Há um belo de trecho de uma entrevista de Michel
Foucault realizada por James O’Higgins em março de 1982, em que o francês
começa procurando responder a uma pergunta acerca das diferentes formas do
erotismo aparecer em uma literatura homossexual e em uma literatura
heterossexual, e que desenvolve talvez alguns dos elementos fundamentais para o
início de uma conversa sobre o homoerotismo na poesia do alexandrino
Konstantinos Kaváfis, e tudo segue mais ou menos assim:
“Foucault: (...) A experiência da
heterossexualidade, pelo menos desde a Idade Média, foi sempre formada por dois
quadros: de um lado o quadro da corte, no qual o homem seduz a mulher; e de
outro o do ato sexual em si. Mas a grande literatura heterossexual do Ocidente
se polarizou fundamentalmente em torno do quadro da corte amorosa, isto é, de
tudo quanto precede o ato sexual. Toda a atividade do refinamento intelectual e
cultural, toda a elaboração estética ocidental, se centrava na corte. Daí a
reduzida valorização literária, cultural e estética do ato sexual em si.
Por
outro lado a experiência homossexual moderna não tem nenhuma relação com a
corte. Naturalmente na Grécia antiga não ocorria o mesmo. Para os gregos a
corte entre os homens tinha mais importância que entre homens e mulheres (pense
em Sócrates e Alcibíades). Mas na cultura cristã ocidental a homossexualidade
se viu repelida e teve portanto de concentrar sua energia no próprio ato
sexual. Não se permitiu aos homossexuais elaborar um sistema de corte, uma vez
que lhes foi negada a expressão cultural necessária a essa elaboração. A
piscadela na rua, a repentina decisão de ir ao que interessa, a rapidez com que
as relações homossexuais são consumadas, todos esses fenômenos têm origem numa proibição.
Por isso é lógico que quando começam a se desenvolver uma cultura e uma
literatura homossexuais elas se centrem no aspecto mais ardente e veemente das
relações homossexuais.
O’Higgins:
Lembrei-me
da célebre frase de Casanova: ‘O melhor momento do amor é quando subimos as
escadas’. É difícil imaginar um homossexual dos nossos dias fazendo essa
observação.
Foucault: Exatamente. Em vez disso ele
diria algo assim: ‘O melhor momento do amor é quando o amante está indo embora
de táxi’.
(...)
Foucault:
(...) É o
momento em que o ato já se realizou e o rapaz vai embora e começa a lembrar o
calor daquele corpo, o encanto do sorriso, o tom da voz. O que assume a maior
importância nas relações homossexuais não é a antecipação do ato, e sim a
lembrança dele. Essa é a razão pela qual os grandes escritores homossexuais da
nossa cultura (Cocteau, Genet, Bourroughs) podem escrever com tanta elegância
sobre o próprio ato sexual, já que a imaginação homossexual trata sobretudo de
lembrar o ato e não de antegozá-lo. E, como lhe disse antes, tudo isso se deve
a circunstâncias de caráter muito concreto e prático, nada nos dizendo sobre a
natureza intrínseca da homossexualidade”.
(FOUCAULT, M. Um
diálogo sobre os prazeres do sexo. Tradução: Maria Cristina Guimarães
Cupertino. Sp: 2 ed. 2005).
Se,
desde o momento de Kaváfis viveu e escreveu seus poemas, e mesmo desde o
momento em que Foucault concedeu essa entrevista, até hoje, operou-se uma série
de deslocamentos nas formas de se viver/perceber/dizer o ato sexual e a
sexualidade, isso não aponta para um esquecimento ou uma insignificância da
prática e da poética de Kaváfis no mundo atual. Antes, a sua leitura nos permite
colocar a questão acerca de que relações o erotismo, e a poesia erótica
heterossexual e homossexual, tecem com as circunstâncias práticas e concretas
em que vivemos e que diferenças nelas e com elas, ou a partir delas, se podem
operar.
Aqui,
estamos publicando uma pequena seleção de seus poemas nas traduções de José
Paulo Paes, e nas de Isís Borges da Fonseca, bem como revisitando o poema Ombro enfaixado, em tradução de Fernanda
Lima, publicado na revista Bliss.
