Por Lucas Matos
No dia seguinte à derrota e
desclassificação da Seleção Brasileira na Copa do Mundo, Cristina Flores me
recebeu em seu apartamento em Copacabana para conversarmos sobre Jardins Portáteis, acontecimento
poético, cujas experiências iniciais começaram no final do ano passado a partir
de apresentações pontuais, e que agora inicia uma temporada de dois meses na
Sede das Companhias, localizada na Escadaria do Selarón, na Lapa, Rio de
Janeiro. Lá, num espaço povoado por plantas, Cristina, junto de Eduardo Sande e
João Marcelo Iglesias apresentam seus blocos de invenções textuais, cênicas,
musicais. Além deles, a experiência se desdobra em atravessamentos, nome
idealizado para falar das apresentações de outros artistas, como, por exemplo,
o músico e compositor Dimitri BR, ou o grupo dos Maus poetas de Pondichéry, artistas que desenvolvem poemas ou
canções cenicamente.
Logo que me recebeu, Cristina comentou as
matérias do jornal do dia, demonstrando satisfação com o fato de elas
mencionarem os gastos com os estádios, como com o Maracanã, sugerindo que a
derrota no campo de futebol poderia nos fazer ter de lidar com a realidade. Esse
traço parece marcar algum dos movimentos comuns do seu pensamento, numa espécie
de se voltar contínuo para a atenção com espaço em que estamos, e em como ele
se encontra, quase como se houvesse uma linha em que se ligasse sua necessidade
de observar a falta de cuidado com as árvores nas ruas, o projeto dos Jardins Portáteis e a política violenta
na administração da cidade que busca favorecer o turismo e sufoca, ou remove os
cidadãos. Uma das curiosidades que me ocorreu constantemente ao longo da
entrevista era seu uso peculiar da palavra “lugar”, que oscilava em designar
uma posição num campo de sentido (conceitual, discursivo) e uma ocupação física
do espaço, e às vezes era um misto de ambos os sentidos, ou outras opções que
eu não conseguia perceber completamente.
A entrevista ocorreu entre a cozinha e a
sala, enquanto ela cozinhava batatas com alecrim e sal grosso. Paramos apenas
quando precisei comprar novas pilhas e quando tive de esvaziar o conteúdo do
aparelho eletrônico em que se gravava o áudio. Foram gravadas cerca de 2 horas
e meia sobre Jardins, teatro, a
Companhia Os Dezequilibrados, arte e
corpo. Parte do material foi editada para melhor caber nas duas postagens que
apresentamos a partir de agora.
Apresentamos, além da entrevista, fotos e
vídeos dos Jardins Portáteis,
produzidos pela vídeoartista Flor Brazil.
JARDINS
PORTÁTEIS
Direção e dramaturgia: Cristina Flores.
Criação e atuação: Cristina Flores, Eduardo Sande, João Marcelo Iglesias.
Estética da Gambiarra: Eloy Machado. Luz: Dani Sanchez. Fotos e vídeo-poema:
Flor Brazil.
SEDE DAS CIAS
Rua Manuel Carneiro, 12 – Lapa (Escadaria
Selarón)
De sábado a segunda, às 20h.
De 05 de julho a 25 de agosto.
***
Cristina
Flores:
Cristina Flores Rodrigues. Gosto, porque acho que Rodrigues é dramático.
Rodrigues. E o Nelson Rodrigues. Gosto. Eu acho que Rodrigues para mim é meio
dramático, assim, é uma palavra que eu acho graça. E o Flores porque sempre foi
um nome que as pessoas escolheram ao longo da vida. No colégio, eu era Cristina
Flores. Eu gosto do meu nome, eu gosto de Cristina, também gosto de Cris, eu
gosto do meu nome. Teve uma fase da minha vida que várias pessoas me chamavam
de Patrícia.
BTNB: E isso te
incomodava?
C: Não. Mas é
interessante, sabe? Uma confluência. Acabou isso. Engraçado. Eu ia contar como
se fosse uma coisa atual, mas não é. Eu era nova. Parece que foi aí é para
sempre agora. Eu tinha 18 anos, 19. Pessoas diferentes no ano me chamavam de
Patrícia. (risos). Mas parou. Que bom. Parou.
