Na
sequência da entrevista com Cristina Flores, atriz e idealizadora do
Acontecimento Poético-Urbano Jardins
Portáteis, ela conta uma história sobre quando fazia acrobacia e notou que
o professor não olhava para as pessoas no momento da execução do salto. Olhava
para elas, antes, na fila, indo saltar. Cristina perguntou por quê, e ouviu: “O
salto se vê antes de saltar”. Quase uma narrativa zen, talvez uma imagem
interessante para tentar dar conta de sua relação entre o trabalho de pesquisa
e leitura incansável, e a abertura para o “ao vivo”. Cristina comenta ainda
transformações não só de cena, ou do modo de atuar, mas da maneira de estar
diante dos outros, de como se têm transformado os nossos modos de nos
encontrarmos. Em junho de 2013, durante as manifestações, e agora, sua pesquisa
sobre o que chama de ato desemboca num exercício poético do encontro e da
escuta que chama, ou busca, novas possibilidades de liberdade.
Junto com
a postagem de hoje, apresentamos fragmentos do texto que faz parte desse
Acontecimento, e as fotos de Flor Brazil.
A
jabuticabeira, na segunda-feira passada, estava carregada de frutos doces –
tinha dado da noite para o dia. O Jardim segue vivo.
JARDINS
PORTÁTEIS
Direção e
dramaturgia: Cristina Flores. Criação e atuação: Cristina Flores, Eduardo
Sande, João Marcelo Iglesias. Estética da Gambiarra: Eloy Machado. Luz: Dani
Sanchez. Fotos e vídeo-poema: Flor Brazil.
SEDE DAS
CIAS
Rua
Manuel Carneiro, 12 – Lapa (Escadaria Selarón)
De sábado
a segunda, às 20h.
De 05 de
julho a 25 de agosto.
***
Fragmentos
do texto de Jardins Portáteis (Cristina Flores).
a poesia
do silêncio/ nu que eu eu pauso/ depois/ um engenheiro abrindo espaço/ ponte desencaixada
prevê calor/ halo da palavra reverberra/ a poesia que só te acontece/ a poesia
do seu ouvido/ deixe livre o passeio/ entre com cuidado no amarelo piscante
*
João começa a cantar de óculos
escuros vem do fundo:
Astigmata chega mais perto
DÚ Paisagem sonora
Fumaça ninja
CRIS medo da cidade
feito medo da floresta
floresta daquelas perigosíssimas de
todos os contos de fadas
todas as florestas de todos os contos
de fadas são
perigosíssimas
as florestas precisam ser vencidas
são inimigas das princesas dos
aventureiros
florestas podem matar você no caminho
DU Leva livro em caso de cativeiro
SAI de calcinha nova pro atropelamento
Não aceita bala perdida de estranho
JÃO Leva livro em caso de cativeiro
SAI de calcinha nova pro atropelamento
Não aceita bala perdida de estranho
CRIS Levo livro em caso de cativeiro
Tô calcinha nova pro atropelamento
Não aceito bala perdida de estranho
Palminhas
DU
e todas as mães
precavidas sabem que as melhores calcinhas se encontram
JÃO nos hospitais
DU a boa filha
mostra imagem
--- a outra.
mostra imagem.
ELES Seja uma filha boa.
DU A Covinha viva no seu rosto vai
esconder um dia uma lesma saciadas dos seus olhos. E nenhuma memória permanece
guardada no crânio (armarinho de osso).
JÃO A Covinha viva no seu rosto vai
esconder um dia uma lesma saciadas dos seus olhos. E nenhuma memória permanece
guardada no crânio (armarinho de osso).
CRIS e desse de repente amor por mim, muito
amor por mim, de mim,
como se eu me fosse cara,
como se eu sempre me tivesse
quando eu precisasse
você pode ir pra marte você não pode
ir pra 2 minutos atrás
(preciosa,
coisinha, causa própria, filha, minha música da cássia eller. como
se eu me
importasse comigo).
vida
minha pequenininha ou campo de golfe nenhum esporte um bebê
que golfe
na trave
vidinha
que foge azedinha daquela boquinha
um adulto
é esgar?
um tipo
de riso, um ricto com água salgada na ponta da língua que
cata
a gota se
cai do nariz
me diz
quem
salta daquela ponta
(sozinha)
sou eu!
leve! no ar! agora! pra sempre vai ser agora mesmo, eu prometo, você nunca vai
estar em outra parte além de aqui, agora. você vai estar pra sempre aqui e
agora mesmo até desaparecer você vai sumir sem saber. Pra sempre vai ser agora
mesmo, você pode virar essa frase de cabeça pra baixo ela repete pra sempre vai
ser agora mesmo.