Além disso, incluímos a apresentação com novos poemas traduzidos, elaborada
pela mesma Fernanda Lima e por Luciana Póvoa, para uma publicação que apresenta
45 poemas eróticos do alexandrino (e que será, em breve, disponibilizada aqui
para download). E deixamos rodando essa insistente pergunta, (de que modo ela
retornará?), que enfeixa uma escrita do erotismo: qual o melhor momento do
amor?
*
Longe
Quisera referir essa lembrança...
Mas já se apagou tanto... visto que nada se mantém –
pois longe, nos primeiros anos de minha
adolescência, ela jaz.
Uma pele como feita de jasmim...
Aquela noite de agosto – era agosto? – aquela noite...
Mal me lembro agora dos olhos – eram, creio,
azuis...
Ah! sim, azuis: um azul de safira.
(KAVÁFIS, Konstantinos. Poemas de K. Kaváfis. Tradução, estudo e notas de Ísis Borges da
Fonseca. São Paulo: Odysseus).
*
Volta
Volta outras vezes e domina-me,
frêmito amado, volta outras vezes e domina-me –
quando a memória do corpo despertar,
quando ao sangue retornar o desejo de outrora
e os lábios e a pele lembrarem e as mãos
sentirem-se como que tocadas de novo.
Volta outras vezes e domina-me, quando a noite
fizer com que os lábios e a pele se lembrem.
(In: PAES, José Paulo. (org.: seleção, tradução
direta do grego, prefácio, textos críticos e notas). Poesia moderna da Grécia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986).
*
O
espelho da entrada
À entrada da mansão
havia um grande espelho muito antigo
comprado pelo menos há mais de oitenta anos.
Um rapaz belíssimo, empregado de alfaiate
(e nos domingos atletas diletante)
estava ali com um pacote.
Deu-o a alguém da casa, que o levou para dentro
com o recibo. O empregado do alfaiate
ficou sozinho, à espera.
Acercou-se do espelho e mirou-se
para ajeitar a gravata. Após cinco minutos,
trouxeram-lhe o recibo e ele se foi.
Mas o antigo espelho que vira e revira
nos seus longos anos de existência
coisas e rostos aos milhares;
mas o antigo espelho agora se alegrava
e exultava de haver mostrado sobre si
por um instante a beleza culminante.
(In: PAES, José Paulo. (org.: seleção, tradução
direta do grego, prefácio, textos críticos e notas). Poesia moderna da Grécia. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986).
*
Desejos
Como belos corpos de mortos que não envelheceram
e foram encerrados, com lágrimas, em magnífico
mausoléu,
com rosas nas cabeças e jasmins nos pés –
assim se lhes assemelham os desejos que passaram
sem se realizar, sem que nenhum
alcançasse uma noite de prazer, ou sua manhã
luminosa.
(KAVÁFIS, Konstantinos. Poemas de K. Kaváfis. Tradução, estudo e notas de Ísis Borges da
Fonseca. São Paulo: Odysseus).
*
O
ombro enfaixado
Disse que bateu em um muro ou que caiu.
Mas provavelmente a razão seria outra
para o ombro ferido e enfaixado.
Por conta de um movimento um tanto brusco
em direção à estante, para descer algumas
fotos que queria ver de perto,
soltou-se a faixa e um pouco de sangue escorreu.
Novamente enfaixei o ombro, e demorei-me
um pouco nesta tarefa, pois não doía
e agradava-me ver o sangue. Coisa
do meu amor era aquele sangue.
Assim que saiu, encontrei sobre a cadeira em
frente
um pano das ataduras manchado de sangue,
pano que parecia dever ir direto pro lixo
e que sobre os meus lábios mantive eu,
e que beijei por longo tempo –
o sangue do meu amor nos meus lábios.
(Tradução de Fernanda Lima. In. Bliss. Editores: Lucas Matos, Clarissa Freitas e Márcio Junqueira.
Rio de Janeiro: 7Letras, 2009).
