Atenção!
Já
temos agendado o segundo lançamento da Revista-Disco de poesia Bliss Não Tem Bis. Será no dia
19/12/2013 na cidade de Pelotas – RS. Contamos com a colaboração de duas grandes artistas lá, Angélica Freitas (gravando a
vocalização de sua série Uma mulher limpa)
e Fabiana Faleiros (com uma nova
versão de Polícia, artista, etc.).
Por isso, é com muita alegria que anunciamos que Lucas Matos & Thiago
Gallego estará na quinta-feira da próxima semana em terras pelotenses para ler
poemas e lançar a revista-disco, editada junto com Clarissa Freitas, Marcio
Junqueira (com colaboração de Marília Garcia).
O
lançamento ocorrerá às 19h no casarão 6 – praça Cel. Osório, número 06. Para mais
detalhes, ver aqui (aqui).
Para quem ainda não sabe do que se trata a
Revista-Disco, indicamos as nossas postagens do dia 26/11 e do dia 03/12 (as
duas últimas semanas). O primeiro lançamento aconteceu no Rio de Janeiro no dia
29/11 e contou com a participação de Antonio Cicero, Daniel Massa, Rodrigo
Arruda, Dimitri BR, Alex Varella, Carlos Lima, e da estreante Victória
Guimarães, além dos editores.
A Revista-Disco pode ser encontrada à venda
na Berinjela (Av. Rio Branco, 185, loja 10, Centro, Rio de Janeiro – RJ.
(prédio em frente à estação de Metrô Carioca)), ou para encomenda entrar em
contato pelo e-mail: blissnaotembis@gmail.com (sujeito à cobrança de frete).
Na postagem desta semana, decidimos trazer
vídeos de alguns poetas cujas propostas sonoras e de vocalização do poema, de
um modo ou de outro, se aproximam com a ideia e o conceito da Revista-Disco, de
modo que seus trabalhos funcionaram como fundamento e inspiração para o
trabalho crítico e poético de concepção da Bliss
Não Tem Bis (Vale notar que alguns dos autores selecionados também aparecem
na revista como colaboradores, é o caso de Ricardo Aleixo, enquanto que outros,
como citações diretas ou indiretas). Pode-se, entretanto, dizer que, de modo
geral, na leitura que a crítica tem feito de suas obras, as
apresentações/leituras de seus poemas têm sido ou desconsideradas, ou rendido
apenas comentários passageiros, sem que seja realizado, a cada caso, uma
análise detida dos diferentes modos de trabalhar a voz poeticamente e do uso
específico que cada um faz das especificidades sonoras do corpo da linguagem.
Se é verdade que, desde os trabalhos dos
poetas concretos, e talvez mesmo antes se pensarmos, por exemplo, nas leituras
de Bandeira, a poesia, no Brasil, tem sido trabalhada para além das fronteiras
do literário, ou da página, é igualmente pertinente notar que nosso repertório
crítico e interpretativo ainda não conseguiu se debruçar para além de uns
poucos aspectos de vocalização e performance.
Nesse sentido, trazemos esta semana, junto
dos vídeos, dois ensaios que se debruçam sobre diferentes obras e que refletem
de uma maneira ou de outra sobre aspectos de sonoridade e vocalização poéticos,
Apontamentos para uma revocalização do
logos nos estudos de Letras (2013), de
Leonardo Davino, e Escrever com a boca: violação da
palavra e liberação dos sentidos prisioneiros na poesia de Ghérasim Luca (2008), de Laura Erber. Junto do
texto de Laura, um vídeo do poeta romeno/francês com cuja obra ela trabalhou ao
longo de sua tese de doutorado. (Reconhecemos aqui a importância da leitura de
sua tese para determinação de algumas faixas e ideias para a Revista-Disco Bliss Não Tem Bis).
Um dos objetivos de criar este novo objeto, a
revista-disco, é justamente o de aprofundar a nossa compreensão leitora e a
nossa compreensão da leitura enquanto atividade que se realiza com o corpo
todo, em que alguém se abre à experiência da linguagem, como um barco num mar
tempestuoso. Para os interessados em novas leituras/escutas
críticas, recomendamos a página de som da Ubu Web (clique aqui) que tem arquivos de
áudio com gravações desde poetas Futuristas russos, até os trabalhos de Henri
Chopin, dentre outros fundamentais para o pensamento sonoro e vocálico sobre
poesia.
Por fim, gostaríamos de indicar que a revista-disco
já deu seus primeiros passos, e começa a receber um ou outro resultados de
leituras iniciais, como a que se encontra aqui (aqui), realizada por Bruno
Lima.
O que querem,
o que podem essas vozes da voz?
