Tudo que Yoko Ono parece preocupada em
promover com seu trabalho é a instauração de um vazio em que a imaginação das
pessoas possa se mover, e criar coisas conjuntamente. Por isso, ela se ocupa
muitas vezes de distâncias: entre a coisa e a imagem, entre a palavra e o som, entre
a ideia e a relação. Se é impossível que, no mundo físico, se encontre uma reta
que não seja um fragmento de uma curva, se duas perspectivas não podem se
fundir em um mesmo ponto para que pessoas diferentes tenham a mesma visão de
uma cadeira, essas situações podem ser criadas na mente – com a imaginação. Bem
como outras, mais complexas: a paz, por exemplo. Não se pode dizer definitivamente
que se trata de uma aposta pequena, ou de um pensamento alienante da arte –
embora muitos o tenham na conta de ingênuo, ou volúvel. Efetivamente, seja como
integrante do movimento intermedia e interdisciplinar Fluxus, seja ao lado de John Lennon, ou ainda hoje, com 80 anos, à
frente da Plastic Ono Band, Yoko
segue conduzindo uma reflexão acerca do mundo ao seu redor, sempre o indagando
a partir de ações que imaginam uma vida nova.
Ao
recolher testemunhos de mulheres que tenham sofrido alguma agressão por serem simplesmente
o que são, ao fazer uma torre para que se possa imaginar a paz em homenagem a
John Lennon, segue mostrando um caminho que muitos teriam na conta de impossível,
dados preconceitos de gênero e de cultura que parecem ter marcas sociais e
mentais profundas. (Não deixa de ser curioso, ou mesmo irritante, que em muitas
das controversas e infindáveis narrativas sobre seu relacionamento – criativo e
afetivo com Lennon – se atualize muitas vezes um imaginário tanto racista
quanto machista, em que o branco é visto como o que foi seduzido e desvirtuado,
degenerado, finalmente, nas suas características, diante da misteriosa,
insondável oriental).
Aqui,
fizemos uma seleção de seu trabalho, com dois filmes, um vídeo da famosa
performance “Cut”, e trechos de sua escrita retirados de Grapefruit (em tradução de 2008/2009 por Giovanna Viana Martins e
Mariana de Matos Barbosa Moreira, ambas da UEMG), que combina desde um
questionário às peças de instrução –
semelhantes a receitas ou a um tutorial contemporâneo para pintura, poesia,
dança, etc. – passando por anotações para uma palestra. A escrita de Yoko
apresenta uma imaginação surrealista, induzindo a um estado mental
diferenciado, meditativo. Além disso, selecionamos também desenhos de seu livro
recente Acorn e a canção usada na divulgação
de seu atual projeto Arising.
*
*
De Acorn (2013) - Traduções de Lucas Matos.
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Peça de Desejo III (2013). |
PEÇA DE DESEJO III
Sussurre seu desejo a uma nuvem.
Peça para a nuvem guardá-lo.
PEÇA DE DANÇA III
Tire suas calças
antes de brigar.
QUIZ III
Marque as alternativas que você achar
corretas.
Conversa em linha reta.
Uma reta é:
a) uma curva doente.
b) uma palavra desdobrada.
c) um ponto eriçado.
d) o que você quer apagar.
e) aquilo de que você se arrepende depois
de
cuspir no prato que comeu.
*
Trecho
de questionário. (de Grapefruit, edição 2000 - Tradução 2008/2009).
Responda às seguintes questões Verdadeiras
ou Falsas.
VERDADE/FALSO
O sexto dedo geralmente não é usado porque
sua existência não é fisicamente perceptível.
Há uma torre de paz transparente na cidade
de Nova Iorque que não lança nenhuma sombra e, portanto, é muito raramente
reconhecida.
Sangue não é vermelho a menos que exposto,
e azul quando imaginado.
A estrutura do sistema de júri americano é
tomada a partir da operação do acaso na música de John Cage. (O notado juiz
Connolly se diz ter dito “todos os veredictos são bonitos”.)
Monte Fuji, cuja cor é azul e branco à
distância e vermelho vulcão quando você chega perto, é um cuidadoso e planejado
projeto moderno Japonês construído para atrair turistas Americanos.