BTNB: Você diria que
você se vê como atriz, como performer, como poeta, como artista? Como você se
vê?
C: Eu sou atriz.
Isso, para mim, é um encantamento que eu não abro mão. Eu não tenho uma família
de artista. Então, é um espanto para mim mesma ter sido artista, me vê como
adulta viabilizada no sentido de. (ri). Eu vou me rindo, né? Viabilizada! (ri).
Mas sim, me pretendo como artista.
BTNB: Mas você respondeu
primeiro atriz, por que esse atriz vem antes?
C: Não, porque atriz
é delícia de ser. Eu acho que é uma delícia, o ato é uma delícia. É uma síntese
que acontece no nosso corpo, ainda por cima. Sabe? É muito legal, é muito legal
ser sem ter face. E ser uma autoria enorme também, porque importa o que você
quer falar das coisas. Como atriz, eu sempre pude falar coisas muito
fantásticas. E contar a minha vida. É muito maluco isso, agora é muito
impressionante porque eu estou fazendo um texto que é meu. Então, um texto que
é meu, é meu. Um texto que é meu está me implicando em uma série de outras
coisas como atriz, [a gente] pode até falar sobre elas, mas assim, o texto
sempre foi meu, sabe? Porque eu sempre escolhi e quando [você] fala eu escolhi
e você pensa sobre isso, do que se trata escolher alguma coisa? Criar oportunidade
para isso, sem dúvida. Mas tem tanto de acaso nessa porra, sabe? E o meu lugar
era nessas situações de atriz de estar ali, só que rolou de serem coisas que eu
queria muito viver, que eu precisava muito viver, entendi muito através daquilo
várias coisas.
Eu não sou mística, eu sou bem dura, na
verdade, em relação a muita coisa, eu acredito no mistério pessoalmente, mas
nunca dou nome a ele. Mas eu acredito muito na sincronicidade das coisas e
(ri). E aí quando [você] pergunta o que eu sou, não sei, eu sou eu, e aí quando
você perguntou antes se eu gosto do meu nome, eu gosto do meu nome e eu gosto
do meu caminho. O que eu queria de pequena era ser cantora, atriz, e jogadora
de futebol e tudo isso eu sou, sabe? (risos). Eu não jogo futebol, não, mas
também jogo. Eu gosto de fazer o que eu gosto de fazer, eu gosto que aconteça o
que acontece na minha vida, e provoco o que aconteça. Acho que todo mundo é
artista nesse lugar, sabe, de inventar a si próprio, esse lugar do inventor.
Justamente agora, quando as coisas, o
espetáculo sobre a ilha, a Lygia [Clark, referência ao espetáculo Cosmocartas, baseado na correspondência
entre a artista Lygia Clark e o artista Hélio Oiticica]. A ilha. Que lindo esse
ato: chamar a Lygia de ilha. Então, a Lygia e o Hélio, são muito importantes
também porque me ajudaram a pensar sobre coisas que eu já intuitivamente intentava
como artista. Só para responder, eu falei que sou atriz, eu sou artista, né?
Não sei, eu sou uma pessoa que quero falar sobre algumas coisas, e que cria
esses espaços para isso, ou quero que se fale, também.
Eu tinha um projeto como atriz, que era
fazer Crime e Castigo, e eu queria
fazer Crime e Castigo porque eu me
identificava muito com o Raskolnikov, e eu nunca fiz o Raskolnikov, mas eu nunca fiz o Raskolnikov
e toda noite eu ouvia o Junior [Lucas Gouvêa, ator da companhia Os Dezequilibrados] fazendo o
Raskolnikov. O Raskolnikov toda noite era para mim, então, eu fazia Raskolnikov
através dele, sendo a Sônia.
Como eu também sou de uma Companhia de teatro
[Cristina faz parte da Companhia Os
Dezequilibrados], eu me envolvo, se envolver com tudo nunca foi mais do que
a minha obrigação. E aí, como é que eu faço para trabalhar para mim mesma? Eu
acho muito difícil sempre, para todo mundo. Eu crio compromisso com os outros.