*
Boca também toca tambor (Ricardo
Aleixo na leitura concerto Música para modelos vivos movidos a moedas (2010))
*
Pós Tudo (Augusto de Campos)
*
Chacal no Bom Demais (2008).
*
Meio-fio
(Antonio Cicero – para Bliss, 2009)
*
Arnaldo Antunes no Festival de Poesia
de Berlim/2008.
*
Apontamentos
para uma revocalização do logos nos estudos de Letras
Leonardo Davino de
Oliveira
Este trabalho tem o objetivo de debater o
processo de emudecimento do logos poético ao longo do tempo, a partir da
análise de algumas canções populares. Importa aqui investigar: a presença dos
“animais vocálicos”; a avaliação da lírica como “voz do coração”; e a polifonia
vocal da mitopoética de Macunaíma, como representante de um ensaio sobre o
Brasil.
“As cigarras são
guitarras trágicas. / plugam-se/se/se/se / nas árvores / em dós sustenidos. /
kipling recitam a plenos pulmões. / gargarejam / vidros / moídos. / o cristal dos
verões”, diz a poesia “As cigarras”, de Sergio de Castro Pinto. A mitologia
está repleta de seres vocais. Dentre eles, e para aprofundar as questões a
serem discutidas aqui, a cigarra e a formiga de Jean La Fontaine se destacam. A
fábula é bastante conhecida. Resumidamente, enquanto a formiga passa o verão
trabalhando e preparando-se para o tempo de estio gelado do inverno, a cigarra
gargareja a plenos pulmões (um canto que é interpretado pela racional formiga
como zombaria) e aproveita a luz e o calor do sol.
O fato é que
vira-e-mexe as fabulosas personagens reaparecem, seja em peças artísticas, seja
como mote filosófico, para nos lembrar de certa dicotomia existencial: enquanto
uma é “amor da cabeça aos pés”, a outra é pura razão. Consequentemente, esta é
melhor aceita, em um mundo onde o logos foi emudecido, do que aquela. No
poema de Alexandre O‟Neill, por exemplo, diante da “minuciosa formiga”, a
cigarra canta: “Assim devera eu ser / e não esta cigarra / que se põe a cantar
/ e me deita a perder”. Importa lembrar que, musicado por Alain Oulman e
gravado por Amália Rodrigues (1969), o poema de O‟Neill foi gravado por Adriana
Partimpim, heterônimo de Adriana Calcanhotto, sob o título “Formiga bossa
nova”. E há ainda que se citar “Esconjuro”, canção de Guinga e Aldir Blanc,
cujas primeiras estrofes dizem: “A zonza da cigarra no oco do cajueiro, erê /
Bota o bemol na clave do verão / Quem diz uma palavra com sentido verdadeiro,
erê / Que traga um som paisagem pra canção // Falei alarido palavra de vidro / Quebrada na voz / Palavra raiada
mais estilhaçada / Que o caso entre nós”.
A lógica dominante
– o logos desvocalizado e emudecido a serviço do gesto capital de expulsar o cantor da República
platônica – leva-nos a concluir que, caso trabalhasse, a cigarra não morreria. Caso
não cantasse sua própria tragédia, ela (muda e obediente) viveria mais e feliz,
porque segura, como a formiga. Tal ideologia, em um mundo plenamente mapeado,
vigiado, assegurado parece fazer sentido. Mas a vida será mesmo assim: tão
preto, branco e muda? Por isso a importância do poema de Sergio de Castro
Pinto: focando na cigarra, apagando a sua antagonista, o poema opera a valorização
da vocalidade – da percepção da vida pelos pulmões, para além do cérebro.
Dito de outro modo:
o poema “As cigarras” sugere uma (re)vocalização do logos.
***
No livro Vozes plurais – Filosofia da expressão vocal Adriana Cavarero investiga
como a filosofia tem trabalhado na promoção da própria “surdez”, à deriva dos cancionistas,
poetas e filósofos que investem no apuro do ouvido. Para a autora, agindo deste
modo, a filosofia nega a unicidade de cada voz, negando por sua vez a especificidade
de cada indivíduo. Cavarero anota que “a voz de quem fala é sempre diversa de
todas as outras vozes, ainda que as palavras pronunciadas fossem sempre as mesmas,
como acontece justamente no caso de uma canção” (p. 18). Cantar apresenta a verdade
de um vocálico – “é ter o coração daquilo” – e isso desestabiliza as formas generalizadoras
– “universalidades abstratas e sem corpo” – do modo como temos desenvolvido o
pensamento. No Brasil, não é à toa que “nossa gente era triste amargurada,
inventou a batucada pra deixar de padecer”, como diz a canção de Assis Valente,
dando uma amostra daquilo que uma cultura híbrida, mestiça e miscigenada como a
latino-americana pode oferecer ao mundo em contribuição ao pensamento.
