A poesia de Manuel de Freitas aparece
em vozes que se confundem com o silêncio. Com os sons que quase não se escutam
nas barulheiras das tabernas. Uma espécie de exercício do som com a morte, o
som contra a morte. Seja no livro que dedica à cantora de um único disco,
Marilyn Moore, seja nas suas duas Jukeboxes seja nos poemas que reúne como
notas finais de livros, sempre endereçados a alguém, tem-se a invariável
impressão de estar diante de cacos sonoros. Não cacofonias, são pedaços de sons
quebrados. Aquilo que se recolhe depois de um show, os restos de cada canção.
O poeta português, nascido em 1972,
publicou seu primeiro livro em 2000, Todos contentes e eu também, e
até agora no Brasil teve uma edição da Oficina Raquel, lançada em 2007, o
volume Poemas de Manuel de Freitas. Hoje, vive em Lisboa.
Publicamos, junto a seus poemas, uma
das imagens de Adriana Molder que acompanhou a edição numerada de Marilyn
Moore, publicado pela Assírio Alvim em 2011. E um vídeo para que se ouça a
voz que canta, junto às palavras e sons que seguem a sua extinção.
***
De Marilyn Moore (Assírio
Alvim, 2011).
Redhead, da série M, 2011,
tinta da china e acrílico sobre papel esquisso, 150x100cm. (Adriana Molder)
OKLAHOMA, 1931
Não foi um ano fácil, na terra
de homens vermelhos e piedosos
em que nasceu, quase por engano,
Marilyn.
Acerca dela se poderia apenas
acrescentar que morreu em 1992,
numa espécie de fria e simétrica
discrição.
Moody, porém, faz-nos repensar
a história,
obriga-nos a escutar o vento.
*
I’M JUST A LUCY SO AND SO
Se enriqueceu, o que é duvidoso,
terá sido de outra maneira,
depois de 1957 – o mesmo ano
em que Billie, sentada, deixava
que filmassem a sua morte.
Ainda assim, Billie gostou de Moody,
percebeu a diferença entre um eco
e uma cópia, a força insuportável do
acaso.
Não há imitação em arte, não há
caminhos.
Só por milagre, e muito raramente,
duas vozes se encontram tão perto do
silêncio.
*
ILL WIND
Se eu fosse Deus – a mais indigna
das profissões –, convidava
Tom Waits para completar este dueto.
Pois o vento, já se sabe, empurra-nos
sempre para a morte.
*
IF LOVE IS TROUBLE
A pergunta nem se coloca, embora
a intensidade do diálogo
supere provisoriamente o abismo.
Parece que a canção se veio a tornar
demasiado real, acendendo
em cada veia aquele sombrio remate:
“Cause if love is trouble
That’s what I’m looking for”.
*
IF YOU IS OR IS YOU AIN’T MY BABY
Encontraram-se no Charlie’s,
por volta de uma da manhã.
Billie largara temporariamente as
drogas
e pediu vários martinis, antes de
passar ao gin.
Marilyn, de início bastante nervosa,
acabou por lhe confessar que as coisas
não iam nada bem com Al; duvidava
que viessem a gravar juntos outro
disco.
Disseram mal dos homens, das mulheres,
do mundo, enquanto alguns olhares
censuravam
em silêncio a única mesa do Charlie’s
onde um fato completo não zelava pela
moral.
– Essa grande moral americana, de que
se riram,
em branco e negro fundido, até que o
bar fechasse.
Só não sabiam que a morte depressa
viria selar aquela estranha
cumplicidade.
*
BORN TO BLOW THE BLUES
Não se conhecem pormenores, mas
são inequívocas a data de separação,
a partida do “young man with a horn”,
a solidão – nunca mais ouvida – de
Marilyn.
A eternidade pode às vezes durar um
ano.
E ferir-nos, num grito calado, a vida
inteira.
*
LOVER COME BACK TO ME
Na cama do hotel, em Tulsa, limitava-se
a trautear a canção que prometera
dar o seu melhor, num esboço de
epitáfio.