Por exemplo, meu compromisso com a Companhia dura até hoje, eu estou com 38
anos, comecei na Companhia com vinte e poucos, e a Companhia está fazendo esse
ano 18 anos. O meu compromisso com a Companhia me fez dar vários passos que eu
não daria sem a companhia. Então, a Companhia, para você ver, é a companhia
mesmo. Criar esses compromissos com o outro tem ajudado a eu trabalhar para
mim, sabe, porque senão eu falto, eu me falto, porque é difícil, a gente não está
quando a gente precisa necessariamente. Às vezes é mais fácil estar quando os
outros precisam.
BTNB:
Você
falou uma coisa sobre ser atriz que eu achei curioso, que eu queria saber se
você pudesse me explicar melhor, que você falou que é ser sem face.
C: Sem face, eu falei
isso?
BTNB: Falou.
C: Ah, meu deus.
(risos) Que é do ato, né? É, ah, não sei, não sei. Eu acho que você veste um
sei lá um sentido, como se fosse, como morasse nas palavras. Eu não sei, eu não
sei.
Eu procuro ir muito em direção ao que me
interessa bastante. Então as coisas que eu faço têm a ver uma com a outra, mas
eu também sinto diferença, até porque eu mudo de vontade, porque como eu vivo
muito, eu enjoo. É isso, quando eu fiz Dostoieviski, eu li, li tudo sobre ele,
e isso é muito bom, porque foi ótimo, porque eu me dediquei, mas assim eu
percebo que desde pequena é como yakut. Só podia 1, e isso me provocou demais, um
dia eu comi todos os yakuts. Eu acho que eu tenho uma coisa da saturação.
BTNB: Calma. Conta como
é que era o yakut.
C: Não, só podia 1 yakut
porque [senão] ia passar mal, né? Bem, é. Eu ficava só pode 1, e ao mesmo tempo
era lactobacilos vivos. Eu achava tão
interessante, eu achava aquilo muito bom, e eu sempre tive essa desconfiança. Percebia que havia alguma coisa: o que era bom era proibido.
Num dia desses no final eu: “Ah, entendi não pode porque é bom”.
Na peça, nos Jardins, eu estava muito cansada porque eu estava no teatro, eu
trabalho para caramba e, até por uma questão de grana, eu não consigo parar. É
uma situação literal, você não está muito de férias, quando você é um artista,
um freela, o esquema aqui é esse. Agora minha mãe me ofereceu, tem me oferecido
da gente ir para Paris há mó tempão, que ela adora e tem um esquema de trocar o
apartamento e de ficar lá um mês por ano, eu nunca fui e nunca fui com ela. E
aí ela há anos me chama e eu há anos não vou. Até me lembrou uma história que
parece que foi uma época acho que foi o Molière,
o Prêmio Molière que dava uma
passagem para Paris, e aí o Ítalo Rossi ganhou. Tudo isso pode ser mentira e eu
não faço a menor ideia de quem seja ou de onde veio essa história: era um
prêmio que tinha, e [se] ganhava essa passagem, que [se] falou que as pessoas
não usavam porque: “Como é que você se ausenta? Aí
nesse tempo você não está trabalhando e ao mesmo tempo você não está
articulando, e como é que você volta?”.
Mas o Jardins,
eu tava muito cansada. Fui fazer várias peças por ano, tive esse acúmulo de uma
vez me tocar que estava fazendo cinco peças ao mesmo tempo em dois meses. Era
muito maneiro também, porque essa quantidade de texto que te habita é
extraordinário. Todo mundo que já decorou alguma coisa sabe que essa coisa se
volta, e te ocorre, você está pensando outra coisa, alguém te falou sei lá o
quê: e aí eu sentia a maior galera, a maior galera, era muito esquisito e assim
muito interessante para mim mesma que tava diante daquela quantidade de outras
pessoas. Porque sou eu sempre, mas outras construções de pensamento.
E aí eu fui fazer jardinagem porque eu tava
cansadaça. Eu tava começando a fazer em contrapartida a todas essas palavras
retiro de silêncio no final do ano. Fiz alguns. E é fantástico, eu recomendo.
BTNB: Mas como é que era
para você?
C: Você não fala e
fica num lugar muito colaborativo. Você fica em relação às pessoas, mas
cozinhando com elas, e estando no presente. Então tem uma roda para comer, e
vocês se olham e estão. Aí tem o espaço de meditação quatro vezes por dia, você
vai numa espécie de pirâmide de vime, um espaço nesse formato que parece que
favorece. Como eu disse, eu não compreendo, assim, eu respeito tudo isso como
mistério e fico elegendo o que me interessa, o que me faz bem. E nesse caso, me
fazia muito bem. É contraditório ter um retiro de silêncio no meio de toda essa
balbúrdia que eu me colocava, e era muito bom estar vivendo assim dentro desse
núcleo.
