequentemente. Posso ser egoísta. Me
masturbo muito, sem nunca permitir me rachar e deixar crescer o coração. Não
toco homens. Leio livros. Amo tanto meu pai, meu coração está aprendendo a se
dilatar.
Sou homossexual.
Que texto! Grato pela traducao!
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