East Side não é uma expressão para definir
uma localização, mas foi originalmente o nome da cidade “The Wise East on the
Wrong Side” (O sábio oriental do lado errado). Mais tarde foi abreviada para o
que conhecemos atualmente como “The East Side”.
Seu peso é duas vezes o meu, e altura 5
centímetros menor.
Toranja é um híbrido de limão e laranja.
Neve é um híbrido de desejo e lamento.
Todos os frutos são derivados da banana,
que foi o primeiro fruto existente. A bíblia mentiu a respeito da maçã porque
considerou a palavra banana indigna.
Baratas são formas de flores em movimento,
apesar de visualmente elas parecerem desconexas.
Happenings foram inventados pelos deuses
gregos.
A expressão “papel manila” vem de
preconceitos raciais fortemente arraigados.
Tosse é uma forma de amor.
Todas as ruas são invisíveis. As visíveis
são as que são falsas, embora algumas visíveis são partes finais das que são
invisíveis.
Dentes e ossos são sólidas formas de nuvem.
Papel é mármore cortado tão fino que se
torna macio. (Faça mármore de papel higiênico.)
Plástico é uma porção do céu cortado de uma
forma sólida. (Colete vários pedaços de plástico e olhe através deles para ver
se eles parecem azuis).
Se você usar roupas por tempo suficiente
elas se tornam parte de você e você vai sofrer de vários desajustes físicos
quando você as tirar. Uma princesa morreu por tirar as vinhas que a havia
coberto por dez anos. Um príncipe, quando as vinhas que o cercavam foram
tiradas, descobriu sua inexistência.
Quando você deixa as coisas, deixa também
seu espírito para trás. Mas se você não as deixa, envelhece.
Seu irmão é o homem que você matou no mundo
passado. Ele nasceu na sua família porque queria estar perto de você.
Existe um homem de vontade no canto do
mundo cuja tarefa diária é enviar ondas de boa vontade para o mundo para limpar
o ar.
Homens costumavam andar sobre as mãos de
cabeça para baixo, mas eles mudaram para a forma atual porque foi considerado
menos obsceno.
99 por cento do mundo são cadáveres e
túmulos. Nós somos os remanescentes 1 por cento... (ou não?).
Existem mil sóis decorrentes todos os dias.
Nós só vemos um deles por causa da nossa fixação em pensamento monístico.
As teclas do piano são pétalas de flor
endurecidas.
Pessoas que compraram as
“sacolas-de-vestir” da Ono invariavelmente encontraram fantástica sorte e
fortuna. –ad.
Uma nuvem consiste das seguintes
substâncias: cor, música, cheiro, sono e água. Às vezes chove outras
substâncias em vez de água, mas poucas pessoas notam.
*
*
PEÇAS (de Grapefruit, edição 2000 - Tradução 2008/2009).
Música
PEÇA GRAVADA III
Peça de neve
Registre o som da neve
caindo.
Deve ser gravado de noite.
Não escute a gravação.
Corte-a e use-a como fita para amarrar
presentes.
Prepare papel para embrulhar presentes, se
desejar, usando
o mesmo método, porém utilizando discos.
Outono de 1963.
PEÇA DE SINO
Escute um sino durante uma hora.
Diminua devagar o som
fazendo-o repicar na cabeça.
Diminua pouco a pouco o som
ou muito lentamente, esquecendo-o.
Tente outros sons
p.
ex., a voz de sua mãe
o
choro de um bebê
a
histeria de seu marido
Outono de 1963.
PEÇA DE ESCONDE-ESCONDE
Esconda-se até que todos voltem para casa.
Esconda-se até que todos se esqueçam de
você.
Esconda-se até que todos morram.
Primavera de 1964.
PEÇA DE SANDUÍCHE DE ATUM
Imagine mil sóis no céu
ao mesmo tempo.
Deixe que eles brilhem durante uma hora.
Então, faça-os gradualmente derreter
no céu.
Prepare um sanduíche de atum e coma-o.
Primavera de 1964.
Pintura
PINTURA PARA EXISTIR SOMENTE QUANDO COPIADA
OU FOTOGRAFADA
Deixe que as Pessoas copiem ou fotografem
suas
pinturas.
Destrua os originais.
Primavera de 1964.
PEÇA DE COZINHA
Pendure uma tela na parede.