Eu Joyce, Beatrice do Joyce, Exilados do Joyce, sabe ao mesmo tempo
que outra [peça] com a Clarice Niskier, e eram umas coisas muito maneiras. Eu
sou uma intérprete muito feliz, me acredito autora nessas investidas tanto
quanto num texto meu. Eu não faço diferença. E aí, além dessa medida do
silêncio, eu falei: “Poxa, ao mesmo tempo, eu quero ter durante o ano alguma
prática que me livrasse de mim, do que eu tenho feito até agora, que é um lugar
muito amplo”. Isso veio ao mesmo tempo que um projeto pro CEP 20.000, que eu
acho que é um palco muito maravilhoso na cidade. O Sérgio Porto é um teatro fantástico,
o Ricardo Chacal me encorajou muito sabe nessa coisa de me oferecer como a todo
mundo, um palco, e aí eu fiz várias experiências que virou Tudo é Desse Mundo, que foi uma experiência com o Gabriel Fomm.
![]() |
Eduardo Sande, Cristina Flores, João Marcelo Iglesias, nos Jardins Portáteis. Foto por Flor Brazil. |
BTNB: Mas você já tinha
começado a fazer as aulas de jardinagem ou não?
C: Não. [risos
generalizados]. Isso é antes. É porque que também é uma espécie de começo dos Jardins Portáteis, porque é um começo
estético, porque era um híbrido, já aí, de show e dramaturgia. Daí que vem:
isso tudo foi pensado com o Gabriel Fomm e experimentado no CEP. Esse show foi
ótimo, acabou que rolou, a gente fez em vários teatros no Rio. Eu voltei ao CEP
e falei: “Cara, eu quero fazer outra coisa agora. O que eu vou fazer agora?”.
Aí eu pensei: “Vou fazer Como destruir
amores perfeitos, ah rá rá”. Achei essa ideia muito boa. Óbvio, ideia
idiota.
Só que sou aplicada, ainda bem que eu sou
estúpida, mas aplicada. Diante da minha própria ideia, eu falei: “Eu vou
estudar isso”. Não sei por que eu fui. Eu fui estudar planta para destruir uma.
Aí, cara, eu fui ler, e eu gostava mas não tinha batido, não era frequentadora.
Não tinha outro vínculo. E aí, me apaixonei, e isso me fez Como criar amores perfeitos, que é um texto que tem. Assim, e é
cafona e não é, é muito simples. É muito esse lugar da poesia, ele é uma crueza
muito maravilhosa, quando você fica diante de um jardim, por exemplo,
crescendo.
Eu fiquei apaixonada por esse conceito: os
Jardins Portáteis; eu fiquei muito apaixonada por essa ideia primeiramente. “Os
Jardins Portáteis nascem”, a professora do Jardim Botânico falou essa frase, o
nome dela era Gina – e eu achei aquilo fantástico, sexy, né, a Gina, uma mulher
–, “quando as pessoas vão embora, nascem das fugas das pessoas”. E elas indo
embora, querem levar com elas as paisagens e então elas levavam a árvore,
levavam aquela planta, daí nascem os jardins-vaso. E eu pensei nesse lugar de
fuga para mim que era a jardinagem naquele momento.
Sempre foi sabe, e está sendo. É muito
factual, é muito forte você pegar na terra, você transplantar, eu tenho
plantado coisas. Planto abóbora, planto jabuticabeira na cômoda da minha avó. Pedi
para um moço chamado Cabeção, que é um cara incrível que trabalha com o Raul
Morão [artista plástico], por exemplo, trabalha com artistas da Lapa, o Cabeção
é um artista que viabilizou todos os projetos. Fez esse vaso com a cômoda da
vovó, que também é do Eloy Machado, que é meu parceiro, diretor de arte. A
gente chama ele de Estética da Gambiarra dos Jardins. Ele desenhou a escada, que há muito eu tinha vontade de
ter uma escada de salva-vidas, desde pequena. Minha fantasia, uma escada de
salva-vidas. E aí para mim fez muito sentido ter uma escada de salva-vidas com
rodinhas.