***
Em A pele que habito, filme de Pedro
Almodóvar, a jovem Norma (Ana Mena), brincando distraidamente no jardim,
cantando os versos de “Pelo amor de amar”, de José Toledo e Jean Manzon,
desperta a mãe marcada por um incêndio que lhe desfigurou o corpo. Em uma torção mítica
feliz, a filha é a sereia da mãe. A voz de Norma – suas inflexões infantis, seu
esforço para cantar em português uma canção de ninar desnaturada – dá o sopro
de vida que Gal (a mãe) necessita. “O coração do mundo canta no meu coração /
Meus pés seguem sozinhos a dançar / Eu não conheço em mim a grande dor da
solidão / Se em tudo eu encontro o dom de amar”, canta. E ao mesmo tempo, é
essa a voz que também direciona a personagem à luz, a ver-se refletida em sua aparência
aterradora, ao fim trágico e irrefutável. Desse modo, a voz do coração da criança
é o veneno-remédio de Gal. “Só a morte apazigua esse nada-mais-tem-sentido que
a decrepitude nos sussurra a todo instante. Canto de sereia às avessas
convencendo Ulisses de que o mar secou”, anotaria o narrador do livro Minha
mãe se matou sem dizer adeus, de Evandro Affonso Ferreira (2010, p. 45-46).
As consequências do
gesto de furtar da mãe o papel de sereia definirá a existência da filha. E a trama de
Almodóvar. Mais tarde, a audição da mesma canção, agora em espanhol e na voz de
Buika (uma cantora profissional), arrastará a filha ao destino. “Pelo amor de
amar / Quero ser a luz que sorrir na flor / Pelo dom de amar / Quero ser a flor
que se deu de amor”, encerra a canção gravada por Ellen de Lima em 1960 para o
filme Os bandeirantes, de Marcel Camus.
***
Conclui-se que somos alguma coisa feita
para ser cantada. E cantante.
Sustentamo-nos na
voz. Mas não é qualquer canção. E, principalmente, não é qualquer voz. A voz
que (me) canta é a voz que governa (meus) mundos. Em geral, pela nossa trajetória
histórica e genética, pensamo-nos (nós: latino-americanos) com o corpo todo (homo
ludens pulsando), e a voz tem presença decisiva nesse processo, como uma resposta
intuitiva ao raciocínio colonizador, posto que a voz convida ao movimento: à dança.
“Quem poderá em vão
calar / a voz do coração?”. A pergunta inicial do sujeito parece querer
refletir a nossa dúvida humana. Entre a razão (o logos desvocalizado) e
a emoção (a vocalização do saber) o coração canta como contrapartida estética
ao abandono – “Se o amor quiser partir num dia de manhã sem avisar”. É esta voz
que dita o rumo a ser seguido pelo sujeito cantor da canção. Fazer do limão uma
limonada, da solidão um amor em paz, equilibrar dor e alegria no estético – na
criação – são ensinamentos vindos do coração. A voz de alguém cantando anuncia
que há um ser único e de carne e osso vibrando-lhe no ar. Ao contrário da outra
“canção de fossa”, porque ao invés de pensar em causas e efeitos, criou,
transcriou tudo em canto, o sujeito decreta: “Meu mundo não caiu preciso lhe
falar / eu gosto de você demais // Preciso lhe dizer de todo o coração / a
falta que você me faz”. Precisa e diz.
Sem o outro que lhe
abandonou, o sujeito não cantaria. É nisso que ele foca, cantando para mandar a tristeza embora, ou
melhor, para hibridizá-la à alegria e uni-las no canto necessário à vida, em um
exercício de criatividade desprendido da carga pesada que é viver. Aqui, a voz
poética (da memória, do coração, em certa medida) é o estabilizador – sem ela o
ser humano não suportaria estar vivo. Dando vida a este sujeito cantante,
Jussara Silveira, tal e qual a personagem Norma de Pedro Almodóvar, coloca-nos
diante do espelho: é a sereia que promove o movimento, convida-nos à criação. E
ao final, como diria o sujeito de “Ilusão à toa”, de Johnny Alf: “Meus olhos sentem
/ Minhas mãos transpiram / É um amor que eu guardo há muito / Dentro em mim / E
é a voz do coração que canta assim / Assim”. E “quem poderá em vão calar seu coração?”.
