O poeta sai de
casa. Movimento fundamental.
Atenta
para o mundo, as formas que pode ter. Repara os tipos. A importância das coisas
comumente tidas como desimportantes não escapa à nobilíssima visão. Na RUA DA BICA DUARTE BELO, por exemplo,
note:
ESTES PRÉDIOS SÃO
QUASE DE GRAÇA
diz a tabuleta
encarnada
à gente que passa
E é que às vezes
passa uma gente engraçada:
um estudante sem
livros e ao lado
um operário
desempregado
É então que
Cesariny parece ter dado com isso: que ver não é apenas descoberta, senão um
modo de intervenção no mundo. Nesse sentido, o poeta e pintor português parece
consciente do conjunto de questões de que também falava Adrienne
Rich. Escreve seu tempo, seu país. Mas, diante de estudantes sem livros,
operários desempregados, classificados de jornal, poetas gatos-brancos à beira
de janelas, Cesariny sabe que é preciso chegar a uma escrita, a uma visão que esteja entre três modos possíveis: o
apaixonado, o bêbado e o poeta. Curiosamente, é em Shakespeare, no último ato
de Sonho de uma noite de verão que se
pode ler uma comparação entre as formas de ver do amante, do louco e do poeta. Lá,
diz um estadista recém-casado que os três têm visões que a calma razão não pode
explicar. São modos de ver em que o olhar intervém no mundo, atua sobre ele,
dando à realidade o (sur)real de que carece. É assim que o poeta encontra no
surrealismo uma forma de açoitar, destruir, vomitar, lidar, recolher, receber, e rir
do mundo. Porque de algum modo é preciso perguntar como, e se, é possível
existir no mesmo lugar em que, tudo corra
bem, um condenado pode morrer em 7 minutos.
O
poeta já não é só homem. O que é, então?
Reunimos
aqui uma pequena antologia de poemas dos livros Pena capital (1957) e Nobilíssima
visão (1959), assim como diferentes momentos de sua pintura junto ao
documentário Autografia, filme de
Miguel Gonçalves Mendes que mergulha, incrível, num Cesariny dos últimos anos.
***
Autografia
I
Sou um
homem
um poeta
uma
máquina de passar vidro colorido
um
copo uma pedra
uma pedra
configurada
um avião
que sobe levando-te nos seus braços
que
atravessam agora o último glaciar da terra
O meu
nome está farto de ser escrito na lista dos tiranos: condenado
à morte!
os dias e
as noites deste século têm gritado tanto no meu peito que
existe nele uma árvore miraculada
tenho um
pé que já deu a volta ao mundo
e a
família na rua
um é
loiro
outro
moreno
e nunca
se encontrarão
conheço a
tua voz como os meus dedos
(antes de
conhecer-te já eu te ia beijar a tua casa)
tenho um
sol sobre a pleura
e toda a
água do mar à minha espera
quando
amo imito o movimento das marés
e os
assassínios mais vulgares do ano
sou, por
fora de mim, a minha gabardina
eu o pico
do Everest
posso ser
visto à noite na companhia de gente altamente suspeita
e nunca
de dia a teus pés florindo a tua boca
porque tu
és o dia porque tu és
terra
onde eu há milhares de anos vivo a parábola
do rei
morto, do vento e da primavera
Quanto ao
de toda a gente - tenho visto qualquer coisa
Viagens a
Paris - já se arranjaram algumas.
Enlaces e
divórcios de ocasião - não foram poucos.
Conversas
com meteoros internacionais - também, já por cá
passaram.
E sou, no
sentido mais enérgico da palavra
na carruagem
de propulsão por hálito
os amigos
que tive as mulheres que assombrei as ruas por onde
passei uma só vez
tudo isso
vive em mim para uma história
de
sentido ainda oculto
magnífica irreal
como uma
povoação abandonada aos lobos
lapidar e
seca
como uma
linha férrea ultrajada pelo tempo
é por
isso que eu trago um certo peso extinto
nas
costas
a servir
de combustível
é por
isso que eu acho que as paisagens ainda hão-de vir a ser
escrupulosamente
electrocutadas vivas
para não
termos de atirá-los semi-mortas à linha
E para
dizer-te tudo
dir-te-ei
que aos meus vinte e cinco anos de existência solar estou
em franca ascensão para ti O
Magnífico
na
cama no espaço duma pedra em Lisboa-Os-Sustos
e que o
homem-expedição de que não há notícias nos jornais nem
lágrimas à porta das famílias
sou eu
meu bem sou eu partido de manhã encontrado perdido entre
lagos de incêndio e o teu retrato
grande!