JÃO Construir a ilha, as raízes debaixo do
mar, uns tubérculos grossos salgados remanchando debaixo daquela barriga
marrom, uma terra compacta, um cisne de pelo verde de penugem plântea, muito
musgo muito musgo muito muito musgo muita hera muita hera muita hera
DU (caixinha de música) Poema para pine p. Minha Brinco de
Princesa. Você Morreu logo depois de sua primeira apresentação no Sérgio Porto.
Acho que você não queria mesmo ser atriz. Também Morta de verão. Você Não
resistiu ao verão.
*
sozinha
na muretinha
urca
dois
pescador ali
contando
os baldes
conversas
de gente
passando
algumas
palavras
aumentam
de volume
perto
de mim
porque
sim
e não
porque escolhe ênfase qualquer nada significa nada nenhum senso estético
os
pescador jogam linha de novo
reflexo
de segurar a minha
mão na
glote sinto fisgadinha que nem peixe
quando
adolescente eu tinha
uma
fantasia que eu dei pra mim
(eu acho
essa frase tão sexy, vocês não acham? uma fantasia que eu dei pra mim?)
de morte
meu medo
de fim
era o degolamento de bicicleta por pipa com cerol quando jogam o anzol do meu
lado na urca eu POSSO ser fisgada pelo pescoço um rasguinho e adulta
esvaída
sangue ar chuá devagarinho
*
Em troca
de um pirulito já levaram uns dentes meus, meus cabelos, sangue
Já
troquei uma juquinha por uma injeção. Eu via muita graça num programa de tv eu
era pequena e uma pessoa ficava com o ouvido tampado e o apresentador falava
você troca uma coxinha de galinha por uma carro de fórmula 1 e a pessoa não, o
apresentador você prefere a coxinha o surdo sim e o público desesperado e o
surdo excitadíssimo sem saber se tava arrasando e tendendo a achar que tava
arrasando e a apresentadora e você troca a coxinha por um mês em macapá e a
surda sim e a apresentadora e um mês no macapá por um carro de fórmula 1 e a
surda não... Deus se existisse seria esse apresentador de televisão. Chegou num
ponto de medo de deus existir e ser eu a ter que dar uma surra nele.
***
![]() |
Cristina Flores no Jardim de Jardins Portáteis. Foto: Flor Brazil. |
Entrevista com Cristina Flores (continuação).
Bliss Não
Tem Bis: Você
falou em algum momento que estava cansada da cena, eu não me lembro agora se
você usou a palavra eficaz, ou eficiente, mas falou que estava cansada disso e
que estava interessada em outras coisas. Eu queria que você falasse mais sobre
isso.
Cristina
Flores: Eu vejo
que o resultado, a cena, o ato foi muito modificado, enquanto eu estive com
relação a ele, ele foi se modificando muito. É claro, eu tenho 38 anos, então
eu estou [trabalhando como atriz] desde os 20, lógico que é de se esperar que
em 18 anos as coisas sejam modificadas, e isso é muito interessante, isso é
muito importante ver. Ninguém acredita mais na causa e consequência de nada,
muito menos de um texto. Isso tudo foi explodido, assim, as coisas não são
causais, elas estão ganhando uma nova possibilidade de liberdade. Assim, é a
realidade do acaso mesmo, é o futuro das coisas, e como isso é bom de olhar,
como isso não é despreparo. Por exemplo, [em] Cosmocartas, eu não tenho uma Lygia a
apresentar, final. Não é que essas coisas eram chapadas e agora a gente
descobriu a pluralidade das coisas, não. As coisas não eram chapadas, mas
existiam acordos que foram quebrados, que não existem mais. Isso está em jogo,
agora, no ato, no “ao vivo”.
É
diferente estar diante dos outros agora em 2014. É diferente, foi muito
diferente, eu estava em cartaz durante junho do ano passado. Puta que pariu. E
era uma peça que falava sobre ditadura de alguma maneira porque era uma
adaptação da Virginia, chamava As
horas entre nós, uma adaptação de Mrs.
Dalloway situada em 70 no
Brasil. Então tinha um lugar que a gente ecoou, discutiu sobre isso. E eu fui,
eu ia direto da manifestação, a pé porque não tinha como chegar no Sérgio
Porto, e tinha público, e foi bem legal.
Tem um
lugar que para mim fez muito sentido, aquilo era um projeto que eu tinha, que
eu propus por Joelson Gusson, que abarcou minha proposta, viabilizou junto com
a companhia dele, do Dragão Voador. Lógico, eu também quero descansar, brincar
e ficar de bobeira, como todo mundo, não é que eu tenha que ficar de
aproveitamento artístico full
time. Mas poxa eu quero existir no mundo depondo. E naquele momento, eu não
me senti arregando. Eu me senti depondo, na minha, mas não encastelada. Minha
festa diz respeito a esse mundo.