***
São vários e complexos os caminhos que
levam à musicalização de um texto escrito. Sabemos que as palavras tem “musicalidade”,
mas esta só é efetivada na voz, na vocalização da palavra. Sentimos esta
musicalidade, já devidamente naturalizada dentro de nós, ao ler silenciosamente
um texto porque estamos infectados pela memória sonora da palavra falada
(cantada), pela sua materialidade vocal. Encontrar a gestualidade vocal exata,
equilibrar texto e música na voz para “melhor dizer” uma mensagem é tarefa
árdua e prazerosa enfrentada pelo cancionista. O certo é que se não há um
“jeito único” de vocalizar um texto, cabe ao destinador esquentá-lo de modo a
transmitir a mensagem da melhor forma possível à compreensão do destinatário.
Do mesmo modo como fazemos ao falar. Ou seja, as “mesmas palavras” servem a
intenções diversas e para diferenciar as intenções a voz entra em ação. Quando
lemos um texto, entre outros artifícios, os sinais oferecidos pelo narrador são
o que nos auxilia a distinguir as intenções.
Isso importa ao
entendimento da proliferação de sons com a qual Iara Rennó presenteia o ouvinte
do disco Macunaíma Ópera Tupi (2008). Tradução intersemiótica do livro Macunaíma
– o herói sem nenhum
caráter,
o disco de Iara musica e vocaliza trechos levando o ouvinte a empreender uma
viagem etno-antropo-semio-musicológica tal e qual a organizada pelo musicólogo
Mário de Andrade na seminal Missão de Pesquisas Folclóricas. O disco é o
resultado das anotações afetivas a partir da leitura de Iara sobre o livro.
Notas sobre notas, somos convidados a navegar com Macunaíma pela diversidade do
Brasil sonoro. Turistas aprendizes que somos. Justapondo música erudita e música
folclórica, bem como funk, eletrônico, sem juízos de valor, mas pelo prazer do gesto
brasileiro, o disco explicita o vigor plural e étnico do país. E o conjunto
resulta em ritual sincrético: violino e tambor, eletrônico e cordel, psicodelia
e cantigas folclóricas, o Tupi e o alaúde. Embolada, repente, rap.
Difícil definir. Melhor sentir e reconhecer na (pro)fusão os rascunhos de
Brasil.
Ao extrair do livro
reconhecidamente importante ao cânone literário brasileiro os trechos e versos
que compõem as canções do disco, Iara promove, via instinto caraíba, a valorização
da antropofagia como signo estético e artístico. Além de devolver às palavras a vocalização contida nelas antes
de Mário de Andrade as fixar no papel. Iara revocaliza lendas, mitos e rituais
indígenas, africanos e portugueses com a mesma perspicácia rapsódica engendrada
pelo autor do livro. E, assim, a “ópera tupi”, a “odisseia” de Mário se
(re)traduz em veículo da tradição vocal e popular. Como o autor anota ao final
do livro: “Me acocorei em riba destas folhas, catei meus carrapatos, ponteei na
violinha e em toque rasgado botei a boca no mundo cantando na fala impura as
frases e os casos de Macunaíma, herói da nossa gente” (p. 129).
Traindo a tradição
para manter a beleza da tradição, Iara copia, recorta, cola, mistura a “fala
impura”. “Bamba querê”, por exemplo, incorpora a cadência das aliterações
presentes no texto de tal modo que fica difícil
para o ouvinte imaginar outra rítmica senão a criada e inventada por Iara. É na
dança do orixá Iemanjá no terreiro que Iara se mira para construir a canção e
plasmar a imagem do cavalo possuído diante do ouvinte.
Iara Rennó antologiza,
em tom mario-andradiano, exatamente os versos vocalizados para montar a canção
“Bamba querê”. A querência de Iara desterritorializa, remelexe, bambeia
extratos sonoros para (re)apresentá-los encapsulados em forma de uma canção
una, núcleo duro do país de semiologia macunaímica. E, assim como Haroldo de
Campos anotou sobre o livro, “no coquetel, porém, havia método” (1973, p. 79),
no canto de Iara – ou seria da Iara (sereia)? – há a aplica鈬o do método daquilo
que podemos chamar, juntos com José Celso Martinez Corrêa, de “macumba antropofágica”.
Desse modo, a “linhagem rabelaisiana” presente no livro é restaurada por Iara
na canção, no disco: do cruzamento de várias sintaxes ao protagonismo da voz, passando
pelo além do bem e do mal nietzschiano.
Referências:
CAMPOS, Haroldo. Morfologia do Macunaíma.
São Paulo: Perspectiva, 1973, p. 79.
CAVARERO: Adriana. Vozes plurais:
filosofia da expressão vocal. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2011.
FERREIRA, Evandro Affonso. Minha mãe se
matou sem dizer adeus. Rio de Janeiro:
Record, 2010, p. 45-46.
