Certa
vez, Mariano Marovatto, diante da cobrança de uma resposta de mais de quinze
linhas (em uma dessas seções de formspring do mundo), comentou, não se sabe se
ironicamente ou não, que desde cedo encontrou dificuldades em expor suas ideias
por inteiro, ou desdobrá-las passo a passo. Na maioria das vezes, tende a
simplesmente apresentar a réplica da conclusão a que chegou, tendendo a uma
escrita caracterizada pela síntese. Lá, seguia, numa espécie de esforço
analítico único, comparando esse modo de dizer, ou pensar, a uma prática
poética, em que as coisas valem (no verso) justamente por estarem em suspenso –
o esforço do leitor é o de buscar as guias ou linhas de força que amarram a
força humorística, irônica, ou estranha do que se diz. Talvez pudéssemos
escutar também algo desse modo de funcionar no seu fazer de músico – como se as
diferentes conversas e temas musicais por que ele perpassa, em pesquisas, em
trocas cotidianas, etc. estivessem condensadas em seus discos. E o ouvinte
tivesse o trabalho de deixar a matéria sonora ir decantando aos poucos, e entre
um vislumbre e outro alcançar as diferentes camadas de leitura oferecidas em
seus dois discos.
Aqui,
apresentamos, na íntegra, o seu disco mais recente, lançado há uma semana
através da Internet, seguido de um texto de pequenas anotações, ou
concentrações de impressões sobre o mesmo, assinado por Lucas Matos. Mariano
também nos deu alegria de publicar dois poemas inéditos, junto com uma pequena
coletânea de poemas de dois de seus livros Mulheres
Feias Sobre Patins (2012) e Amoramérica
(2008), feito em conjunto com os outros poetas (Augusto Guimaraens Cavalcanti e
Domingos de Guimaraens) que compõem Os
sete novos. Por fim, selecionamos três canções do primeiro disco, Aquele amor nem me fale (2010),
apresentado junto com um texto de Leonardo Davino sobre a (re)interpretação de Não tem lua.
***
Dois poemas inéditos
um almoço mal
realizado
na metade do dia
pernas ordinárias
de homens e mulheres
vão e vêm num
exercício
de piscina a
rua turva
arrastando o estômago
enrugado no final dos
paralelepípedos a
anoréxica
avistou um navio
cortando
as cabeças pode ser
que
o acontecimento
atravessando
o dia facilite a
digestão os olhos
pro céu que se
aproxima escuro
vermelhíssimo e
cartilaginoso
feito a
morte de um tubarão
*
Constelação
é só uma palavra-chave.
Não me force
o dicionário tijolo
de um grande
muro.
Um homem sem
lua, luneta.
Palavra sob
a sombra de todos os tijolos.
Pratos
limpos e brancos garfos, taças e bancos.
Um homem
golpeia seu próprio estômago,
tapeia a
fome dos olhos concêntricos,
espiralados,
castanhos enojados.
Todos de pé
esvaziando a nave.
Outra
palavra-chave lá fora.
***
Praia (2013)
*
Ouvindo
Praia: três anotações/impressões
sobre o disco de Mariano Marovatto.
Por
Lucas Matos
I.
A Lagoa de Araruama, na época, era própria
para banho – ainda que tivesse lodo suficiente para tornar a coisa toda um
pouco intragável, no fundo era o que seus pés tocavam ao invés da areia, e por
vezes viam-se algumas estranhas composições boiando – e um dos meus pais havia
perdido a aliança entre as marolas da Praia Linda. Os meus avós por parte de
mãe tinham uma pequena casa alguns minutos distante do centro dessa cidade da
Região dos Lagos, e nós invariavelmente passávamos parte do verão lá, andando
de bicicleta e nos revezando entre a Praia do Abel e essa, onde o caso se deu.
Aparentemente, os nomes de praias em Araruama depõem a ingenuidade profunda ou
absurda – quase que uma inocência – que surge nos homens quando diante do mar.
As crianças que éramos na época nos revezávamos entre tentar em vão procurar o
objeto perdido naquelas águas de tom mais escuro, e cantar inutilmente: “Perdi
meu anel no mar, não pude mais encontrar”. Mais tarde, nós cataríamos conchas
na areia da praia, e isso seria bem pouco consolador embora cumprisse de algum
modo com a promessa da canção.