*
De desejos e silêncios: 45 poemas de (i)legal prazer
Fernanda Lima e Luciana Póvoa
Estético, sensível, sensorial, sensual: são esses quatro
adjetivos que Konstantinos Kaváfis, poeta de língua grega radicado em
Alexandria, no Egito, carrega na tinta expressa das linhas engavetadas. É um αισθητικός voltado para
um homoerotismo particular que abriga pinceladas de όμορφος e ηδονή, de belo e prazer amalgamados por uma poética do desejo.
As cenas, os encontros e o entrelaçamento de corpos são
preenchidos por pura plasticidade, ponto em que a compaixão pelo ego torna-se
uma compaixão pelo ser homoerótico-universal. Este, por sua vez, vive sob a
satisfação adiada e o desejo reprimido. E é a tensão entre a vida consciente do
ego e a repressão da busca pelo “prazer preliminar” – o poder da forma
artística que transpira nas linhas e silêncios kavafianos modelando e
plasmando a essência de um amor entre iguais fugitivo das garras
repressoras-centrífugas – que molda a clave dos constituintes da criação
kavafiana, como é perceptível no poema Muros: “Não ouvi voz de pedreiro,
um ruído que fora. Isolaram-me do mundo sem que eu percebesse.”
O ambiente retratado pelo poeta é o oposto de um mundo de
plenitude, sem faltas ou exclusões de qualquer tipo: existe um hiato, um abismo
hiante entre significante e significado, entre o eu e o tu. A
aposiopese, muitas vezes utilizada por Kaváfis, carrega uma distância
estruturada ad infinitum de um significante para outro. É a partir daí
que se estabelece a ponte com o desejo, e, para que isso aconteça, se faz
necessário um processo de omissão e deslize constantes da significação. Sem
isso, a preservação saudável do eu-poético seria consideravelmente dificultada.
Quando
surgirem
Poeta,
empenha-te para que as retenha
enquanto
são poucas as que se estancam
as
quimeras do erotismo teu.
Incute-as,
levemente encobertas, nos versos teus.
Poeta,
avigora-te para que as retenha,
quando
surgirem em tua mente,
à
noite ou ao resplandecer do meio-dia.
Pode-se dizer que a omissão e o deslize do significante, a
revelação e o ocultamento são uma espécie de parapraxis forçada, lapsos
linguísticos propositalmente incitados. O trabalho sobre o gênero do ser
desejado é um exemplo: o ocultamento de gêneros e nomes é fundamental para que
o deslize das epifanias seja concretizado.
Com isso, o processo da tessitura – ο
ato textual – deve ser despido de sua própria composição para que haja estímulo
de reflexão crítica sobre as maneiras particulares pelas quais elas construíram
a realidade cotidiana de Kaváfis e de seus amantes – desejos poéticos – de
forma a reconhecer que tudo aquilo poderia ter acontecido de modo distinto.
Assim, há uma demanda de atos e suposições de muitos olhares atentos para que o
processo estético possa ser recepcionado de maneira adequada. E produtiva:
Mas
para nós da Arte,
por
um instante, habita a alma, e de fato
por
curto tempo, engendramos o prazer
que
fantasio como se fosse real
São esses olhares atentos os responsáveis pela
particularidade do poeta em questão: “as atividades dos olhos kavafianos”,
assim como a das câmeras de Hollywood, devem ser destacadas de modo que o
espectador, tanto das imagens quanto das entrelinhas, não possa somente efetuar
uma observação dos objetos através da interferência dessa operação, mas sim
deitar as suas sinapses refletivas e refletoras sobre as lições de poesia e
desejo que esses olhos criptografados querem dizer:
Vitrine
de Tabacaria
Perto
da vitrine iluminada
de
uma tabacaria pararam em meio a muitos outros.
Por
acaso, seus olhares se encontraram
e
o ilegal desejo das suas carnes
se
revelou timidamente, hesitante.
Depois,
alguns passos ansiosos pela calçada ¾
até
que sorriram e trocaram acenos discretos.
E
depois, na carruagem fechada...
O
sensual aproximar de corpos;
as
mãos que se penetram, os lábios que se penetram.
Esses olhares refletem em linhas pontilhadas o desejo na
esfera (in)consciente do ser direcionado ao Outro de uma forma nunca plenamente
satisfatória, em função da impossibilidade de percebê-la: Χαρά é um ato – ou
um fato, como preferirem – momentâneo. E Kaváfis tem plena consciência desse
caráter tão intrínseco aos trinta e dois cromossomos, sejam eles gregos ou não.