Jogue todas as sobras que tenha
esse dia na cozinha sobre
a tela.
Pode-se preparar uma comida especial para
a peça.
Inverno de 1960.
PEÇA DE CANHÃO
Pregue seu nome numa janela.
Consiga um canhão emprestado.
Distancie-se e abra fogo
contra o nome.
O nome pode ser um nome ou um número
tomado por acaso do catálogo
telefônico.
Se não conseguir um canhão poderá
usar metralhadora, flecha, pedra,
cuspe, urina, água de mangueira,
ou qualquer outro método.
Se não conseguir nada, saia e olhe
até que o nome se torne irreconhecível
no crepúsculo.
Pode-se usar um telescópio para olhar.
Outono de 1963.
RETRATO DE MARIA
Envie uma tela para uma Maria de qualquer
país
e peça-lhe que cole sua fotografia.
Faça com que envie a tela para a próxima
Maria
de qualquer país para que faça o mesmo.
Quando a tela estiver cheia de fotos
de Marias, deve ser enviada de volta
ao remetente original.
O nome não tem que ser necessariamente
Maria.
Pode, também, ser um nome inventado, e
neste caso a tela deve ser enviada a
diferentes países até que se encontre
uma pessoa com esse nome. O objeto a ser
fixado sobre a tela pode não ser uma foto.
Pode ser um número,
um inseto, uma impressão digital.
Primavera de 1962.
Evento
DOIS TELEGRAMAS
1) VENHA ESTA MANHÃ COM AR DE AMOR DE
PRIMAVERA
2) NÃO POSSO ACREDITAR NA SUA ESTUPIDEZ
ACREDITANDO QUE EU REALMENTE VIRIA
PARE VOCÊ SABE QUE NÃO TENHO UM CENTAVO
PARE VEM COM SENTIDO VEM COMO NA CAMA
PARE NÃO LIGUE MAIS A COBRAR POIS
A CONTA DE TELEFONE É
DESESPERANÇOSAMENTE ALTA
PEÇA DE MAPA
Desenhe um mapa imaginário.
Marque um ponto no mapa aonde
deseja ir.
Caminhe por uma rua verdadeira segundo
seu mapa.
Se não existe rua onde deveria haver
segundo o mapa, faça uma colocando
de lado os obstáculos.
Quando alcançar a meta, pergunte o nome
da cidade e dê flores à primeira
pessoa que conhecer.
O mapa deve ser seguido exatamente,
ou o evento deverá ser totalmente
abandonado.
Peça aos amigos que escrevam mapas.
Dê mapas aos amigos.
Verão de 1962.
PEÇA DE CAMINHAR
Mexa no interior de seu cérebro com um
pênis
até que as coisas se misturem bem.
Saia para caminhar.
Inverno de 1961
MÁQUINA DE VESTIR
Peça a um homem que vista várias coisas
antes de você as usar.
Como:
Mulheres
Roupas
Livros
Apartamentos
Pianos
Máquinas de escrever.
Primavera de 1964.
Poesia
PEÇA DE SÍLABA
Decida não usar uma sílaba
em particular pelo resto de sua vida.
Grave as coisas que te aconteceram em
resultado disto.
Primavera de 1964.
Filme
ROTEIRO DE FILME 5
Peça ao público o seguinte:
1) que não olhe para Rock Hudson, mas
somente
para Doris Day.
2) que não olhe para nenhum objeto redondo
mas
somente para quadrado e anguloso – se você
olhar
para um objeto redondo, olhe até que ele se
torne
quadrado ou anguloso.
3) que não olhe para o azul, mas somente
para o
vermelho. – se aparecer o azul, feche os
olhos ou
faça algo para não ver;
se viu,
faça de conta que não viu, ou castigue-se.
- de SEIS ROTEIROS DE FILME POR YOKO ONO,
Tóquio, Junho de 1964
Dança
PEÇA DE CORPO
Fique na luz do fim de tarde
até que você fique transparente
ou adormeça.
Verão de 1961.
CONVERSA DE AR
Dizem que o ar é a única
coisa que compartilhamos.
Não importa o quão perto estamos uns dos
outros,
sempre existe ar entre nós.
Também é legal que dividamos o ar.
