Por Clarissa
Freitas
Toda essa postagem veio numa maleta surrada
e mais bela por ser surrada e mais importante por ser surrada e de Carlos Lima.
Carlos Lima, Luiz, é meu professor, poeta e amigo. Luiz entrega presentes como
entrega verdades: vão te cortar, vão te modificar e vão te fazer sorrir. Carlos
Lima é também um dos heroicos editores da revista Alguma poesia, que viveu entre 1978 e 1986, e que tem entre seu
acervo um importante ensaio de Ana Cristina Cesar sobre tradução, publicações
de diversos contemporâneos da década de 70 e traduções de poetas e escritores
internacionais pouco divulgados no Brasil até hoje. Em 1982, seu Anatomia da Melancolia foi premiado pela
Associação Paulista dos Críticos de Arte na categoria Revelação.
Um belo dia, Luiz me
tirou da maleta uma antologia de traduções suas de poetas surrealistas junto
com alguns ensaios importantíssimos sobre o tema. Aqui, uma pequena (talvez
primeira) parte dessa antologia – o paladar do surrealismo pela leitura e
tradução de Carlos Lima.
***
Trechos
do Ensaio Vanguarda e Utopia:
Surrealismo e Modernismo no Brasil (Carlos Lima).
A utopia é o coração da modernidade.
Somente relacionando a arte com a utopia, e utopia aqui é sinônimo de
revolução, é que poderemos compreender a arte do período que acostumamo-nos a
chamar de modernidade. A luta por um mundo mais justo e uma sociedade livre da
maldição da miséria foi a verdade que reuniu os mais importantes artistas,
poetas e escritores das mais diversas correntes estéticas da arte no início deste
século.
Dos olhos de
“Nadja” ao “Camponês de Paris”, os caminhos da revolta entrecruzaram-se com os
caminhos do surrealismo com os caminhos da revolução. É preciso assinalar que a
aventura terrestre do surrealismo fundou a sua ação na construção da utopia
concreta de uma literatura livre numa sociedade igualmente livre. Da superação
da vanguarda positivista futurista é que o surrealismo consegue elaborar a
construção da sua poética da utopia. Já o primeiro manifesto surrealista
afirmava: “Viver ou deixar de viver são soluções imaginárias. A existência está
em outra parte”. Amor, Poesia, Liberdade – três palavras incandescentes,
prontas para criar o homem novo, a nova mulher, o mundo novo. Mudar a vida,
transformar o mundo eram as palavras de ordem dos poetas e artistas no front da
utopia estético-revolucionária. Revolução na arte, arte a serviço da revolução.
Por isso Breton pode escrever: “Liberdade, cor do homem”. Isto é surrealismo,
filho bastardo da França católica positivista; filho legítimo da Comuna de
Paris e dos seus verdadeiros poetas, Rimbaud e Lautréamont, que forneceram os
principais elementos da poesia futura e de uma poética da utopia:
1) É preciso mudar
a vida (Rimbaud)
2) É preciso
reinventar o amor (Rimbaud)
3) O Eu é um outo
(Rimbaud)
4) É preciso ser
absolutamente moderno (Rimbaud)
5) O poeta tem que
se tornar vidente. O poeta torna-se vidente através de um longo, imenso e
estudado desregramento de todos os sentidos. (Rimbaud)
6) A poesia deve
ser feita por todos, não apenas por um. (Lautréamont)
7) Belo como o
encontro fortuito de uma máquina de costura e um guarda-chuva sobre uma mesa de
cirurgia. (Lautréamont)
8) A beleza será
convulsiva ou não será. (Breton)
9) O olho existe em
estado selvagem. (Breton)
10) Liberdade, cor
do homem. (Breton)
Que os surrealistas
pretenderam transformar o mundo é mais que sabido. Basta que pensemos o que foi
a ação surrealista no domínio da arte deste século. Na poesia, na literatura,
na pintura, no teatro, no cinema, o surrealismo sempre esteve a serviço da
revolução. Podemos repetir o primeiro manifesto, “nunca o medo da loucura nos
fará baixar a bandeira da imaginação”.