PINTO, Sérgio de Castro. Zoo imaginário.
São Paulo: Escrituras Editora, 2005, p. 20.
*
Escrever com a boca: violação da palavra e liberação dos sentidos prisioneiros na poesia de Ghérasim Luca.
Laura Erber
Introdução
Se a
poesia do último século pode ser lida nas múltiplas maneiras de responder à
pergunta “como sustentar uma voz?”, em Luca, a resposta se oferece na busca de
uma abertura à plasticidade sonora e contraditoria da língua: “o som errante
opera: o milagre das curvas em zig zag” (LUCA, 1997, p. 35). Inventor do
Não-Édipo, de si mesmo e de uma física elementar da linguagem, Ghérasim Luca é
a assinatura de um poeta cujo lugar na poesia de língua francesa é muito
singular. Esse nome, que, aliás, não pode ser dissociado de um certo sotaque,
é, também, a história de um abandono que vai da “demissão das origens” a uma
poética da voz – redescoberta dos humores da palavra falada. Seu percurso se
articula em torno de um triplo abandono: abandono do nome próprio, da língua
natal e da nacionalidade. Luca foi apátrida desde os anos 50, viveu sem
registro oficial na França até 1994, ano em que morre suicidando-se no Sena.
Sua escrita põe em prática um modo de se apoiar no próprio desequilíbrio da
língua, revelando as virtualidades e ressonâncias sonoras de cada palavra. Na
exploração do caráter negativo da linguagem, sua escrita conquista um ritmo que
não admite os caprichos do drama melancólico, trata-se de uma linguagem que não
se submete à ilusão da captura e ri das fantasias de identificação. Estamos
longe do sofrimento moderno derivado da tomada de consciência da precariedade
da linguagem. Em Luca a afirmação da precariedade se revela um meio de
subverter a fixidez das estruturas de produção e transmissão de sentido. A
partir dos anos 60, sua prática textual vai criar meios de inscrever a voz no
poema, a escrita será então utilizada nos limites do fato literário convidando
a outras formas de interação entre leitor e texto. A performance vocal
evidencia em ato a violência mas também o humor do corpo-a-corpo com a
linguagem.
1
O balanço da língua (ou: o francês rebolando)
Na
contramão da exaltação moderna do fantasma do mutismo – tentação órfica que
assombra a literatura, segundo Roland Barthes –, a voz de Luca se afirma em
ritmo, respiração e silêncio. Num livro de 1942, Un loup a travers une
loupe, que reunia poemas em prosa escritos na Romênia durante a II Guerra,
Luca se referia a uma “necessidade imperiosa de escrever com a boca” (LUCA, 1998,
p. 85). Nesse mesmo livro, a respiração aparece associada a uma experiência
sensual de desestabilização: “E é pela voluptuosidade de perder o fôlego, as
dimensões e as afirmações certeiras, que eu te respiro, oh amada – meus
pulmões: um trapo de renda no bico de uma águia” (LUCA, 1998, p. 31). Na sua
poesia a passagem do escrito à performance vocal guia-se pela necessidade de liberar
a sonoridade, e não pela simples vontade de interpretar performaticamente o
texto escrito. Trata-se, sobretudo, de agir sobre a palavra, a voz funcionando
aí como um instrumento de operação sobre a língua, vocalizar é um gesto que
abre, que desfigura, que subverte a sucessividade do escrito.