Não
sei exatamente por que começo com essa história para tentar dar conta de falar
do que, ou em que ponto a nova incursão de Mariano Marovatto pelo universo
musical me alcança. Talvez haja um modo misterioso através do qual essa
lembrança de algo que eu poderia descrever como um inverno ao avesso encosta ou
esbarra em versos como os de Alice Sant’anna: “te ver no inverno/ é como verter
pela metade/ meus pés afundados/ na areia, às cinco a luz/ é pouca: hoje é
terça de tarde/ e não me sinto de férias/ nesse verão ao avesso/ te dobro um
barquinho/ pra navegar”. Quando sua voz surge, sozinha, dando corpo à faixa que
dá título ao disco Praia, a sensação
é a de reencontrar um tema de cantiga infantil – a voz traçando saltos e
subidas melódicas contra o silêncio deixa a nu uma certa delicadeza todavia
áspera, difícil de ser apreendida por nossos ouvidos senão numa certa
profundidade. O tema do encontro – que traz uma promessa de calor, ou um
consolo a meio passo – contrasta com a luminosidade da estação e uma
dificuldade de descanso combinada a uma posição de imobilidade que ganha peso
na frase final: “te dobro um barquinho pra navegar”. Contração e expansão, ou
contração para a expansão parece ser a forma pela qual encontro se torna
possível, trazendo luz e movimento ao que era sombra e fixidez. Contudo, se o
tema do que se dá, ou o que se deseja, num encontro com o outro perpassa o
disco (“If you wanna know me, you have to find me”, “Bemol pra lá de mim/
sonhei com você”, “Me conta agora/ o teu segredo”) é somente como contraponto
de um certo ilhar-se da voz, ou na voz (a voz enquanto ilha em meio a distintas
camadas sonoras) ou num pensamento isolado, como bem assinala Ismar Tirelli
Neto em sua apresentação da obra (que pode-se ler aqui aqui). Outra forma
desses dois polos se redistribuírem ao longo das faixas, dando movimento à
figura que as organiza, é a de uma divisão entre o mais estranhado – e
exacerbado – de recursos sonoros eletrônicos e desafiadores e o mais simples,
como uma canção de ninar.
II.
Não
tenho certeza se há comentário suficiente acerca da relação entre a canção e os
espaços geográficos em que ela surge, ou que ela indaga (seria possível uma
antropologia da música do litoral diferenciada das sonoridades da música de
diferentes relevos do interior do continente?). Mas talvez estejamos diante do
material que nos suscite a questão de como a praia pode funcionar como a forma
através da qual a canção se pergunta pelos seus limites: o som do mar (quando
puxa diferente de quando arrebenta) insistindo sobre os modos que os homens têm
tanto de cantar quanto de compor, e arranjar. Digo isso, apenas como estratégia
para melhor situar a ponte algo despropositada que pretendo sugerir: a de que o
diálogo que o disco propõe, aquilo para onde ele se dirige e pergunta não é o
conjunto de explorações do rock e seus diferentes caminhos hodiernos que
parecem influenciá-lo de modo mais imediato, mas Canções Praieiras, de Caymmi, obra de 1954.
A princípio, a não
ser pela semelhança de conteúdo sugerida no título, não poderia haver dois
objetos mais distintos: enquanto em Caymmi, a voz é profunda e grave, e tudo
que sugere o espaço sugere igualmente a agregação entre os homens (apesar da
insistência algo ameaçadora, algo trágica da morte) e uma simbiose entre a
cultura e a natureza; em Mariano, as vozes são suaves, ou extrapolam agudos, quase
sempre como efeitos de superfície (como descolando-se, ou deslocando-se das
partes mais densas do cantar), e tudo que sugere o espaço é ou sonho, ou encontro
nas raias de um inusitado, vivendo-se o oposto de uma comunidade. Marca-se um
avesso ao todo da cultura, e uma impossibilidade de qualquer natureza da praia,
que se encontrasse com o violão e com o canto. Igualmente, enquanto Caymmi se
dirigia evidentemente ao rádio, e ao seu formato, aqui se perfaz uma recusa do
rádio que é simultaneamente uma recusa de uma maneira de existir da canção (“I
don’t wanna play on your radio/ I don’t wanna show you what you know”, “derruba
o prédio/ desliga o rádio”, “They’re beating the town witch to death/ on the
graveyard down by the roadside/ the same happens to the song”).
É como se fosse
cavado um desvio no modo solar de Caymmi, no que há nele de erguer a canção do
fundo do mar, e fôssemos lançados de volta a uma ambiência propriamente marinha,
como quem diz: “cantemos, pois, debaixo d’água”.
III.