Não importa o quanto estejamos separados,
o ar nos liga.
de Lisson Gallery Brochure‟67
PEÇA DE DANÇA PARA PERFORMANCE NO PALCO
Dance em plena escuridão.
Peça para o público acender um fósforo se
quiser ver.
Cada pessoa não pode acender mais que um
fósforo.
1961 outono.
conversa
de água
você é água
Eu sou água
todos somos água em diferentes recipientes
por isso é tão fácil conhecermo-nos
algum dia todos vamos evaporar juntos
mas mesmo depois da água sumir
nós provavelmente apontaremos
para os recipientes e diremos,
“sou eu ali, aquele”.
nós somos recipientes imaginários.
Para a mostra Meio-Vento, Lisson Gallery,
Londres 1967.
*
*
Às
pessoas wesleyanas (de Grapefruit, edição 2000 - Tradução 2008/2009).
Às pessoas wesleyanas (que compareceram à
reunião). - anotações para minha conferência em 13 de janeiro de 1966.
Quando um violinista toca, o que é o
incidental: o movimento do braço ou o som do arco? Demonstrar com o movimento
só do braço.
Se minha música parece pedir silêncio
físico é porque requer a concentração de cada um, e isto exige um silêncio
interior que pode, também, levar a um silêncio exterior.
Penso em minha música mais como uma prática
(gyo) que como música.
O único som que existe, para mim, é o som
da mente. Minhas obras tratam somente de induzir música mental nas pessoas.
Não é possível controlar o tempo da mente
com um relógio ou um metrônomo. No mundo da mente as coisas se desprendem e vão
mais além do tempo.
Há um vento que nunca morre.
Minhas pinturas, que são todas pinturas de
instrução (pra que outros as realizem), vêm da colagem, da assemblage (1915) e do happening
(1905) trazidos para o mundo da arte. Considerando-se a natureza das minhas
pinturas, qualquer um dos três termos acima mencionados, ou ainda um novo,
poderiam ser utilizados no lugar da palavra pintura. Porém, gosto da velha
palavra pintura porque imediatamente se conecta com “pintura de parede”, e isto
é bom e divertido.
Entre minhas pinturas de instrução meu
interesse reside, principalmente, nas “pinturas para construir na cabeça”. Na
cabeça, por exemplo, é possível que uma linha reta exista, não como segmento de
uma curva, mas como uma linha reta. Também uma linha pode ser reta, curva e
alguma coisa mais ao mesmo tempo. Um ponto pode existir como 1, 2, 3, 4, 5, 6
objetos dimensionais ao mesmo tempo ou em tempos distintos em diferentes
combinações, segundo o desejo de percebê-los. O movimento da molécula pode ser
contínuo e descontínuo ao mesmo tempo. Pode ter cor e/ou não. Não existe objeto
visual que não exista em comparação com, ou simultaneamente com outros objetos,
porém essas características podem ser eliminadas se assim se desejar. Um pôr de
sol pode durar dias. Podem-se comer todas as nuvens do céu. Pode-se juntar, por
telefone, uma pintura e uma pessoa que esteja no Polo Norte, como se fosse um
jogo de xadrez. O método de pintura vem de longe, do tempo da Segunda Guerra
Mundial, quando não tínhamos nada para comer e meu irmão e eu trocávamos menus
no ar.
Talvez exista um sonho que dois sonhem
juntos, mas não existe uma cadeira que dois vejam juntos.
Creio que é possível ver uma cadeira tal
como ela é. Porém, quando se queima a cadeira, você repentinamente percebe que
a cadeira em sua mente não queimou nem desapareceu. O mundo da construção
parece ser o mais tangível e, portanto, o final. Isto me deixa irritada.
Comecei a me perguntar se não seria realmente assim.
Não é uma construção, por acaso, o
princípio de uma coisa como uma semente?
Não é o segmento de uma totalidade maior,
assim como o rabo do elefante?
Não é algo a ponto de emergir – não totalmente
estruturado – nunca totalmente estruturado... como uma igreja inacabada com
cúpula?
Portanto, os seguintes trabalhos:
Uma vênus feita de plástico, exceto a
cabeça que é para ser imaginada.
Uma bola de papel e um livro de mármore, só
que a versão final é a fusão destes dois objetos, que toma existência somente
na sua cabeça.