Percebia agora que há temas
que cantamos melhor deitados,
longe de qualquer palco.
Bebeu um copo de Woodford,
para trazer um pouco mais de sombra à
voz.
Não podia adivinhar, em Tulsa, que
a volúpia em breve se tornaria uma
súplica,
o género de coisas que só dizemos a
ninguém.
*
YOU’RE DRIVING ME CRAZY
Perder Al tornara-se uma evidência.
Talvez lhe tenha custado mais ver que,
com ele, desapareciam amigos e
contratos.
Não desejara assim tão breve a sua
passagem pelo mundo.
Billie, entre sucessivos internamentos,
não lhe podia valer, e o orgulho
impedia-a de mendigar junto das
orquestras
de Chicago, Kansas City ou New Orleans.
A sua voz pedia quase um murmúrio,
era incompatível com estrépito em voga
e demasiado frágil para atrair os boppers.
Segurava sem paixão um colar de pérolas
desfeito,
a certeza de já só ter memórias e nem
sequer felizes.
*
TRAV’LIN’ ALL ALONE
Entre o presságio e o fascínio,
muito lhe deve ter doído
aquele solo inicial de saxofone.
Depois, é a sua voz que
vai ficando sozinha,
cada vez mais sozinha.
Até por fim se confundir
com a noite.
*
I CRIED FOR YOU
(NOW IT’S YOUR TURN TO CRY OVER ME)
Tanto quanto se sabe,
o parêntesis nunca aconteceu.
Pode-se envelhecer, sem remédio,
antes mesmo dos trinta anos.
*
LEAVIN’ TOWN
Ao fazer a mala reparou que pouco
levava daquela lúgubre cidade.
Alguns vestidos, as primeiras frésias
que tivera de presente, agora murchas,
uma dezena de exemplares de Moody
que lhe serviam para amortalhar o
resto.
Se é que alguma coisa restava, pensou
junto ao aparador, enquanto no espelho
se perdia o fogo ruivo dos cabelos,
sublinhado pelo negrume do olhar.
Ao ajoelhar-se sobre a mala, escreveu,
em vez do seu nome, “Goodbye to love”.
Era também a sua única morada,
até que a morte ou a chuva a apagassem.
*
TROUBLE IS A MAN
Nova Iorque, 1986: sente-se atraída
pela capa de um disco chamado Evol,
onde uma das canções se chama Marilyn
Moore.
Não é fácil, para uma morta,
ressuscitar
tão inesperadamente. Há, portanto,
quem se lembre do silêncio em tempo de
ruído.
Em casa, o disco causa-lhe primeiro
horror,
depois uma breve simpatia, e acaba
por reconhecer que a letra é o mais
fiel retrato
que alguma vez pôde ter de si própria:
“frustrated desire
turns you away/ and turns you insane / over and
over”.
Marilyn Moore sabe, finalmente, que já
pode morrer.
*
I GOT RHYTHM
Quando eu te conheci, Al, pensei
imediatamente
que viríamos a ser uma dessas duplas
tão perfeitas e viscerais que só
acontecem de tempos
a tempos, mas ratificam, por breves
instantes, a eternidade.
Como Billie e Lester, Duke e Hodges,
Pops
e Ella ou Bill Evans com Tony Bennett.
O tempo, porém, foi-nos infiel – e da
eternidade
nada quero nem posso dizer. Prefiro
lembrar aqueles pequenos-almoços,
antes de seguirmos para o estúdio,
quando tudo nos fazia acreditar que tu
e eu
bastávamos para fazer o melhor disco de
sempre.
Dura tão pouco, sempre. Cansaste-te do
meu corpo,
talvez da minha voz, das únicas
verdades
que tinha para te dar. O mundo, esse,
não me interessa.
Antes ou depois da morte, continuas a
ser
“My young man with a horn”.
E isso, Al, ninguém poderá calar.
***
De Jukebox 1 (In: Jukebox
1 e 2, Teatro de Vila Real, 2009).