Humanos, pois.
A partir das atividades dos olhares atentos na poesia
kavafiana, o indivíduo em seu caráter masculino-homoerótico é levado a fermentar
sua exegese em âmbito amplo e restrito, geral e particular, tendo como âncora a
estética epifânica e propositalmente omissa de fugazes e (i)legais prazeres.
Talvez se possa conjecturar uma singela semelhança
estrutural de transpirações poéticas entre Luis de Camões, poeta português do
século XVI e Konstantinos Kaváfis, o polidor de versos alexandrino de
língua grega moderna do século XIX: ambos recorrem ao empirismo pessoal voltado
ao prazer como dínamo para a busca de conhecimento interior que fomenta a
chamada experiência hipotética. É tempo de pluralidade de verdades e de
amores em sua esfera carnal, epidérmica e sensória para que sejam efetivados
questionamentos, tentativas de resolução de dúvidas que emergiram na mente
humana.
A suspensão dos signos linguísticos, aquilo que a obra não
diz, pode ser tão importante quanto o que ela venha a expressar, e o que está à
margem, escondido ou maquiado, ambivalente ou dicotômico pode constituir o
portão de entrada para a Troia do poeta. A obra pode observar não só o que o
texto realmente diz – ou o que pretende dizer -, mas também o seu funcionamento,
o seu modus operandi, as palavras que não são ditas, que são retiradas
com excepcional frequência, duplicações e lapsos de linguagem – é a criação do subtexto,
do subliminar poético. Assim, em cada simbologia do não-dito, Kaváfis expressa
a sua tríade epidérmica – desejo, prazer e repressão.
“Por completo o ilegal prazer se deu” e “Ruído ou som de
pedreiros não ouvi outrora, de mundos imperceptivelmente me excluíram”: a
partir de trechos como esses, percebe-se que existe algo fora do lugar, fora de
um centro voltado para uma espécie de δόξα – senso comum –, e a expressão do desejo. Este só não pode
ser verificado porque somos colhidos por relações linguísticas, sexuais ou
sociais, ou seja, em todos os campos do “Outro” que geram esse desejo. Há uma
censura da agressividade burocrático-comedida impulsiva ou libidinosa, todavia
aceitável em função da forma, do jogo verbal e do δαιμονισμένος textual – aquele que atua no processo de inspiração de
linhas e expiração de entrelinhas pelos poros da caneta: “As miseráveis leis da
sociedade (...) impediram-me de dar luz e emoção aos que são como eu”.
Uma mesa, uma cadeira, um quarto em um apartamento:
tentativas de recriar o ambiente em que o poeta vivia na sua antiga residência,
que hoje abriga o museu Kaváfis, na Alexandria do Egito. Antes, o poeta dividia
o espaço do sobrado com um prostíbulo no térreo, onde, algumas vezes, podia
vislumbrar jovens que a ele mais pareciam anjos em busca dos prazeres da carne.
Muito escreveu Kaváfis sobre os prazeres do amor proibido, sobre o desejo entre
iguais, de modo velado, na maioria das vezes, pois o tempo em que viveu não
permitia a visibilidade. Todavia, sua poesia se construiu a partir de uma
estética da subversão, que falava do proibido, reconhecia-o como tal e, ao
mesmo tempo, exaltava-o.
O pensamento sonha, disse
o poeta. Sonho é simbologia camaleônica, realização dos desejos inconscientes.
E é através da roupagem da iconografia poética que o material é expresso – caso
contrário, a objetividade impulsiva poderia ser chocante e perturbadora a ponto
de desligar o receptor da área da ποιήσις, transportando-o
para o campo ativo da πράξις. A simbologia precisa ser decifrada, todavia
paulatinamente, em processos de metáfora – a condensação de significados
em conjunto – e metonímia – deslocamento de um para o Outro,
transposições de realidades de um εγώ, de um eu, para um υμεις,
para um vós.