Uma esfera de mármore (que na realidade
existe) que na sua cabeça gradualmente se converte num cone afunilado quando é
esticado até o lugar mais distante do quarto.
Um jardim coberto de grosso mármore em vez
de neve... porém, igual à neve, que deve ser apreciado somente quando você
retirar a camada de mármore.
Mil agulhas: imagine enfiá-las com um fio
reto.
Gostaria de ver a máquina de céus em todas
as esquinas da cidade em vez da máquina de coca. Necessitamos mais de céus que
de cocas.
A dança era antes o modo como a gente se
comunicava com Deus e com o divino nas pessoas. Desde quando a dança se
converteu em
exibicionismo num cenário iluminado por spots? Alguém não pode se comunicar se
está totalmente na escuridão?
Se as pessoas se acostumassem a dar um
salto mortal em cada rua quando trocam de escritório, a tirar as calças antes
de brigar, a estender a mão aos desconhecidos cada vez que lhes dá vontade, a
darem flores ou parte de suas roupas na rua, metrôs, elevadores, banhos públicos,
etc., e se os políticos entrassem pela porta de uma casa de chá (muito baixa,
de modo que tivessem que se abaixar muito para passar) antes de discutirem
nada, e passassem um dia inteiro observando a dança da água do parque mais
próximo, os negócios do mundo se atrasariam um pouco, porém, poderíamos ter
paz.
Para mim isto é a dança.
Todas as minhas obras em outros campos têm
uma inclinação, por assim dizer, para o “Evento”. As pessoas me perguntam por
que chamo a alguns trabalhos Eventos e outros não. Também perguntam por que não
chamo de “Happenings” a meus Eventos.
Evento, para mim, não é uma assimilação de
outras artes, como parece ser o happening, mas o desentranhar de várias
percepções sensoriais. Não é um “estar mais juntos”, como na maioria dos
happenings, mas um trato consigo mesmo. Tampouco tem um roteiro, como nos
happenings, ainda que tenha algo que dá início ao movimento; a palavra mais
adequada seria um “desejo” ou uma “esperança”.
Semana passada, numa cena íntima,
descobrimos repentinamente que nosso amigo poeta, a quem tanto admiramos, é
cego às cores. Bárbara Moore disse: “Isso explica sua obra. Geralmente os olhos
das pessoas estão bloqueados pela cor e não podem ver a coisa.”
Depois de desbloquear-nos a mente
administrando-nos percepções visuais, auditivas e cinéticas, o que será de nós?
Ocorrerá algo? Pergunto-me. E em meus Eventos continuo a perguntar-me.
Em Kioto, no Templo de Nanzenji, o Sumo
Sacerdote foi tão amável em emprestar-me o templo e os jardins para meu Evento.
Esse templo tem uma grande história e era
inaudita a honra que o Sacerdote concedera a permissão, sobretudo a uma mulher.
O Evento iniciou à noite e foi até o amanhecer. Umas cinquenta pessoas chegaram
sabendo que duraria até o amanhecer. As instruções eram observar o céu e
“tocar”. Alguns dormiram até o amanhecer. Alguns sentaram-se no jardim, outros
no largo corredor que é como uma varanda. Era uma linda noite de lua cheia e a
lua brilhava tanto que as montanhas e as árvores, que geralmente parecem negras
à luz lunar, começaram a mostrar seu verde. As pessoas falavam em se bronzear à
luz da lua, de banhar-se na lua e de tocar o céu. Duas pessoas, notei,
cochichavam a história de suas vidas. De vez em quando uma pessoa muito
inquieta vinha e me perguntava se eu estava bem. Achei muito divertido, porque
a noite de junho estava agradável e quieta, não havia nenhum motivo para que eu
não me sentisse perfeitamente bem. Porém, quem sabe essa pessoa começava a
sentir que algo lhe acontecia, algo que não sabia ainda como enfrentar, e seu
único modo de fazê-lo era vir até mim e me perguntar se eu estava bem. Me
afligia um pouco a ideia de que as pessoas pudessem queimar com cigarro
o chão ou os tatames deste tesouro nacional, extasiados com a luz da lua, pois
na maioria eram jovens japoneses modernos ou franceses e norte-americanos. Mas
não aconteceu nada disto. Quando começou a entrar a brisa matutina as pessoas
despertaram lentamente seus companheiros e tomamos um banho, três a cada vez,
num banho especialmente preparado para esta hora do dia. A sala de banho do
templo é construída com enormes pedras e é muito quente. Depois do banho,
tomamos sopa de miso e onigirl (sanduíche de arroz). Sem que eu
dissesse nada, as pessoas varreram silenciosamente o templo e lavaram o
corredor antes de partirem. A maioria, que eram de Kioto, eu não conhecia e
partiram sem deixar seus nomes. Pergunto-me quem seriam.