BNTB: Como é que é a sua observação, como é que
você nesse lugar percebe as pessoas, você consegue observar quando você está lá
atuando?
C: O público?
BNTB: O público.
C: Ah, eu acho que dentro do que é você observar
alguém, porque isso o que está se passando relativo a sua cabeça, e o que está
se passando relativo a minha cabeça, são coisas que nem a gente sabe. Então eu
procuro sim, cada vez mais em todos os lugares, inclusive na cena, falar ó,
olha ali, vamos lá; me perco muito, me perco muito. Os Dezequilibrados tem isso: a gente trabalhou muito em
espaço não convencional. E viajando e aqui no Rio, assim sempre um lugar de: e
aí, onde é que o público vai ficar? E aí, mas será que eles vão entender que é
para vir para cá? Então assim, essas perguntas sempre fizeram muito parte da
minha vida, e eu gosto de responder. Eu sempre gostei de receber as pessoas.
Pode ser para depois dar um susto nelas, se for o caso, mas eu gosto de gente.
Eu faço teatro porque eu gosto de ver gente, e é um lugar em que as pessoas vão
mais desarmadas, é mais possível entendeu?
BNTB: Como é que foi o início como atriz, e como é
que foi a entrada para a Companhia, dos Dezequilibrados?
C: Ah, eu fazia aula com a Celina Sodré, e o
Ivan Sugahara, o Lucas Gôuvea, e a Ângela Câmara também, e nessa época, eu
estava estudando Dostoiéviski, obcecada, e resolvi montar o Crime e Castigo. Falei com Celina, e eu namorava o
Ivan Sugahara, na época, que dirigiu, e a Celina botou a maior pilha de a gente
fazer isso. E foi foda. A gente nunca mais deixou de fazer milhares de coisas
juntos, e ficamos em cartaz com essa peça muito tempo, estreamos na casa da
Ângela, que, na época, era casada com o Lucas Gôuvea, e a gente ficou em cartaz
num quarto dessa casa. A peça se chamava Um
quarto de crime e castigo, ficamos em cartaz num quarto na Urca. Ficamos em
cartaz dez meses.
BNTB: E como é que surgiu a história de ser num
quarto?
C: Surgiu porque a gente não conseguiu teatro. A
gente era uma companhia começando, não conseguia teatro. E tinha todo o
[Antônio] Abujamra, na minha cabeça, falando faz onde for. E a gente ensaiava
lá também, entre outros lugares e lá, e desalugou o quarto, e se chamava Um quarto de crime e castigo,
repito, e a Celina foi ver um ensaio lá, e falou: gente, mas vocês não
conseguiram teatro, é ótimo, vocês têm que fazer isso aqui. Tem que ser aqui, e
aí, a gente fez numa época que não era muito comum. E foi maravilhoso para
todos nós, [houve] noites memoráveis, com Ferreira Gullar, com várias outras
pessoas interessantíssimas, a gente conversou a noite inteira depois da peça.
Cabiam seis pessoas, aí depois a gente conseguiu abarrotar a casa com oito. A
gente pendurou um lugar na janela de centro.
Vários
lugares do Brasil foi no SESC essa peça, a gente fez em puteiro sei lá onde, em
casa sei lá onde, eu não vou mais lembrar. A gente pensava proximidade, pensava
encontro com as pessoas. Por ser no presente, o teatro precisa de encontro. Tudo
bem, também tem muitas vezes gente com cara feia e a parada fica na sua cabeça
também. E eu acho que isso é um lugar de encontro. Eu acho que isso que tem a
ver com essa nova identificação com o que é falho. O erro está previsto. O erro
não é só trágico, é um lugar comum que é extraordinário. A gente está num
momento em que acendeu essa luz.
BNTB: A Laurie Anderson, uma performer
norte-americana, tem um texto em que diz que está no próprio corpo como muitas
pessoas estão no seu carro. Eu queria perguntar como é que é a sua relação com
isso, com estar no próprio corpo, a sua relação com seu corpo, e como você
pensa isso na questão da arte, do ato?
C: Eu estou em cena, meu exercício maior é de
aterramento e aceitação. Eu fico muito num silêncio. Hoje em dia, eu fico, eu
nem sei te explicar. Eu tenho toda uma pré antes, eu acho melhor discutir sobre
a pré. Me lembra [que] eu fiz aula de acrobacia com o Claudio Baltar, e aí o
Claudio, em vez de olhar a pessoa saltando, ele olhava a pessoa indo saltar, na
fila. Sabe? Claudio, por que você não olha pro salto? Salto a gente vê antes de
saltar. Não, o salto a gente vê, antes de saltar. A pessoa vai pro salto, é o
salto. Você não precisa ver o salto, você sabe. É sobre o início. É sobre o
antes, sobre escolha de relações que você tem, o ato é um refém, qual foi a
pergunta?