Um possível enfraquecimento da ordem simbólica é dado
através da própria linguagem do semiótico em Kaváfis: não se trata de uma
alternativa à estrutura de simbologias, à língua que poderia ser utilizada no
lugar de um λόγος, de um discurso próprio – é um processo que ocorre
dentro dos sistemas convencionais de signos do autor, cujos limites são
possivelmente questionados e ultrapassados. Desse modo, as dicotomias
pré-estabelecidas no sistema podem vir a ser desconstruídas: lícito e ilícito,
adequado e inadequado, meu e teu, sadio e insano, obediência e autoridade nas
quais uma sociedade baseia os seus princípios e seta, define os seus
parâmetros.
Kaváfis se auto-recria por meio de uma veleidade
expressiva de um polidor de versos mais forte: “para corpos covardes não
foi feito prazer de tamanha intensidade.” É, para si mesmo, heroica e
demasiadamente humano: por ter a humanidade dionisíaca, paradoxal em sua
essência, que se permite auto-recriar em busca do verbo λύνω (soltar, desatar) presente nos libambos do Externo. É uma
salvação por meio de letras ordenadas com alto poder de persuasão de si mesmo e
do Outro apaixonante através do tom, do ritmo e do material valorizados. Desse
modo, passa a haver a criação de um impulso no texto que ameaça romper com os
significados sócio-metrificados existentes na esfera homossocial.
É assim que o poeta modela a chamada Influência Tranquilizadora
de sua escrita, em que há um combate à ansiedade e à glorificação da ordem,
do cotidiano vital e do prazer: Kaváfis é εραστής, ερωμένος – amante – e έρωτας – amado, mesmo em sua fantasia, em seu simbolismo do inconsciente,
no imaginário (não impresso) expresso por seus silêncios.
Lembra,
Corpo...
Corpo,
lembra não só o quanto foste amado,
não
só os leitos em que deitaste,
mas
também os desejos que por ti
brilhavam
nos olhos, claros,
e
tremiam na voz – e alguma
barreira
do acaso os frustrou.
Agora
que tudo já é passado,
parece
que àqueles desejos
também
te entregaste - como brilhavam,
lembra,
nos olhos que te fitavam;
como
tremiam na voz, por ti, lembra, corpo.
Assim, a vida pessoal se torna matéria poética, elaborada,
como faziam os Antigos, aqueles dos quais o poeta moderno nos falará em vários
de seus poemas, velados ou nem tanto, mas com muita sensualidade, uma
sensualidade misturada à lembrança das experiências eróticas evocadas, sentidas
por uma memória que teima em se apagar:
Janeiro
de 1904
Noites
outonais de janeiro,
ao
assentar-me e recriar com a mente
aqueles
momentos e te encontrar,
e
ouço as minhas derradeiras palavras e ouço as primeiras.
Desesperadas
noites outonais de janeiro,
como
escapa a visão e me deixa só.
Como
foge e se desfaz célere –
todas
as árvores, ruas, casas, luzes.
Apaga-se
e se dissipa a tua erótica beleza.
Interessa-nos perceber como o poeta arquiteta a sua arte,
trazendo um homoerotismo velado em muitos de seus poemas, denunciado
simbolicamente apenas por uma gravata que é comentada, por um termo utilizado,
pelo local em que se dá a troca de olhares. Não obstante, outras peças nos dão
quadros completos, evidentes e vivos de momentos de êxtase, de tensão erótica,
de respeito entre amantes.
No processo de amante-amado kavafiano, Mnemosýne é fundamental: o presente é
constituído a partir de lembranças de um passado sem o qual a sua poesia
perderia a essência. O παρών,
o presente, está intimamente ligado ao παρελθόν, ao passado, em busca de reminiscências vitais a serem
transportadas ao papel com ares, como o próprio autor menciona, de ilícito: são
os apegos inquietos, o έρωτας,
que são servos do impulso da suspensão de vida momentânea durante o processo do
“ilegal prazer”:
Inícios
Por
completo o ilegal prazer
se
deu. Do leito se levantam,
e
com pressa vestem-se sem nada dizer.
Saem
desunidos, escondidos, da casa; e seguem
assim
inquietos pela rua, como se
temessem
que algo neles denunciasse
em
que tipo de cama há pouco deitaram-se.