A performance vocal será nessa poesia um modo de perturbar o
fluxo verbal, produzindo uma gagueira poética que envolve fisicamente o leitor
na busca de uma experiência que não se contenta com a presença fixa da palavra
impressa. A eficácia dessa poética deve-se, justamente, ao fato de que, nela, o
poeta se coloca como alguém que age sobre a palavra, que interfere, quebra e
recompõe
a
matéria sensível da língua. Mas a violência material sobre a língua será, para
Luca, um meio de exercer uma força ainda mais violenta sobre o corpo simbólico
da linguagem. Um novo corpo da língua é
buscado “praticando o boca-a-boca de palavra a palavra” (LUCA, 1998, p. 85)
Nesse boca a boca, Luca elabora um uso intensivo da repetição. É o que leva
Deleuze a incluir essa poesia entre as escritas da gagueira no ensaio dedicado
ao tema em Crítica e clínica. Deleuze refere-se a escritores que não
tomam a língua como um sistema fixo mas como um campo em constante variação. A gagueira
seria então não mais a patologia que bloqueia a fala, mas um outro modo de
escrever. A Linguística enquadra a gagueira como uma afasia, um distúrbio que
afeta o fluxo da fala e da enunciação e consequentemente prejudica o desempenho
do falante. Nas afasias – excetuando aquelas decorrentes de deficiências
mecânicas – é sempre a funcionalidade linguística dos fonemas que é transgredida,
isto é, há uma transgressão das leis que definem o valor distintivo dos
fonemas. Rompe-se aí aquilo que em linguística chama-se “lei de solidariedade
irreversível” que determina a ordem de sucessão fonética em cada palavra e a
escolha de palavras na frase. Em clássico ensaio sobre o tema “linguagem infantil
e afasia” Jakobson reconhecia existência de transgressões também nos falares
considerados normais, e usa o exemplo da palavra na ponta da língua. Nessa
situação o falante não consegue recordar de uma composição fônica específica
então acaba provocando um deslizamento sonoro que o leva a outra palavra,
foneticamente semelhante. Embora reconhecesse que a afasia pode diluir as
superestruturas da língua e redistribuir funções linguísticas Jakobson e a Linguística
de modo geral vê a afasia como um bloqueio. A prática de Ghérasim é o contrário
de um bloqueio, é o contrário da dificuldade de alcançar a pronúncia completa
de uma palavra; no seu caso é o gaguejar justamente que propicia a produção de
enunciados poéticos, é uma proliferação sonora que faz com que as palavras se
transfigurem umas nas outras, sem que seja possível distinguir qual delas é a
matriz e qual é a derivada. Daí porque Deleuze insista em que não se deve
confundir essa gagueira poética com um tipo de mimetismo do verdadeiro gago – o
que significaria permanecer no campo das representações.
Foi no livro Héros-limite de 1953 que a repetição
apareceu pela primeira vez como um modo de desfazer o sentido progressivo de
cada verso. É o que se nota no poema “Le rêve en action” (O sonho em ação)
incluído nesse livro. Transcrevo aqui um pequeno trecho:
la beauté de ton sourire ton sourire
en
cristaux les cristaux de velours
le
velours de ta voix ta voix et
ton silence ton silence absorbant
absorbant comme la neige la neige
chaude
et lente lente est
ta
démarche diagonale
(...)
(LUCA,
2001, p.48-49)
Mas
foi no poema “Passionnément”, incluído em Le chant de la carpe (Le
Soleil Noir, 1973) que Luca tirou as máximas consequências da violação da
palavra pela voz. Se em “Le rêve en action” as repetições ainda respeitavam a
integridade de cada palavra, isso já não irá acontecer em “Passionnément”:
pas
pas paspaspas pas
pasppas
ppas pás paspas
le
pas pas le faux pas le pas
paspaspas
le pas
paspaspas
le pas le mau
le
mauve le mauvais pas
paspas
pas le pas le papa
le
mauvais papa le mauve le pas
paspas
passe paspaspasse
passe
passe il passe il pas pas
il
passe le pas du pas du pape
du
pape du pas du passe
passepasse
passi le sur le
le
pas le passi passi passi pissez sur
le
pape sur papa sur le sur la sur
la
pipe du papa du pape pissez en masse
passe
passe passi passepassi la passe
la
basse passi passepassi la
(LUCA,
2001, p. 170)
Em
“Passionnément” a gagueira se complexibiliza, a retomada dos elementos já não
mantêm ilesa a fisionomia da palavra. O poema encena a própria configuração do
espasmo poético que culmina em “je t’aime passio passionément”. Cada vez que
uma palavra se compõe ou atinge a sua forma usual, o autor novamente a
desmonta, recombinando-a e relançando-a numa espécie de fluxo metamórfico que
desintegra suas unidades mínimas (fonemas e morfemas). A insistência no fonema “pa”,
é explorado no interior do poema tanto sendo uma sílaba de papa (papai), como
seus homófonos “pas” (não) e “pas” (passo). O procedimento repetitivo, nesse
poema, revela que a própria linguagem entrou em estado de desequilíbrio, e por
isso a língua só consegue avançar tateando os fragmentos sonoros e suas
possibilidades combinatórias. Luca cria assim uma constelação de sentidos que
nunca se fecha ou se pacifica; mesmo quando o poema termina, tem-se a impressão
de que, virtualmente, ele continua. A ambigüidade das seqüências de sons não só
impedem a leitura unívoca como produzem um outro encadeamento sintático e um
outro princípio de formação das palavras. O que estou sugerindo aqui é que a
repetição, tal como Luca a utiliza, subverte a etimologia filológica tradicional
e promove um outro modo de engendrar e de produzir sentido.A poesia passa a ser
então “uma ficção suprema”, para usar a expressão do poeta Wallace Stevens –
ficção aqui como invenção de uma língua gaga. A gagueira rompe a unidade
semântica e sonora das palavras tal qual ensina a boa gramática francesa. Em
certo sentido, trata-se de violar a imagem da língua, torná-la estranha, esquiva,
irreconhecível para seus usuários e para si mesma, mesmo se apenas por alguns
instantes, enquanto durar a experiência do poema.