Outra vez, também em Kioto, antes do Evento
de Nanzenji, fiz um concerto no Yamaichi Hall. Chamava Strip Tease Show (era um strip
tease da mente). Quando no dia seguinte encontrei o Sumo Sacerdote, parecia
um pouco aborrecido comigo:
– Fui ao seu
concerto, – disse.
– Obrigada. Gostou?
– Bom, porque põe
essas três cadeiras no cenário e o chama de strip
tease de três?
– Que seja uma
cadeira, uma pedra ou uma mulher, é o mesmo, meu Sacerdote.
– Onde está a
música?
– A música está em
minha mente, meu Sacerdote.
– Mas é o mesmo que
fazemos nós, então, você não é uma compositora de vanguarda?
– Isto é um rótulo
que me puseram por conveniência.
– Por exemplo,
Toshiro Mayuzumi cria música do mesmo tipo que a sua?
– Só posso falar
por mim.
– Você tem muitos
discípulos?
– Não, porém
conheço dois homens que sabem o que estou fazendo. E sou muito grata por isto.
O Sumo Sacerdote é muito jovem, talvez mais
jovem do que eu. Pergunto-me o que estará fazendo neste momento.
Outro Evento que foi memorável para mim foi
“Voo”, na Galeria Naiqua, de Tóquio. Pediu-se às pessoas que fossem preparadas
para voar à sua maneira. Eu não assisti.
As pessoas falam sobre o happening. Dizem
que a arte inclina-se nessa direção, que o happening é uma assimilação das
artes. Eu não acredito no coletivismo em arte e nem em ter uma direção única em
nada. Penso que é bom voltar a se ter diferentes artes, inclusive o happening,
assim como ter muitas flores. Em realidade, poderíamos ter mais artes de
“cheirar”, “pesar”, “tocar”, “chorar”, “irar” (competição de iras, este tipo de
coisas). As pessoas poderão alegar que nunca experimentamos as coisas
separadamente, que elas estão sempre fundidas. E isto é “o happening”, a fusão
de todas as percepções sensoriais. Sim, estou de acordo, porém, se é assim,
existem mais razões ainda para criar uma experiência sensorial isolada de
outras experiências sensoriais, o que é algo raro na vida cotidiana. A arte não
é uma mera duplicação da vida. Assimilar a arte à vida é diferente da arte
duplicar a vida.
Mas voltando às várias divisões da arte,
isto não significa, por exemplo, que devemos usar somente sons para criar
música. Podemos dar instruções para olhar o fogo durante 10 dias e assim criar
uma visão na mente.
A mente é onipresente, os acontecimentos da
vida não ocorrem isolados e a história está sempre aumentando seu volume. O
estado natural da vida e da mente é a complexidade. Neste ponto o que a arte
pode oferecer (si pode oferecer algo) é uma ausência de complexidade, um vazio
através do qual se é levado a um estado de completo relaxamento mental. Depois
que se volta novamente à complexidade da vida, pode-se não ser o mesmo, ou
pode-se ser, ou pode-se nunca voltar, mas isto é um problema pessoal.
A riqueza mental deve preocupar-nos tanto
quanto a riqueza física. Acaso não disse Cristo que é mais fácil passar um
camelo pelo buraco de uma agulha do que John Cage no céu? Acho que é bom
abandonar ao máximo o que temos, tanto as posses mentais como as materiais,
porque obstruem a mente. É bom manter a pobreza do ambiente, do som, do
pensamento, das crenças. É bom manter-se pequeno como um grão de arroz em vez
de expandir-se. Faça-se dispensável, como um papel. Veja pouco, ouça pouco, e
pense pouco.
*
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