BTNB: Por que, desde
pequena?
C: Não sei, acho um
lugar, (ri) um lugar bonito. Uma cadeira de salva-vidas, eu achava um lugar
muito bonito, ficava em lugares bonitos nos lugares. Dava vontade de estar numa
cadeira de salva-vidas, era esperançoso esse lugar que tem alguém ali para
qualquer coisa ir te salvar. É um objeto bonito, uma escada, eu queria ter. E
eu contei essa vontade pro Eloy e ele fez esse projeto que é uma cadeira de
salva-vidas para adulto. Além de portátil, como as coisas são no jardim para
facilitar fuga, ela é equilibrada por uma planta, o peso da planta equilibra. a
gente botou uma braçada de Espada de São
Jorge, ali no meio, mas é uma braçada, né, é uma quantidade grande, até num
vaso apertadinho.
BTNB: Fala mais da
cômoda. O que você plantou nela e qual vó que era?
C: Uma jabuticabeira,
uma vó que eu tive que se chamava Dalila. Dalila Velho Rodrigues. O nome de
trabalho.
BTNB:
Ela
é por parte de mãe ou de pai?
C: Por parte de pai,
e o meu pai morreu quando eu tinha 8 anos. E a minha avó, e eu já falei várias
vezes sobre o meu pai, ao longo da minha vida como artista. É, junto com a
minha Companhia, e em projetos, assim, motivada por isso, por essa perda. Já
teve vários desdobramentos de lugares emocionais ao longo da minha [vida].
É muito interessante porque morrer não é
uma coisa estática. Isso que às vezes eu fico pensando: eu fui formada pela
minha mãe que vive até hoje, fui formada pela minha mãe, mas sou muito formada
pelo meu pai. Meu pai morreu mil, milhares de vezes ao longo desses anos todos,
porque de milhares de vezes eu olhei para isso de maneira diferentes.
Eu já tenho esse lugar, assim, meu primeiro
namorado morreu. Tem um lugar, tem umas ausências muito concretas. Isso sempre
foi muito uma pulsão de vida para mim no final das contas. Esse meu namorado
que morreu veio muito nesse lugar: ele ia ser músico, nós dois éramos
apaixonados por arte em geral, assim, estudantes do Pedro II. Eu queria ser
atriz, e ele tocava bem pra caralho o violão, e ele acabou muito incerto,
acabou fazendo Administração, que ele achou que quando fosse ficar velho, que
ele ia ganhar dinheiro antes. Enfim ele me namorou quatro anos. A gente acabou
terminando nessa virada, aquele momento que muda de vida e a gente não
conseguiu ir junto, mas ele foi muito querido na minha vida. E ele morreu dois
anos depois da gente ter terminado, ele, aos 22 anos, e ele morreu sem ter sido.
Ele nunca ficou velho, e sei lá, e tudo ficou tão claramente vão, assim sabe,
se preparar tanto.
BTNB: Ele morreu de quê?
C: Acidente de
carros. A Camila Amado tem uma que me salva direto. Ela fala que é empregada do
departamento de milagres, é isso, eu sou empregada de departamento nenhum, e se
eu sou, é do departamento de milagres. Eu vou viabilizando existir, como é que
eu faço isso, e muitas vezes essa aflição de ter que viabilizar me leva a fazer
coisas que talvez eu não quisesse e que são muito boas para mim, eu fico muito
feliz de ter feito.
BTNB: Mas você falava da
sua avó, qual era a sua relação com ela?
C: Ah, da vovó
Dalila, né? Então, eu fico pensando meio assim: eu não tinha muita relação com
a minha vó Dalila. Porque... Imagina, tinha muita, assim no meu imaginário, era
uma avó que ia na minha casa uma vez por semana; quando meu pai morreu, a minha
mãe falou que ela só tinha a gente para beijá-la, que ele era filho único. Então
aquilo para mim foi a minha responsabilidade da minha adolescência, que eu
tinha que beijar a minha avó.