2
Desfigurar, transfigurar, abrir
Num
texto escrito na década de 40, Andróide contra Andrógino - 11
aparições do triplo sob as ruínas do duplo, Luca já expressava a
necessidade de se tornar irreconhecível. Essa ideia atravessa vários de seus
textos e sugere que a escrita se tornou um campo para a invenção de um sujeito não
mais regulado pela cadeia hereditária, um sujeito cujo corpo tenta se
desvencilhar do olhar especular, ou seja, a linguagem trata de engendrar um
sujeito que já não reconhece a si mesmo dentro dos limites da unidade do seu
corpo: “Transfigurar o rosto da amada e o nosso próprio rosto até ultrapassar o
espelho. Furar os espelhos. Não mais se reconhecer”. Entretanto a violência do
gesto que fura espelhos não se esgota no ato destrutivo. Esse trabalho com a
escrita (mas também com a imagem) visa abrir as “prisões do ser”, tornando o
poema um lugar de operações liberadoras, que passam
pela perda de si, pelo erotismo e pelo humor negro. O gesto de desfigurar a
unidade visual aparece igualmente numa série de trabalhos plásticos realizados
por Luca ao longo de vários anos e intitulados Cubomanies (Cubomanias).
Nessas colagens os corpos aparecem despedaçados e irremissíveis a uma imagem
plena, frustrando o desejo do espectador de colar os fragmentos num todo compreensível
ao olhar. Também no texto inédito Androïde contre Androgyne, onze
apparitions du triple
sur les ruines du doublé (Andróide contra
Andrógino, onze aparições do triplo sobre as ruínas do duplo) Luca apresentava
uma Estrela de David (associado à idéia de proteção na cultura judaica) desmembrada
sugerindo que a abertura dos triângulos justapostos e “sufocantes” de que a
figura é composta pode agredir a rigidez do destino histórico e de suas redes
de proteção simbólicas.
A partir dos anos 50 esse gesto de desfiguração recai sobre
o corpo da língua, surge então uma escrita que francamente desfaz a identidade
e a unidade gráfica e semântica das palavras. Em L’amour de la langue,
Jean-Claude Milner (1998) sugere que tomemos a língua como o núcleo que, em
cada uma dos idiomas, suporta simultaneamente sua unidade e sua distinção,
equilibrando-se na deriva
dessa não-identidade. Deleuze afirma algo semelhante ao dizer que o
multilinguismo não é a possibilidade de se dispor de diversos sistemas
homogêneos em si próprios, mas “é antes a linha de fuga ou de variação que
afeta cada sistema impedindo-o de ser homogêneo.” (Deleuze, 2004, p. 15).
Talvez exista uma relação fundamental entre a recusa desse
princípio de não-identidade e a necessidade que experimentam os gramáticos de
organizar as transformações da língua numa grade de leis e exceções, e os linguistas,
por sua vez, a sistematizá-la enquanto objeto, através de conceitos que tentam
dar conta dos estorvos na regularidade das transformações da língua. Num
sentido inverso, a poesia
será para Luca um modo de afirmar a língua como um campo de produção de equívocos.
Daí o poeta privilegiar os procedimentos que contribuem para reintegrar o
equívoco no interior das enunciações, convocando paradoxos que geram situações
indecidíveis, em que a construção de sentido se ramifica de tal modo que
desorienta a leitura. Alguns de seus títulos são O vampiro passivo, O
turbilhão que repousa, A morte morta. Cito: “Em nome da antinomia
frenética e deliciosa, o anti-tu é um tatu esquizofrênico e único” (LUCA, 2001,
p. 30). O paradoxo dribla a fixação de sentido pela proliferação de um excesso
de significação contraditório, sem que nenhum dos elementos em contradição impere
sobre o outro e no caso de Luca a voz será uma importante aliada nessa busca do que
ele mesmo chamou de “principio de incerteza da linguagem”.
Os receitais de Luca não são “cartas abertas” à comunidade
humana, a voz que neles se oferece não é necessariamente uma voz gregária que
viria superar a solidão do escrito. A vocalização do poema é antes a afirmação
de um gesto criativo que convoca o outro, física e mentalmente, não para oferecer-lhe
a ilusão de uma comunhão, mas transportando-o, fazendo-o fluir através do corpo
da voz. Seus recitais, e o registro sonoro dos mesmos, revelam a irrupção do
sentido no índice erótico da voz. Outro aspecto que se explicita no encontro
com a materialidade da voz é o humor. Na sua performance vocal o riso volta-se
sobre a própria linguagem, e não sobre um objeto fora ou distante dela. O humor
em Luca não é cínico, ou seja, não é produzido pelo escárnio em relação a um
outro (ou a um outro pensamento). O seu riso é demolidor porque celebra o
acaso.