Mas
a vida do artista se enriquece
Amanhã,
no outro dia, anos mais tarde, serão escritos
os
versos fortes que tiveram aqui seus inícios.
As linhas e os silêncios kavafianos são fonte de
hedonismo, tanto para quem emite a obra em gestos de liberação por poros quanto
para quem as recepciona: é uma “estética da recepção” prazerosa para as duas
extremidades: quem escreve também se auto-recepciona em doses homeopáticas de
desejo poetizado todo temperado de arte. O διαφανής, o límpido impera.
Essa dinâmica do prazer e do desprazer politicamente
forçado é investigada devido à repressão e ao adiamento do ato de satisfazer-se
que um ποιητής (verbo ποιώ + sufixo –τής), um poeta
engajado em desconstruções de δόξα através de uma relação entre πράξις e ποίηση pode tolerar,
já que a sociedade na qual ele é inserido desvia o desejo de finalidades
consideradas moralmente aceitas para outras que o menosprezam e degradam. O
desejo entre iguais é um exemplo: o homoerotismo é transviado para uma esfera
falsamente exposta como promíscua e degradante, fora do normal, um “prazer
ilícito, estéril, perigoso, doente”1.
Passagem
As
tímidas coisas que o estudante imaginou
estão
abertamente reveladas diante
dele.
E busca e vela
e
deixa-se levar. E como é
(para
minha arte) verdade,
seu
sangue, novo e quente,
o
prazer que enleva. O seu corpo vence
a
ilegal embriaguez erótica; e a juventude
se
rende à sua brandura.
E,
assim, um rapaz simples
torna-se
digno de ser visto, de sua superioridade
o
Mundo da Poesia um instante toma, este ¾
o
sensual menino, com seu sangue novo e quente.
Os poemas kavafianos (de)mo(n)stram todo o lirismo
presente no caráter humano desse Έρως, fazendo com
que os sentimentos expostos borbulhem em nossa epiderme, ao degustar cada lição
de poesia e desejo de um ser dionisíaco, em que corpo e mente se entrelaçam
entre quartos, ruas e cafés – palavras de Fernanda Lima - , em um espaço homossocial,
público, onde a intensidade do encontro de linhas pontilhadas oculares e
corporais pode – e deve – ser efetivada.
A moral de Kaváfis reconhece, mas rechaça, as noções de
dever, de consciência, de mérito e de erro em nome da imponência do prazer, da
libido, do desejo em relação ao Outro dificultado pelas normas. É puro
empirismo de Eros, de carnes mareadas pela cobiça, banquetes de regozijo
servidos por Afrodite.
Ao passar a retina afiada pelas linhas do poeta, é visível
que ele entregaria o próprio coração para ser mordido, quereria sair dos
limites de sua própria vida como suprema crueldade, como disse Clarice
Lispector. Os “apesar de” são introjetados nos constituintes de βουστροφέδον do seu sentir,
as sombras com as quais conviveu passam a se mostrar, dizer que ocupam, sim, um
lugar no kósmos e demonstram que ninguém se perderá no sistema vetorial
de dar e receber prazer. Mesmo que em um ato glorificado de iluminação do eu.
Kaváfis ultrapassa a simbologia de um Zeus hesiódico,
aquele que exerce um controle do homem nos seus transbordamentos e paixões – a
poesia kavafiana apresenta uma ficção paidéitica às avessas. A covardia do
corpo não pode ser tolerada. A mente que usa antolhos, rédeas e cabrestos,
igualmente. É um constante ato de ηδονή άφθαρτη, de prazer
imperecível da inseparabilidade entre moral e destino, de um futuro no qual o
poeta confiou.
“Mas a vida do artista se enriquece. Amanhã, no outro dia,
anos mais tarde, serão escritos os versos fortes que tiveram aqui seus
inícios”. Que as alegrias e mirras kavafianas possam sempre transcender o gozo
dos amores da rotina.
______________________________________________________________________
1
LIMA, Fernanda
Lemos de. “Entre quartos, ruas e cafés: imagens da poesia homoerótica de K. P. Kaváfis”.
Rio de Janeiro: Nonoar, 2007.
Nenhum comentário:
Postar um comentário