Mas quando ela estava morrendo, foi uma
morte muito dura, ela fazia questão de ficar na casa dela. Eu lidei com
milhares de coisas na morte da vovó, caralho, é foda. E assim asilo é asilo,
asilo é foda. E ela tinha horror a ir, então ela adiou muito, então ela, sei
lá, foi muito traumático, essa morte dela. Nesse momento, eu me aproximei, eu
frequentei o hospital, eu fiquei mais perto. Quando ela morreu, ela, eu fui na
casa dela, e eu olhei para as coisas de novo, e vi muito meu pai através do
olhar dela, foi muito interessante, eu peguei isso. E trouxe muito pros Jardins.
O Jardins
já existia, nessa hora, mas assim, teve muitas camadas essa noção do Jardins. O Jardins existe na minha vida há dois anos, essa foi uma das
últimas. Ela morreu, eu fui lá, e eu fiquei com a cômoda. Aí, muito bom,
reclamaram que eu ia fazer a jabuticabeira na cômoda. Porque a primeira reação
de todo mundo foi que seria ruim para a cômoda. Eu acho isso maravilhoso, né?
Mas por que você vai estragar a cômoda? E as cômodas são estragáveis no tempo,
as cômodas não devem prevalecer no tempo apesar de tudo, as cômodas podem ir
embora. Está tudo bem, entendeu? Lógico, o Cabeção tratou, transformou num vaso
de um jeito muito cuidadoso, mas a raiz está expulsando a parte de trás, e ela
vai ter que ser alocada, ela está com bastante terra, está saudável e tal.
Eu peguei as roupas dela, e eu fiquei
pensando sobre esse lugar da ficção também. E agora a cadeira dela, eu sento
numa cadeira dela. Cara, ela veio para a minha vida de uma maneira. Eu peguei
as fotos do filho dela, porque não são as fotos exatamente do meu pai, sabe?
Porque a moldura, o jeito, aquela foto, é a foto do filho dela, sabe? É muito
interessante ver assim, sabe? E como meu pai é uma figura que eu pouco conheço,
é um outro olhar. E ela era uma mulher,
e ela se chama Dalila. Tudo isso, mesmo ela era uma mulher um pouco assustadora
também, com alguns pensamentos meio assustadores, ao mesmo tempo, sei lá, tão
humana.
BTNB: Ah, é, vou fazer
umas perguntas sobre os Jardins,
então, porque você já entrou. Você chegou a falar em algum momento no Jardim
como um penetrável.
C: O Hélio [Oiticica]
fez um ato que chamou Acontecimento
Urbano-Poético e eu pensei em replicar e usar, e chamar o meu de Acontecimento Urbano-Poético: Jardim,
dois pontos Jardim. Tem tudo a ver, é um penetrável porque é um espaço de
convivência. É um espetáculo que é uma desculpa, veio muito do Hélio, veio
muito Chacal, tem muito do CEP. Veio muito da Lygia [Clark], pelos Bichos [série de esculturas da artista,
feitas em alumínio, possuidora de dobradiças que permitem a flexibilidade e
articulação das partes do corpo] todos, pelo que é tocável e modificável com as
suas mãos, e com a sua presença e com o seu corpo. Você molda as coisas, a sua
presença está. A Lygia, enfim. O Jardim é total fruto de tudo isso. É para ser
vivo. E falo minha poesia nele, e faço um recorte, e tem essa ideia de pensar a
cidade, coisas que me impressionam, sei lá, de cidade a um monte de coisa, de
fazer isso dentro de um ambiente vivo. E dentro de um ambiente vivo que precisa
ser cuidado, e que é bonito. Aí eu descobri vários artistas que trabalham com jardins
no mundo. Tem estrada para caralho, fiquei com vontade de fazer Botânica, eu estou
caminhando para tudo isso. Desde os nomes. Eu brinquei com uns buquês de nomes,
uns ajuntamentos de nomes de flores. Tem nomes muito bonitos.
BTNB: Fala um pouco
sobre os buquês.
C: Do que eu tenho
lá, já, Allamanda cathartica [ou
Alamanda, ou dedal-de-dama, pop.], é uma planta amarela, uma flor amarela, que
dá à beça [risos], que é uma trepadeira. Aí você vê essa coisa da trepadeira
também é uma coisa muito interessante, essa coisa assim física. A trepadeira
precisa de parede e você verifica isso, quando você coloca a trepadeira apoiada
assim num local que ela pode se desenvolver, ela se desenvolve muito mais do
que não, do que você afastando ela de tudo. Se ela sai de casa, ela adivinha
paredes. Se ela está se desenvolvendo numa parede, e tem uma parede depois e está
entre obstáculos e ela não vê, ela se dirige a essa parede oculta, ela prevê. Existe
intento, existe direção no crescimento.