(Pena capital)
*
O POETA CHORAVA...
O poeta chorava
o poeta buscava-se todo
o poeta andava de pensão em pensão
comia mal tinha diarreias extenuantes
nelas buscava uma estrela (talvez a salvação?)
O poeta era sinceríssimo honesto total
raras vezes tomava o eléctrico
em podendo
voltava
não podendo
ver-se-ia
tudo mais ou menos
a cair de vergonha
mais ou menos
como os ladrões
E agora o poeta começou por rir
rir de vós ó manutensores
da afanosa ordem capitalista
depois comprou jornais foi para casa
leu tudo
quando chegou à página dos anúncios
o poeta teve um vómito que lhe
estragou
as únicas que ainda tinha
e pôs-se a rir do logro, é um tanto
sinistro
mas é inevitável, é um bem, é uma
dádiva
Tirai-lhe agora os poemas que ele
próprio despreza,
negai-lhe o amor que êle mesmo
abandona,
caçai-o entre a multidão.
Subsistirá. É pior do que isso.
Prendei-o. Viverá de tal forma
que as próprias grades farão causa com
êle.
E matá-lo não é solução.
O poeta
O Poeta
O POETA
destroi-vos
(Nobilíssima visão)
*
![]() |
Naniôra - uma e duas (1960) |
*
ESTAÇÃO
Esperar ou vir esperar querer ou vir
querer-te
vou perdendo a noção desta subtileza.
Aqui chegado até eu venho ver se me
apareço
e o fato com que virei preocupar-me,
pois chove miudinho
Muita vez vim esperar-te e não houve
chegada
De outras, esperei-me eu e não apareci
embora bem procurado entre os mais que
passavam.
Se algum de nós vier hoje é já
bastante
como
comboio e como subtileza
Que dê nome e espere. Talvez
apareça.
(Pena capital)
*
POEMA
Em todas as ruas te
encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o
teu corpo
sonhei tanto a tua
figura
que é de olhos
fechados que eu ando
a limitar a tua
altura
e bebo a água e
sorvo o ar
que te atravessou a
cintura
tanto tão perto
tão real
que meu corpo se
transfigura
e toca o seu
próprio elemento
num corpo que já
não é seu
num rio que
desapareceu
onde um braço teu
me procura.
(Pena capital)
*
![]() |
Este é meu testamento de poeta (1994). |
*
Em nota à primeira
edição, Cesariny conta que vendia o fragmento a seguir para parentes e amigos
nas festas de Natal e Ano Novo. “O poema já é antigo, mas também é barato e
sempre anima o ambiente”. Explica ainda que simplificar Pessoa, partindo de
algo da sua linguagem é “coisa em que cada um só deve cair uma vez”.
O vídeo a
seguir faz parte do disco “Entre nós e as palavras”, de 1997. Nele, Cesariny lê
a primeira estrofe do poema acompanhado de música.
LOUVOR E SIMPLIFICAÇÃO DE ÁLVARO DE CAMPOS
(fragmento)
Há uma hora, há uma
hora certa
que um milhão de pessoas
está a sair para a rua.
Há uma hora, desde
as sete e meia horas da manhã
que um milhão de
pessoas está a sair para a rua.
Estamos no ano da
graça de 1946
em Lisboa, a sair
para o meio da rua.
Saímos? Mas sim,
saímos!
Saímos: seres
usuais, gente-gente, olhos, narinas, bocas, gente feliz, gente infeliz, um
banqueiro, alfaiates, telefonistas, varinas, caixeiros desempregados,
uns com os outros,
uns dentro dos outros
torricando,
sorrindo, abrindo os sobretudos, descendo aos mictórios para apanhar
eléctricos,
gente atrasada em
relação ao barco para o Barreiro
que afinal ainda lá
estava apitando estridentemente,
gente de luto,
normalmente silenciosa
mas obrigada a
falar ao vizinho da frente
na plataforma veloz
do eléctrico em marcha,
gente jovial a
acompanhar enterros
e uma mãe triste a
aceitar dois bolos para a sua menina.