*
De
André Breton
A
união livre
Minha mulher com a cabeleira de fogo dos
bosques
Com pensamentos faiscantes de calor
Da altura da ampulheta
Minha mulher do tamanho da lontra entre os
dentes do tigre
Minha mulher de boca de fita e ramo de
estrelas de última grandeza
Com dentes marcados por um sorriso branco
sobre a terra branca
Com uma língua de âmbar e de vidros polidos
Minha mulher com a língua de hóstia
apunhalada
Com a língua de boneca que abre e fecha os
olhos
Com a língua de pedra inacreditável
Minha mulher de cílios de lápis de criança
Com sobrancelhas de fímbria de ninho de
andorinha
Minha mulher com têmporas de ardósia de
teto da serra
E vapor nos vidros
Minha mulher com ombros de champanhe
E com fonte na cabeça de golfinhos sob o
gelo
Minha mulher com dedos de acaso e ás de
copas
Com dedos de feno cortado
Minha mulher com axilas de mármore e de
silo
De noite de São João
De alfenas e de ninho de escalares
Com braços de espuma do mar e açude
E de mistura de trigo e moinho
Minha mulher com pernas de fusa
Com movimentos de relojoaria e de desespero
Minha mulher com brandas medulas de
sabugueiro
Minha mulher de pés iniciáticos
Com pés de pequenos estojos aos pés dos
calafates que bebem
Minha mulher com pescoço de cevada desnuda
Minha mulher com pescoço do Vale do Ouro
De encontros no leito da torrente
No seio da noite
Minha mulher com seios de abismos marinhos
Minha mulher com seios de crisol de rubis
Com seios de espectro da rosa sob o orvalho
Minha mulher com um ventre que agita o
leque dos dias
Com um ventre de grifo gigante
Minha mulher com dorso de pássaro que foge
verticalmente
Com dorso de mercúrio
Com dorso de luz
Com a nuca de pedra rolante e de giz
molhado
E de queda de um copo no qual se bebeu
Minha mulher de ancas de nacela
Com ancas de lustre e penas de flecha
E de tronco de plumas de pavão branco
De balança insensível
Minha mulher de coxas de quartzo e amianto
Minha mulher de coxas de dorso de cisne
Minha mulher de coxas de primavera
De sexo de gladíolo
Minha mulher de sexo arrumado e
ornitorrinco
Minha mulher de sexo de alga e bombons
antigos
Minha mulher de sexo de espelho
Minha mulher com olhos cheios de lágrimas
Com olhos de panóplia violeta e agulha
imantada
Minha mulher com olhos de savana
Minha mulher com olhos de água para beber
na prisão
Minha mulher com olhos de floresta sempre
sob a acha
No nível da água no nível do ar da terra e
do fogo
Sou
eu abra
As vidraças se quebram a sua volta
Não há mais espelhos há muito tempo
E as mulheres se desculpam por serem tão
belas
À aproximação dos pássaros que vão pousar
nas suas costas
Elas voltam docemente a cabeça
O assoalho e os móveis sangram
Uma aranha lança sua teia sobre uma moldura
vazia
Crianças com uma luz vagam nos bosques
Pedindo sombra aos lagos e às folhas
Mas os lagos silenciosos são muito
atraentes
Vê-se logo na superfície apenas uma pequena
luz que baixa
Sobre as três portas da casa estão pregadas
três corujas brancas
Em memória de amores desta hora
A extremidade de suas asas é dourada com as
coroas de papel
/ que tombam girando das árvores mortas
A voz desses estudos põe cardos nos lábios
Sob a neve o para-raios atrai as estrelas
gaviões
O
mata-borrão de cinzas
a Robert Desnos
Os pássaros se aborreciam
Se eu esquecesse alguma coisa
Soai o sinal dessas saídas de escola no mar
O que nós chamaremos de plantas medicinais
Começa a sair o resultado do concurso
Para saber quantas lágrimas cabem nas mãos
de uma mulher
1- Tão pequena
quanto possível
2- Numa mão média
Enquanto eu amasso este jornal estrelado
E as carnes eternas entram para sempre
Em posse do
cimo das montanhas
Eu habito selvagemente uma pequena casa em
Vaucluse
Coração carta de penhor
Sempre
pela primeira vez
Sempre pela primeira vez
Mal te conheço de vista
Entras à certa hora da noite num casa oblíqua à minha janela
Casa completamente imaginada
É aí que num segundo
Na intacta escuridão
Eu espero que se produza uma vez mais a
dilaceração fascinante
A dilaceração única
Da fachada e de meu coração
Quanto mais eu me aproximo de você