1969, ANÍBAL TROILO
“Siempre, siempre
Pichuco fue el peor enemigo de Aníbal Troilo”
A.T.
Chamo-me Aníbal Troilo
e a cocaína não me tornou
menos Pichuco. A tristeza
ficou, fica sempre. Mas de que
é que estávamos à espera?
Já o Polaco me dissera que
a morte não é uma questão de tempo
ou de vontade. Preferi não acreditar,
vestir uma vez mais de seda
o pânico de ter um nome.
Sinto-me agora ultrapassado,
expulso a desoras do meu bairro.
Este rapaz vai dar o que falar,
o Astor. Mas eu sentia as lâminas.
Sempre que tocava, as lâminas
– brilhando num pulso gasto,
nessa noite em que fingi cantar
“las estrellas de la esquina
de la casa de mi vieja”.
*
1979, LEONARD COHEN
Era bem claro, nessa noite,
o quanto a sua música
se afastava de “other forms
of boredom advertised as poetry”,
denúncia que se mantém válida.
Não serão bússolas duradouras
– tudo, enfim, falece –,
mas são palavras que nos protegem
da avalanche dos dias e dos meses,
destas poucas horas a que chamamos
nossas.
Uma maneira de voltar a morrer?
Talvez,
quando até nas cinzas encontrarmos
lume.
*
1982, AMÁLIA
para
o João Ferro
Dizem que chegou indisposta,
cansada de esperar a morte,
ao Harry’s Bar
(mas eu não estava lá).
O Joãozinho pediu-lhe calma,
deu-lhe de beber à inapagável dor
e sentou-se ao seu lado,
no último sofá de Lisboa inteira.
Foi então (repito: eu não estava
lá) que Dona Amália cantou,
esquecendo o jardim parado,
casas mortas já sem cores.
Por exemplo a da Mariquinhas:
túmulo de pureza, ou surda festa de
enganos.
O Joãozinho, diz-se, pagou-lhe
o táxi, levou-a a um quarto vazio.
Tudo o que podemos esperar.
*
1988, CHET BAKER
Prometeu que tocaria My
funny valentine como nunca
o fizera. E foi, também na voz,
verdade (a verdade é sempre
uma coisa muito triste;
faltavam-lhe duas semanas para morrer).
Comprei o disco quase vinte anos
depois, e só por difícil acaso
o fiz naquela cidade, com a
mesma ou nenhuma vontade de morrer,
agora que volta a dizer “Stay
little valentine” e a chuva torna
as bicicletas uma metáfora evitável,
contrária à ferrugem do que sinto.
Sim, é isso: ninguém nos espera
– e nem todos sabemos voar, sofrer,
cantar assim o desconforto.
Nada deveria ser tão triste,
até porque nada deveria ser.
Mas não me roubem, por favor, esta
canção.
*
1988, NICK CAVE & THE BAD SEEDS
Para o Lex
O concerto, embora excelente,
não foi o melhor da noite.
Preferi, a desoras, aquela
ida à Jukebox, onde ouvimos
Birthday Party e levámos (God
save the punks) muitíssimos pontapés.
Fazia parte desses anos
uma certa violência
cuja ternura se perdeu.
Como se perdem amigos,
lugares, súbitas canções.
Penso às vezes que mais valia
ter-te deixado ali, no chão do bar,
poupando-te ao massacre futuro.
Mas é assim, a juventude. Demasiado
impulsiva, excessivamente fugaz.
E faltava ainda, para qualquer de nós,
a pior sova, aquela que nem rosto tem.
*
1988, LOU REED
Foi tão estranho. O barulho
do nada sobrepunha-se
nas mais diversas línguas
àquela frágil tentativa de concerto.
Enquanto nós, trio deveras
implausível, comprávamos
vinho mau e sandes de chouriço.
Não era bem o apogeu de Lisboa;
seria antes o princípio da morte,
indiferente aos fogos de artifício
que haveriam de selar o desencontro.