Há uma hora, isto:
Lisboa e muito mais.
Humanidade cordial,
em suma,
com todas as
consequências disso mesmo
e a sair a sair
para o meio da rua.
E agora, neste
momento – que horas são? –
a telefonista
guarda o baton na mala usa os auscultadores liga eletricamente Lisboa a Santarém
e começou o dia
o pedreiro escalou
para o telhado mais alto e cantou qualquer coisa
pra começar o dia
o banqueiro
sentou-se, puxou de um charuto havano, pensou um bocado na família
e começou o dia
a varina infectou a
perna esquerda nos lixos da Ribeira
e começou o dia
o desempregado
ergueu-se, viu chuva na vidraça, e imaginou-se banqueiro
para começar o dia
e o presidiário,
ouvindo a sineta das nove,
começou o seu dia
sem dar início a coisa alguma.
Agora fumo,
trepidação,
correias volantes
de um a outro extremo da fábrica isolada, cigarros meio fumados em cinzeiros de
prata,
bater de portas –
pás! – em muitas repartições,
uma velha a morrer silenciosamente em plena rua
e um detido a
apanhar porrada embora acreditem nele.
Agora pranto e
pranto
na bata da manucure
apetitosa do salão Azul.
Agora, regressão,
milhões de anos para trás,
patas em vez de
mãos, beiços em vez de lábios,
crocodilos a rir em
corredores bancários
apesar das mulheres
terem varrido muito bem o chão.
Agora tudo isto e
nada disto
em plena e
indecorosa licenciosidade comercial
pregando partidas,
coçando, arruinando, retorcendo o facto atrás dos vidros
- um tiro nos
miolos e muito obrigado, sempre às ordens!
(a velha já morreu
e no seu leito de morte
está agora um
automóvel verdadeiramente aerodinâmico
e a tocar telefonia: and you, and you my Darling?)
Há uma hora, Isto!
Há duas, ISTO!
E eu?
Eu, nada. Eu, eu, é
claro...
Paro um pouco a enrolar
o meu cigarro (chove)
e vejo um gato
branco à janela de um prédio bastante alto
Penso que a questão
é esta: a gente – certa gente – sai para a rua,
cansa-se, morre
todas as manhãs sem proveito nem glória
e há gatos brancos
à janela de prédios bastante altos!
Contudo e já agora
penso
que os gatos são os
únicos burgueses
com quem ainda é
possível pactuar –
veem com tal
desprezo esta sociedade capitalista!
Servem-se dela, mas
do alto, desdenhando-a...
Não, a probabilidade
do dinheiro ainda não estragou inteiramente o gato
mas de gato pra
cima – nem pensar nisso é bom!
Propalam não sei
que náusea, retira-se-me o estômago só de olhar para eles!
São criaturas, é
verdade, calcule-se,
gente sensível e às
vezes boa
mas tão
recomplicada, tão biolo-cosida, tão ininteligível
que já conseguem
chorar, com certa sinceridade,
lágrimas cem por
cento hipócritas.
E o certo é que
ainda têm rapazes de Arte, gente
que pôs a alegria a
pedir esmola e nessa mesma noite foi comprar para o cinema
porque há que ir ao
cinema, êle é por força, é por mor de Deus, ah, não! não! isso não!, não se atravessem [nesta bilheteira!!
Vamos estar tão
bem! Vai tudo ser Tão Bonito!
Ah, e quem é que vê
o logro? A quem é que isto cheira a ranço?
Porque é que a
freguesa de Panos Limitada não exige três quartas de cinema
e sim três quartas
partes de lã carneira?
Porque é que a
pianista compra do Alves Redol
quando está a
pensar nas pernas e no peito do louro galã yankee?
E porque raio
despede o senhor Director três humílimos empregados
quando a verdade é
que já lá vão três meses e ainda não viu um que lhe enchesse as medidas?
Com certa espécie
de solidariedade
lembro-me de ti,
Mário de Sá-Carneiro,
Poeta-gato-branco à
janela de muitos prédios altos.
Lembro-me de ti,
ora pois, para saudar-te,
para dizer bravo e
bravo, isso mesmo, tal qual!