Uma moça foi nos Jardins, a Paula Barreto, para a chegada dos atravessadores. Esse
espaço de convivência. Então, poder de fuga, retornando o meu insigth que me levou a construir esse
lugar no Rio de Janeiro e eu ter vontade de levar esse lugar pros lugares. É,
meu pensamento foi assim: é um ambiente muito agradável, é um ambiente vivo, sobre
ele, as pessoas vão e ficam. A Paula Barreto levou um aparelho que foi inspirado
num detector de mentiras. Tem um livro que ficou famoso nos anos 70 chamado A vida secreta das plantas [A vida secreta das plantas (The secret life of plants), de autoria
de Peter Tompkins e Cristopher Bird, publicado originalmente em 1973, com
tradução em português editada pelo Círculo
do Livro em 1976] que é o desenvolvimento desse caso que é o do Doutor
Backster [Cleve Backster, especialista norte-americano em detecção de
mentiras], que é um nome ótimo, ele descobre isso. Ele está enfadado no escritório
e aí bota o detector de mentiras numa planta, uma Dracena [espécie de planta
tropical utilizada como ornamental] e aí ela reage a ele botar uma parada
quente nela, o café quente. Ele descobre milhares de desdobramentos e a
sensibilidade das plantas e que elas estão ligadas a você e que se você cria
uma planta desde a raiz, está ligada mesmo. Ela se relaciona com o seu estado
de espírito, inclusive.
Aí, a Paula Barreto, por exemplo, foi lá
com um aparelho desenvolvido agora por um cara da UFRJ, descendente desse
detector de mentiras, que é o Plancton,
e ela faz essa verificação da sensibilidade. Você molha com saliva, passa o
dedo, e a planta reage, uma loucura! E isso é um tesão de descobrir, está sendo
assim, e é muito bonito, flor é uma coisa muito bonita. É bonito de olhar,
acalma a mente. Assim, num bom sentido, sabe. Não é à-toa, Goethe, milhares, eu
tenho lido coisas sobre outros que caíram por terra, né, pode falar? E tem me
feito muito bem conhecer pessoas porque esse espaço de fuga, ele é um jardim,
no Rio de Janeiro, que também então, é uma política, cobra pouco [O ingresso
custa R$2,00 (dois reais)].
BTNB: Eu ia perguntar
disso, sobre essa questão disso como uma intervenção no espaço urbano mesmo.
C: Eu acho que esse é
o lugar de todo jardim, é, e forçando mais, esse jardim pode ser palco, minha
proposta é que seja.
BTNB: Isso é uma coisa
interessante. Você pensa nele como jardim e palco?
C: Eu penso nele como
um espaço de ato, para ato. E, por exemplo, então meu projeto é: eu vou para
Sobral, com uma proposta de Workshop de Jardinagem e Ato, que é uma incubadora
de desejo dos outros. Você chega lá e: “Olha, eu tenho feito isso aqui, eu
tenho feito isso aqui e estou querendo chegar”, é o “ao vivo”. Eu quero o
espaço para o “ao vivo”, que teve sempre aqui com o CEP. Você tem um espaço de
convivência em que a pessoa pode sossegar, e aí vai aprender a criar esse
espaço juntos. Então eu pego lá o dinheiro que eu pegaria para levar o meu
cenário para a cidade, eu uso para fazer lá, eu compro isso em terra, planta,
entendeu?
E aí a gente faz junto esse jardim, e o
jardim fica. E acho que artistas são sensíveis o suficiente para seguirem
regando, que é que faz o jardim viver, para ser palco deles, do interesse
daquilo ser palco. E isso é um lugar muito agradável, é muito agradável estar num
lugar agradável. Pode ser desagradável também, dá para fazer coisas bem soturnas
no jardim, eu sou um pouco mórbida, né.