Preferíamos, sem dúvida,
uns restos de magia,
uma desculpa qualquer para estarmos
efectivamente ali, depois de poluídos
– e só mais tarde rasgados –
os lençóis que nos cobriram.
(That’s the story of my life).
O Tejo, talvez por vossa causa,
nunca me pareceu tão triste.
***
De Jukebox 2 (In: Jukebox
1 e 2, Teatro de Vila Real, 2009).
2001, NICK CAVE & THE BAD SEEDS
Agora que Nick Cave já passou
dos quarenta (e a nós, Rui,
pouco nos falta), nem vale a pena
reparar na dança irrequieta do violino
ou dos actorzinhos de merda,
que vieram substituir os punks,
os skins, outras modas igualmente
tristes.
Vinte anos depois – como tu gostas
de sublinhar –, não sabemos já o que
fazer
à morte, a este inútil sobejo de vida
que
deixámos de mostrar aos porteiros da
noite
ou do inferno, coisas que podemos enfim
sorrir. Mas as lágrimas, de
há vinte anos, talvez fossem
preferíveis.
*
2007, DALAI LAMA
Não comprei bilhete.
*
2008, MEREDITH MONK
Por estes dias sobre a terra
em que pudemos ouvir
a voz do vento,
a alegria decepada
ou reconstruída
em cada gesto,
je vous salue, Meredith.
*
2008, PINA BAUSCH
Müller,
Café Müller.
A morte sabe onde fica.
*
2008, TOM WAITS
Make it rain, disse ele.
E as estrelas de Paris obedeceram.
*
2009, PINA BAUSCH
“As eleições de domingo no Benfica
estão comprometidas; morreu
Pina Bausch, a coreógrafa alemã”. – foi
assim,
de rajada, numa frase única a colar-se
ao vidro do táxi, que fiquei a saber de
sua morte.
E tive pena, recordei enquanto não
pedia troco
a tristeza feliz de a ver dançar Café
Müller
Mas já não tenho poemas.
Nem mesmo para si, Pina Bausch.
***
De Cólofon (Farenheit
451, 2012).
OS POETAS
para
o Ricardo Álvaro
Fevereiro de 2011: fiquei a saber,
por uma revista de merda, que
“os poetas não são tipos normais”
(vinha na capa da tal revista).
É um bocadinho discutível;
os poetas fodem, cagam,
gostam ou não gostam
de francesinhas e marujos.
Têm, como toda a gente, de vigiar
o colesterol e de pagar os impostos.
Porém, e antes mesmo de haver verbo,
há poetas e puetas. Há-os
gestores, contentinhos, polivalentes
– assim como os há revoltados,
insubmissos, crus e sem saída.
Uns acreditam nas palavras,
outros calam-se. Uns ministros,
outros deputados, mas capazes
(quase todos) de prefaciar mendigos
que olharam de frente o sol.
Os poetas morrem – e isso,
à falta de melhor, torna-os bastante
normais.
*
FORTE DE SÃO MIGUEL
in
memoriam A.F.
Ainda não enlouqueci e julgo-me até
capaz de reconhecer a beleza, quando a
vejo.
Esta noite, por exemplo, era de prata,
sonora, o mar que se erguia na varanda
do hotel.
Acordei-te; és agora a única testemunha
deste poema – e da minha vida.
Antes, logo de manhã, coube-nos lançar
ao mar as cinzas do meu pai.
Não foi fácil, tecnicamente falando.
A tampa de metal teimava em não abrir,
tivemos de recorrer a uma ponta de
corrimão
das escadas velhas do Forte. E assim,
sem preparo nem rigor, há-de chegar ao
oceano
o que sobrou, fisicamente, do meu pai.
Custou-me lavar as mãos, sujas
– pela última vez – da carne que me
gerou.
A alma, se existe, não a sei lavar,
embora
as lulas estufadas e o vinho branco
voltassem a tornar recomendável a Casa
Pires.
Adeus, pai. Acho que foi mesmo
a única vez que me sujaste as mãos.
***