Em realidade
Mais a chave canta na porta do quarto
desconhecido
Onde apareces só
No início estás inteiramente fundida no
brilhante
Ângulo fugitivo de uma cortina
É um campo de jasmins que eu contemplei de
manhã
numa estrada próxima
de Grasse
Com suas colhedoras em diagonal
Atrás delas a asa escura pendente das
plantas indefesas
Diante delas o esquadro do encanto
A cortina invisivelmente levantada
Entram em tumulto todas as flores
É você possuída por esta hora longa demais
nunca tão confusa
como o sono
Tu como se pudesses ser
A mesma ou quase que eu não reencontrarei
talvez jamais
Pareces não saber que te observo
Assombrosamente não sei mais se sabes
Tua ociosidade me faz chorar
Uma nuvem de explicações cerca cada um dos
teus gestos
É uma caça ao mel
Há cadeiras giratórias numa ponte há
ramagens que te arranham na floresta
Há um vitrine da rua Notre-Dame-de-Lorette
Duas belas pernas cruzadas possuídas de
alto a baixo
Que se abrem no centro de um grande trevo
branco
Há uma escada de seda subindo pela hera
Há
Que me inclinar sobre o abismo
Da aliança sem esperança da tua presença e
da tua ausência
Achei o segredo
De te amar
Sempre pela primeira vez
O
marquês de Sade retornou ao interior do vulcão
O marquês de Sade retornou ao interior do
vulcão em erupção
De onde ele veio
Com suas belas mãos ainda rendadas
Seus olhos de menina
E esta razão em flor de salve-se quem puder
Desde que seja ele
Mas do salão fosforescente iluminado de
vísceras
Nunca deixou de lançar as ordens
misteriosas
Que abrem uma brecha na noite moral
É por esta brecha que eu vejo
As grandes sombras rachadas a velha casca
minada
Dissolver-se
Para permitir que eu te ame
Como o primeiro homem amou a primeira
mulher
Com toda a liberdade
Esta liberdade
Pela qual o próprio fogo se fez homem
Pela qual o marquês de Sade desafiou os
séculos
com suas
grandes árvores abstratas
De acrobatas trágicos
Capturados no fio virgem do desejo
*
De
Robert Desnos
O
anel de Moebius
O caminho que percorro
Não será o mesmo no retorno
Eu gosto segui-lo reto
Que me leva a outro mais perto
Eu giro em círculo e o céu cansa
Ontem eu era uma criança
Sou um homem agora
O mundo é uma piada sem hora
E a rosa entre as rosas
Nunca é igual a outra rosa.
Não
visto
Não visto o cometa
Não vista a bela estrela
Não visto tudo isto
Não visto o mar em flocos
Não vista a montanha ao contrário
Não visto tanto quanto isto
Mas visto dois belos olhos
Vista uma bela boca brilhante
Visto muito mais que isto
*
De
Paul Éluard
Entre
alguns poucos
a Phillippe Soupault
Seus olhos são todo um céu de lágrimas.
Nem suas pálpebras, nem suas mãos
São uma noite suficiente
Para que sua dor se esconda.
Ele vai perguntar
Ao conselho dos rostos
Se ainda é capaz
De jogar sua juventude
E ser na planície
O piloto do vento.
É uma questão de experiência:
Ele pega sua vida pelo meio.
Só que os pratos da balança...
A sombra
dos suspiros
Sono leve, pequena hélice,
Pequena, tépida, coração no ar.
O amor do prestidigitador.
Céu pesado de mãos, faíscas nas veias,
Correndo nas ruas sem cores,
Toma nos seus passos as calçadas,
Solta o último pássaro
De sua auréola de ontem –
Em cada poço uma só serpente
No entanto sonha abrir as portas do mar.
O rio
O rio que tenho sob a língua,
A água que não imagina, meu pequeno barco,
E, as cortinas baixas, falemos.
Ao
lado
A noite mais longa e a estada mais branca.
Lâmpadas estou mais perto de vós que a luz.
Uma borboleta o pássaro do hábito
Roda quebrada de minha fadiga
De bom humor arrumada
Sinal vazio e sinal
No leque do relógio.
A
palavra
Tenho a beleza fácil e sou feliz.
Eu deslizo sobre o teto dos ventos
Eu deslizo sobre o teto dos mares
Eu me tornei sentimental
Eu não conheço mais o condutor
Eu não passo mais seda sobre os espelhos
Eu estou doente de flores e seixos
Eu amo o mais chinês nas nuvens
Eu amo a mais nua nos abrigos dos pássaros
Eu sou velha mas aqui eu sou bela
E a sombra que desce das janelas profundas
Poupa cada noite o coração negro dos meus
olhos
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