Eu tava tão dispersa que eu achei que podia
fazer um número que se chamava Como
destruir Amores Perfeitos. Hoje em dia para mim seria impensável matar um
ser vivo. Eu tenho vontade de morar em lugares com árvores. Eu tenho vontade de
revitalizar, por exemplo a Escadaria do Selarón para o Projeto Jardins Portáteis, ter que revitalizar
aquelas banheiras. A ideia é que fosse ali, plantas para chá, para tempero,
porque é assim que seduz as pessoas, para regarem. É uma troca é que nem jardim
para artistas que vão regar porque é o palco deles. É uma troca, um jeito de um
enredamento, de um no outro.
BNTB: Como é que é a sua
observação, como é que você nesse lugar percebe as pessoas, você consegue
observar quando você está lá atuando?
C: Eu acho que dentro
do que é você observar alguém. O que está se passando relativo a sua cabeça, e
o que está se passando relativo a minha cabeça, são coisas que nem a gente sabe.
Então eu procuro sim, cada vez mais em todos os lugares, inclusive na cena,
falar: “Ó, olha ali, vamos lá”. Me perco muito, me perco muito desde. Os Dezequilibrados tem isso: a gente
trabalhou muito em espaço não convencional. E aí, onde é que o público vai
ficar? Mas será que eles vão entender que é para vir para cá? Então assim,
essas perguntas fizeram muito parte da minha vida, e eu gosto de responder. Eu
sempre gostei de receber as pessoas, pode ser para depois dar um susto nelas se
for o caso. Mas eu gosto de gente, sabe. Eu faço teatro porque eu gosto de ver
gente, e é um lugar em que as pessoas vão mais desarmadas, é mais possível.
A Lygia também me libertou muito disso. A
Lygia radicaliza o trabalho a ponto de, no final da vida dela, ela ir num
consultório, ela atende um por um. Ela pega toda a obra dela, trata as pessoas,
faz consultas de um por um. É uma consulta, é um paciente que é um espectador,
também não é um espectador, porque ela está em segundo. Mas é uma troca, é um
ato compartilhado, então o que eu esquecer disso é do outro, eu não sei. Eu sei
da minha intimidade, da minha proposta, é o que eu posso oferecer.
Eu não tenho mais medo da invenção, é isso
que eu quero dizer, sabe, o Jardins é
muito um brinquedo de invenção, e é um brinquedo de botar pilha nos outros para
inventarem também. Então, os atravessadores também podem inventar, e as pessoas
que estão lá estão topando ficarem juntas num ambiente vivo, em que acontecem
umas coisas estranhas, e outras não. Meio que acontecem umas coisas, é uma
prática de acontecimentos, e é um pensamento estético e uma estética de arte,
de alguma forma, porque é um acontecimento, é não causal, por uma estrutura que
enrede, e não enredo.
Como é que você auxilia esses ecos, essas [dizendo
um trecho de um texto da peça] “folhas
flaem ferem fissuras flanantes furando o chão das folhas”. Assim parece um
amontoado de “efe”, e não. As folhas flanantes ferem fissuras, elas se colocam
umas entre outras, vão, superpõem, e tem a ver com placas tectônicas. E aí um
rumo diferente, e que silêncio é esse? É um silêncio previsto e é um silêncio
que vem da troca de um artista por outro. Eu evito um pouco a apresentação no Jardins, ela pode estar embutida no ato se
for necessário, mas ele não prevê o isolamento. E de alguma maneira é isso, esse
lugar de estar junto. E minha vontade é vagabunda, é sensibilizar vinte no
sábado, vinte no domingo, vinte na segunda. E sensibilizar no sentido de ir lá,
encontrar com a gente.
Porque aí tem o atravessamento, que é o
projeto, aí entra o Dimitri [BR, cantor, compositor, poeta], a gente está
fazendo uma peça juntos na real. E é muito privilégio, porque é um poeta, é
muito bonito o trabalho dele, e ele tem essa pesquisa sobre o ato. É muito
interessante ver como ele viabiliza isso, como ele cria a situação dele, sabe,
é um pouco esse lugar de pesquisa. O Álamo [Facó, parceiro de cena de Cristina
em Cosmocartas] já tá superprovocado,
já quer levar material para atravessar. É um lugar de pesquisar isso, o
acontecimento, esse lugar que o Hélio anos atrás inventou e que se chamava Acontecimento Poético-Urbano. Para o
contexto florir.
Nenhum comentário:
Postar um comentário