Em A lógica do pior, o filósofo Clément Rosset
oferece uma distinção bastante lúcida entre ironia e humor. Rosset identifica
em ambas estratégias um mesmo investimento destruidor, porém, no primeiro caso,
o humor volta-se para objetos específicos, revelando uma certa mesquinhez no ataque,
enquanto, no segundo, há uma destruição mais geral, regida pelo acaso e não
pela intenção em relação a um objeto específico. O acaso aqui não deve ser
tomado como afirmação do aleatório, mas como o que age fora de uma lógica
determinista ou pré-determinada. Para Rosset, à ironia corresponde o que ele
designa por riso largo, que traz em si, mas de forma invertida, as
razões que provocam o riso. Assim, o irônico “pode destruir tudo o que lhe
compraz, mas com a condição de deixar entender as idéias em nome das quais ele
age, os princípios sobre os quais se apóia para proceder a suas execuções”
(ROSSET, 1989, p. 191-192). Já o riso exterminador do artista seria, ao mesmo
tempo, mais destruidor e mais criativo, ele produz um riso curto que não
se prolonga na compreensão intelectual das suas razões, ou seja, um riso que
não oferece nada que pretenda justificá-lo. É isso que faz dele um escândalo e,
como assinala Rosset, sua violência é mais agressiva porque abole o sistema de
significações no qual a ironia ainda se apóia, embora realize a sua inversão.
A
voz, uma outra escritura possível?
A
noção de escritura, tal como Barthes a formulou, movia-se pela crítica à
supremacia da oralidade sobre a escrita. “A escritura deve permanecer ligada,
não à voz, mas à mão, ao músculo: deve instalar-se na lentidão da mão”.
(Barthes, 2000, p. 11). A elaboração inicial da noção de escritura está
vinculada portanto a necessidade de vivificar o gesto manual que subjaz ao ato
de escrever. É o que o levou a voltar-se tanto para escritores quanto para
artistas visuais como Cy Twombly que introduzia em suas pinturas os traços e
códigos da escrita verbal. Mas, se para Barthes, o que havia de mais vital na
noção de escritura era a viagem que ela promove – viagem do corpo através da
linguagem – tornou-se inevitável que a partir de certo momento ele mesmo
tivesse de repensar a oralidade dentro de um novo horizonte de reflexões. Na
entrevista “Os fantasmas da ópera” (2004), Barthes afirmava que o grão da voz
implica uma certa relação erótica entre a voz e quem a escuta. A voz perderia
momentaneamente sua finalidade funcional para se erotizar, emitindo algo que é
liberado no dizer, mas que não se reduz ao que é dito. Talvez a voz de Luca
seja esse convite a escutar o que a voz diz ao perturbar a articulação de
sentido, sem no entanto aboli-lo por completo. Barthes sugere que, do mesmo
modo que conseguimos aprender a ler a “matéria” do texto, poderíamos começar a
escutar o grão da voz, a sua significância, tudo o que nela vai além da
significação, como, por exemplo, a sensualidade do sentido. A poesia de Luca é
reveladora da potencia da voz como instrumento de tensão poética, essa voz não
se contenta com reinscrever o erotismo na linguagem, mas assume o risco de
transformação do próprio sujeito da escritura pelos seus modos de enunciação, constituindo,
como afirmou certa vez o próprio Luca um meio de “transgredir a palavra pela palavra
e o real pelo possível” (Espólio Biblioteca Jacques Douceut, pasta Pp 12).
Referências
Bibliográficas
[1]
BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
462p.
[2]
______. O grão da voz. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 515p.
[3]
DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo: Ed.34, 1997. 176p.
[4]
JAKOBSON, Roman. Language enfantin e aphasie. Paris: Flammarion, 1980, 187p.
[5] LUCA, Ghérasim. Un loup a
travers une loupe. Paris : José Corti, 1998, 91p.
[6]
______. Héros-Limite suivi de Le chant de la carpe et Paralipomènes. Paris:
Gallimard, 2001.
309p.
[7] ______.La voici la voie
silanxieuse. Paris: José Corti,1997. 59p.
[8] ______.Androïde contre
Androgène: onze apparitions du triple sur les ruines du double. Espólio,
Biblioteca
Jacques Doucet, pasta GHL ms13.
[9]
ROSSET, Clément. A lógica do pior. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.
198p.
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