Fizeste bem, viva
Mário!, antes a morte que isto,
viva Mário a laçar
um golpe de asa e a estatelar-se todo cá em baixo
(viva,
principalmente, o que não chegaste a saber, mas isso é já outra história...)
E com uma
solidariedade muito mais viva
lembro-me de ti,
meu vizinho de baixo,
sapateiro-gato-branco,
mas no rés-do-chão, desta vez...
É curioso que não
te possas suicidar
só porque a tua
janela está ao nível do mundo
e que cantes
alegremente de manhã à noite
como uma casa de
seis andares em cima de ti.
Também tu foste
empurrado, também te disseram: Fora, gato!
Mas achaste isso
quase natural (e não o é, deveras?)
E agora, guardando
em ti todas as tuas grandes qualidades
vais vivendo um
pouco à margem, um pouco no quinto andar...
Deito fora o
cigarro que já me sabia a amargo
e decido-me a andar
– mas para quê? Mas para onde?
As lojas estão
abertas mas nunca se viu coisa tão fechada
Ah! heróis do
trabalho, que coisas raras fazeis!
Não sou um
proletário – vê-se logo
- mas odeio
cordialmente a gataria
e quanto a
crocodilos, nem os do Jardim Zoológico me atraem
quanto mais estes!
– E aqui é que começa o embróglio...
O pouco amor que eu
tive à burguesia
deixei-o todo numa casa
de passe
quando me
perguntaram: quer assim? Ou assim?
E agora, era fatal,
falto ao escritório,
falto ao
escritório, pontualmente, todas as manhãs.
Mas vejamos, ó
minha alma, se podes, arrumemos
um pouco a casa
escura que te deram.
Eu
estudei música, como
toda a gente
(ou talvez um pouco
mais do que toda a gente?)
Não. Por aqui não
nos entenderemos.
Estudemos outro
papel. Outro fim. Outras músicas.
Recomecemos: Um:
Estes versos não
querem de modo algum ser versos
porque quem hoje em
Portugal quer de algum modo fazer versos versos
está em muito maus
lençóis
(este o primeiro
artigo da minha constituição)
Segundo:
Apesar de tudo, saí
para a rua com bastante naturalidade
e que vi eu? Que é
isto? (e que esperava eu ver?)
Terceiro:
(e aqui começa,
talvez, o desembróglio)
vi também um vapor
que ia para o Barreiro
e tive pena de não
ir com ele
mas não sou um
proletário (não, ainda não)
e atravessar a nado
– quem é que disse que pode?
Fiquei-me a vê-lo:
primeiro junto ao cais
com um certo ar
simpático de proletário dos mares
e apinhado de gente
– tanta espécie dela!
Depois a meio do
rio, destacado e nítido,
depois um ponto
vago no horizonte (ó minha angústia!)
ponto cada vez mais
vago no horizonte
e de repente, ao
virar uma esquina, já depois de outra esquina,
vejo uma nova
espécie de enforcado
um homem novo em
cima de um escadote
a colar afixar
cartazes deste género:
VOTA POR SALAZAR
Páro. Páro de novo.
Pararei sempre enquanto
afixarem cartazes
deste género.
Um chefe não é
grande pelo nome que arranjou.
Salazar Xavier
Francisco da Cunha Altinho isso que importa.
Um chefe é grande
pelas suas obras, pelo amor que inspira.
Pois os fascistas
os nossos bons fascistas
querem que a gente
vote por um nome
por um nome calcula
essa coisa qualquer que qualquer fulano tem!
Vota por Salazar
ora pois ó meu povo
vota por sete
letras muito bem arrumadas em três sílabas.
Deito a cabeça para
trás para deixar sair a gargalhada
e aproximo-me do
homem em cima do escadote
aproximo-me tanto
que ele nota
alguém que se
aproxima
e o braço cai-lhe,
grosso, pingando água num balde
... ... ... ... ...
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
... Dá os bons dias
a este irmão, a este bom irmão
que anda a colar
cartazes para não morrer de fome!...
... ... ... ... ...
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...
(Nobilíssima visão)
*
![]() |
O operário (1947) |
*
![]() |
Homenagem a Luis Buñuel (1968) |
*
Autografia, de
Miguel Gonçalves Mendes (2004)
***
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