BNTB: A pergunta foi a sobre a sua relação com seu
corpo.
C: Então, eu escuto. Muito. E eu me escuto. Eu
percebo assim, eu me escuto muito. Por exemplo: angustiada, angustiada não
tecendo considerações sobre, mas véspera da estreia, muita coisa na cabeça,
vendo muita coisa em casa rapidinho para sair correndo para ver mais coisa na
rua, para ver mais coisa; e enquanto isso, namorado, mãe, amigos, sei lá quem
ligou, ih tem que responder aquele email, ih estou arrumando várias confusões
nessa peça, como é que vai ser aquilo que eu respondo para a iluminadora, e
blábláblá. Eu estou andando pela casa e paro diante do pedestal [para
microfone] que eu tenho que levar pro ensaio. Na minha lista mental naquele
momento, eu não tinha colocado um pedestal. Mas eu pensando e andando a esmo
pela casa, eu parei para nada. Eu não estava catando alguma coisa, eu estava
andando para gastar energia, enquanto falava no telefone, e parei na frente do
pedestal. Então eu conto muito comigo. Eu vou parar na frente do pedestal, eu
vou parar.
E isso
com o “ao vivo”, eu conto muito com isso, eu não entro em desespero. Eu tenho
um reflexo forte no ato. Tenho memórias muito fortes do ato, mas nunca nesse
lugar de desespero. Luto muito contra o medo, a cegueira, o nervosismo estéril.
Acho que é muito sexual e de aceitação e de se conectar consigo, e se habitar.
Sabe? Conto muito comigo, eu sei que eu vou ter o reflexo, que eu vou desviar.
Para mim,
é muito recente, e recente mesmo alguma noção mais concreta disso – eu vou
morrer. Eu sempre acho que vou desviar da bala a tempo. Acho que até sempre
tive isso, por preparo de cena mesmo. Sei lá, eu acho que eu tenho um bom
reflexo. Ou quando eu não tenho, não é tão dolorido cair. Já caí de bicicleta,
e ralei, ralei. Mas tudo bem demorar duas semanas, as coisas cicatrizaram. Esse
lugar de eu estou rodada.
No bom sentido. Eu tenho horas de voo. E aquilo ali vai ficar tudo bem.
A coragem
da fragilidade, a coragem dessa não é o confortinho. A fragilidade não diz de
uma aceitação do medíocre. Não é disso que se trata, mas é do que também? Não
sei. E não me sinto obrigada a saber. Que venham, que venha isso, é um
penetrável. O que eu tenho pensado são os espaços e os penetráveis e eu chego
com o meu brinquedo. E estou transformando o meu brinquedo num brinquedo
cruzável.
BNTB: E nesse sentido mais aberto, como é que foi
montado o Jardins? Porque
em alguma medida, ali tem algumas coisas que são – não é a palavra marcadas,
parece que seria o oposto disso, mas tem algumas unidades ou coisas mais ou
menos – estabelecidas. E como é que você chegou neles, então, se não foi esse
outro tipo de construção mais afixado?
C: Ele pode mudar, mas isso não significa que já
não tenha algumas escolhas. Liberdade não é fazer todo dia de um jeito,
liberdade é uma liberdade de olhar para aquilo de novo, e escolher de novo um
jeito melhor de exprimir aquilo naquela hora. Então, você cria um vocabulário,
você pesquisou esse vocabulário.
Existiram
escolhas. Olha, eu sou obsessiva, paralelo a toda essa minha tranquilidade
diante da novidade, eu adoro revisitar. Eu não vou falar repetir, porque não é.
É como ler um livro duas vezes, como ler um livro duas vezes pode se parecer? E
é muito fantástico isso, porque as palavras [na página] não têm nem entonação.
Você relê uma palavra, ecoa diferente em você. Você está com outro espaço,
aquilo cria outro som interno.
Eu fiz
escolhas, e agora são essas, já têm mudanças para a segunda semana, e mesmo
numa montagem, elas às vezes são maiores e mais radicais. O Jardins tem sido muito esse lugar de parar
diante do pedestal, entendeu? As coisas sempre abertas, e é isso, assim esse
papo é super rico, mas o Jardins tem patrocínio da Petrobrás, a
Companhia também. O fato é que eu vivo disso, o Jardins está patrocinado, ele tem uma
organização. Esse estado de vem, vem que tem, e estamos juntos, e eu cobrar 2
reais, vem de uma estrutura. Na realidade, você pode estruturar uma doideira
dessas.
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Jardins Portáteis. Foto: Flor Brazil. |
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