Para onde vou, meu pensar – é em Botões que o que vinha se insinuando de
modo ainda muito fino atinge o seu centro, ou encontra o seu prumo. Logo, nos dois
primeiros versos, uma espécie de abandono se dá. Mas abandono de quê? De tudo,
de qualquer acontecimento, qualquer evento, o sujeito se subtrai da equação, do
esquema (do sistema?). A força se anuncia logo de cara: “Pois que apertem seus
botões/ para tudo acontecer/ mas que façam bem longe daqui”. Tudo que acontece,
qualquer fenômeno, não é senão produção de botões que se apertam, de programações
que se perfazem. O problema é: onde pode ser aqui? A praia, como promessa de
real que se contraporia ao que acontece por meio de botões, seria uma resposta
muito duvidosa (pelo desenrolar da canção, e por toda fluência do disco).
Na
segunda estrofe, a imagem dos botões volta pela menção à guerra, parecendo
sugerir que todo pressionar de botões é uma detonação de alguma espécie. Quem canta
se reconhece entre a precariedade e insatisfação do isolamento e a necessidade
de tomar o pé de seus caminhos, legar a si suas escolhas. Na terceira, ele já
se foi, e qualquer estratégia para atingi-lo, seja pelo mais vital ou
sentimental órgão, será ineficaz. (Talvez seja curioso apontar como essa última
letra se contrapõe à primeira: se no início, se demandava de alguém a quem se
dirige e que escuta, a necessidade da experiência do encontro como forma de
acesso/conhecimento do sujeito que canta; ao fim, é negada a uma terceira
pessoa indeterminada (“eles”) a possibilidade desse mesmo encontro). Não há,
então, acesso (túnel, ou ponte) ente as diferentes narrativas (jornais, TVs)
desse mundo e para onde o sujeito se desloca.
E
aqui, talvez, um retorno, a insistência da pergunta: se o “meu pensar” aparece
como um destino, um aonde chegar, a partir de onde se está falando? Que aqui é
este aqui? A resposta que talvez possamos sugerir é: “o canto”. O canto como
porto de onde parto para encontrar o meu pensar.
***
De Mulheres Feias Sobre Patins (7letras,
2012).
Todos
os percursos impossíveis
Estou na praia, mas penso na Transiberiana
que está longe de ser
uma garota russa, estilo Tsvetáeiva
psicótica e ninfomaníaca
presa numa ilha das Cagarras
esperando um príncipe de caiaque.
*
O
domingo mais triste dos últimos anos
Moro num quarto e sala cuja metade
está ocupada por Benito di Paula e seu
piano de cauda.
*
Primeira
vontade
Ano: 1986
Local: dead end world
Personagens: east end boy & west end girl
Como foi: sentada ela me dava a mão na
altura do seu nariz pequeno e descascando no contraluz, sorria bem loira. Eu tinha
uma galera e era o líder, ela a namorada era a mais velha a mais alta a mais
bonita. Chuva fina nos becos, fumacinha saía da boca, coragem saltava dos
músculos, amor nos tempor de super-heróis. O beijo era complicado e diferente.
*
Poética
Tenho o brinquedo mais bobo do mundo.
Às vezes acham que eu mesmo inventei.
*
Tenho
13 amigas gordas
Tenho 13 amigas gordas que frequentam
sites de astrologia.
Algumas estão encalhadas desde o primeiro
semestre
da faculdade,
outras frequentam o grupo do terço
ou já foram batizadas no Johrei.
Mas elas nem são tão gordas assim.
*
Na
casa do Gilberto
Nunca dormi na casa do Gilberto.
Houve uma única vez que o lençol estava
macio
e a barafunda do ventilador era um barco
zarpando no meio do sonho.
Mas o Marcelo cismou com o espírito do tio
na janela,
levantou-se e quis ir embora. Desembalei-me
do barco
desci quatro andares de elevador e nunca
mais
estive numa boa com espíritos.
*
Fui a
Goiana
Vó, fui a Goiana.
Vi a igreja, o pelourinho
e a rua desmoronando.
Nem chuva, nem jardim, nem memória.
Quis que alguém me dissesse
que eu era ilustre visitante
que o Zé Lins do Rego era meu parente
O primo
que casou com ciclana mas amava a cunhada
não importa mais.
Entrei no mercado
pra comprar um treloso
lá fora passou uma boiada ou a Curica. Não
sei,
não vi. Fui-me embora,
voltei pro Recife mas não gosto de lá
prefiro João Pessoa e Jacarepaguá.
*
Mulheres
feias sobre patins
As delícias podem ser:
coxinhas
pães de queijo
empanadas de camarão
rissoles de queijo e presunto
pastéis de carne
pastéis de festa
brigadeiros
bem casados e olhos de sogra
Empadas: com 30 minutos
Você também pode solicitar descartáveis
***
Três canções de Aquele amor nem me fale (2010).
*
Sobre
Não tem lua.
Por
Leonardo Davino
Certa vez, quando perguntado porque exerce
tão pouco sua verve de compositor, João Gilberto respondeu que já existia
muitas canções precisando de "conserto". E assim ele segue eliminando
tudo aquilo que considera excesso (gordura), para de chegar ao núcleo duro da
canção: ao (quase) silêncio.
Por princípio
estético, quando alguém se propõe a regravar uma canção, é preciso um
investimento amoroso e erótico para torná-la nova, de novo; é preciso iluminar
cantos que as gravações anteriores não tocaram: explorar outros significantes.
Só assim se consegue causar no ouvinte a experiência da novidade: da primeira
vez.
É o que acontece
com a gravação de "Não tem lua", de Durval Lélys, dada ao público por
Mariano Marovatto no disco Aquele amor nem me fale (2010). Aliás, um disco
feito para ninar amores; embalar desejos; e dar bandeiras líricas.
A referência a João
Gilberto aqui não é gratuita, basta observar o banquinho e o violão - imagem
icônica joãogilbertiana - na capa do disco de Mariano. Muito embora Mariano,
poeta, ao contrário de João, exerça o ofício de compositor: das nove canções do
disco apenas duas não é de sua autoria.
Em "Não tem
lua" temos um sujeito que canta uma certa "menina do mar". Ora,
ela não é outra senão a sereia que brincando na areia arrebatou nosso sujeito.
Ele mesmo, em momento de entrega, se diz "filho da terra" e pede para
que ela o leve com ele. Em quem mais a gravidade da lua interfere tanto além do
poeta e do mar - habitat da sereia: ela que gosta de ser presenteada com flores
e perfumes?
Se na versão do próprio Durval Lélis, que
tantos corpos suados de desejo e de folia embala nos carnavais, o sujeito dança
sua dor e delícia, Mariano ilumina o interdito e o dengo: plasma um sujeito
platônico: ela do mar, ele da terra. Mariano encontra outro tipo de
musicalidade e embalo: modulados pelo refinamento do lirismo.
Não tem lua
(Durval Lélys)
Não tem lua que faça você me amar
Não tem lua que faça você passar por mim
Não tem cheiro, nem flor
Nem perfume de amor
Não tem lua não, não tem lua
Menina do mar
Menina do mar, ê
Menina do mar
Menina do mar, ê
Tô louco de dengo pra te ver
Eu só quero um pouquinho te amar
Mas se a vida me leva no calor
Faço tudo se você me der amor
Menina do mar
Menina do mar
Menina me leva
Menina do mar
Menina do mar
Sou filho da terra
***
De Amoramérica (Por Os sete
novos, 7letras, 2008).
Opening
Night
Em Recife
Myrte Gordon
não obteve o mesmo êxito.
Ao atravessar bêbada a ponte de Maurício de
Nassau
o miasma
torceu sua alça intestinal
e o volvo se transformou em merda
seu último pedido de socorro.
*
Oceanside
Se alguém pudesse
verificar a existência
desses seis mega
pixels de nascer
do sol de uma praia
desimportante de Oceanside
Se alguém pudesse acreditar que tomo
água de coco numa praia desimportante
de Oceanside, sorvendo o doce salgado
da vida sentado na areia branca
desimportante de Oceanside
Se alguém pudesse me encontrar sentado
às seis horas da manhã numa areia branca
impossível de Oceanside, erguendo um coco
verde na mão com seus tantos – dois
dissabores de uma humanidade inteira
esquecidos ali, numa praia qualquer
de Oceanside se alguém pudesse
verificar às seis horas da manhã
a areia branca de Oceanside
Se alguém pudesse
às seis horas da manhã
sentar numa praia branca
desimportante de Oceanside,
Oregon, e não tirar uma fotografia
*
Dakota
do Norte
Meu bem,
é primavera em Bismarck,
o gramado é de um verde tão intenso
o céu de um azul tão azul
do tamanho exato
da solidão desse teto branco
do Leblon
*
Vinícius
about dating
A vida é a arte do encontro
embora haja 89 por cento
de desencontro pela vida
*
Bismarck
de novo, a passeio
E no meio do retorno
resolvo traçar uma linha reta
até o capitólio pálido do poder.
O carro está em ponto morto,
esta foto já existe e Frank O’Hara
estava certo quando disse
“Don’t complaint, my dear,
You do what I can only name”
***
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