Em setembro deste ano fizemos um post em
torno do Roberto Piva. O post era um tributo de Clarissa Freitas ao doc
“uma outra cidade” de Ugo Georgette. Histórias + poemas de
Antonio Fernando de Franceschi, Rodrigo Haro, Jorge Mautner e Claudio
Willer. Piva rondava o post (sendo inclusive sido citado no título) mas
não aparecia com nenhum texto. Esta primeira postagem dedicada à sua poesia é
uma espécie de complemento/desdobramento do post de setembro.
Trazemos, então, o documentário de Ugo
Georgette, diretamente dos arquivos de carlos lima, + uma seleção de Paranoia (1963) e Piazzas (1964), os dois primeiros livros de
Roberto Piva, que dialogam diretamente com o ambiente descrito tanto no doc
quanto no post de setembro. (Não por acaso o filme começa exatamente no
relançamento de Paranoia,
em abril de 2000).
Uma sugestão que pode render leituras
interessantes é brincar do jogo dos sete erros com o doc de Ugo Georgette
e “dentes da memória” (Azougue, 2011), biografia de Camila Hungria e
Renata d’Elia sobre o mesmo período e personagens (no livro Haro e Mautner
viram coadjuvantes e Roberto Bicceli, que não aparece no doc, vira o quarto
beatle). Formalmente a montagem do livro se assemelha muito a transcrição
de um documentário.
Entre o filme e o texto, a gente imagina
Piva como um personagem do Detetives
Selvagens de Roberto
Bolaño. Piva é Ernesto San Epitáfio explicando a taxionomia literária para Juan
Garcia Madero (que pode ser Willer, Haro ou Mautner, de acordo a sua
imaginação):
Ernesto San Epifanio dissera que existia
literatura heterossexual, homossexual e bissexual. Os romances, geralmente,
eram heterossexuais, já a poesia era absolutamente homossexual, os contos,
deduzo, eram bissexuais, mas isso ele não disse.
Dentro do imenso oceano da poesia,
distinguia várias correntes: bichonas, bichas, bicharocas, bichas-loucas,
bonecas, borboletas, ninfos e bambis. Walt Whitman, por exemplo, era um poeta
bichona. Pablo Neruda, um poeta bicha. William Blake era uma bichona, sem
sombra de dúvida, e Octavio Paz, bicha. Borges era bambi, quer dizer, de
repente podia ser bichona e de repente simplesmente assexuado. Rubén Darío era
uma bicha-louca, na verdade a rainha e o paradigma das bichas-loucas.
– Na nossa língua, é claro – esclareceu –,
no vasto mundo o paradigma continua sendo Verlaine, o Generoso.
Uma louca, segundo San Epifanio, estava
mais próxima do hospício florido e das alucinações em carne viva, enquanto as
bichonas e as bichas vagavam sincopadamente da Ética à Estética, e vice-versa.
Cernuda, o querido Cernuda, era um ninfo e, em ocasiões de grande amargura, um
poeta bichona, enquanto Guillén, Aleixandre e Alberti podiam ser considerados
bicharoca, boneca e bicha, respectivamente. Os poetas tipo Carlos Pellicer
eram, via de regra, bonecas, enquanto poetas como Tablada, Novo, Renato Leduc
eram bicharocas. De fato, a poesia mexicana carecia de poetas bichonas, embora
algum otimista pudesse pensar que aí se enquadravam López Velarde ou Efraín
Huerta. Bichas, em compensação, abundavam, do maldoso (mas por um segundo
escutei mafioso) Díaz Mirón até o conspícuo Homero Aridjis. Deveríamos remontar
a Amado Nervo (vaias) para encontrar um poeta de verdade, quer dizer, um poeta
bichona, e não um bambi como o agora famoso e reivindicado potosino Manuel José
Othón, pesadão como ele só. E falando de poetas pesados: borboleta era Manuel
Acuña e ninfo dos bosques da Grécia, José Joaquín Pesado, perenes cafetões de
certa lírica mexicana.
– E Efrén Rebolledo? – perguntei.
– Uma bicha menorzíssima. Sua única virtude
é ser, se não o único, oprimeiro poeta mexicano a publicar um livro em Tóquio, Rimas japonesas, 1909. Era
diplomata, claro.
O panorama poético, afinal de contas, era
basicamente a luta (subterrânea), o resultado da pugna entre poetas bichonas e
poetas bichas para se apropriarem da palavra. As
bicharocas, segundo San Epifanio, eram poetas bichonas no sangue, que, por
fraqueza ou comodidade, acatavam – se bem que nem sempre – os parâmetros
estéticos e vitais das bichas. Na Espanha, na França e na Itália os poetas
bichas foram legião, ele dizia, ao contrário do que poderia pensar um leitor
não excessivamente atento. O que acontecia era que um poeta bichona feito
Leopardi, por exemplo, reconstrói de alguma maneira os bichas feito Ungaretti,
Montale e Quasimodo, o trio da morte.
– Do mesmo modo, Pasolini retoca a bichice
italiana atual, vejam o caso do pobre Sanguinetti (com Pavese eu não me meto,
era uma bicha-louca triste, exemplar único de sua espécie, nem me meto com Dino
Campana, que come em mesa à parte, a mesa das bichas-loucas terminais). Para
não falar da França, grande língua de fagocitadores, em que cem poetas
bichonas, de Villon à nossa admirada Sophie Podolski, apascentaram, apascentam
e apascentarão com o sangue de suas tetas dez mil poetas bichas com sua corte
de bambis, ninfos, bonecas e borboletas, excelsos diretores de revistas
literárias, grandes tradutores, pequenos funcionários e grandíssimos diplomatas
do Reino das Letras (ver, se for o caso, o lamentável e sinistro discorrer dos
poetas da Tel Quel). E nem
falemos da bichice da Revolução Russa, em que, se tivermos que ser sinceros, só
houve um poeta bichona, um só.
– Quem? – alguém lhe perguntou.
– Maiakovski?
– Não.
– Essenin?
– Também não.
– Pasternak, Blok, Mandelstam, Akhmatova?
– Muito menos.
– Diga de uma vez, Ernesto, estou roendo as
unhas de curiosidade.
– Só um – San Epifanio disse –, e tiro já a
sua dúvida, mas este sim, bichona das estepes e das neves, bichona da cabeça
aos pés: Khlebnikov
###
Aqui na bliss consideramos o Piva uma
bichona, detetive selvagem no deserto de São Paulo. Mas sei que já disseram por
aí, e foi pessoa seria quem falou, que ele não passa de uma bicha. Azinimiga
chegaram a dizer que era na verdade uma bambi.
***
De Paranoia (1963)
A Piedade
Eu urrava nos poliedros da Justiça meu
momento abatido na extrema
paliçada
os professores falavam da vontade de
dominar e da luta pela vida
as senhoras católicas são piedosas
os comunistas são piedosos
os comerciantes são piedosos
se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e
só se ergueria aos
sábados à noite
Eu seria um bom filho meus colegas me
chamariam cu de ferro e me
fariam perguntas por que navio boia? Por
que prego afunda?
Eu deixaria proliferar uma úlcera admiraria
as estátuas de
fortes dentaduras
Iria a bailes onde eu não poderia levar
meus amigos pederastas ou
barbudos
eu me universalizaria no senso comum e eles
diriam que tenho
todas as virtudes
eu não sou piedoso
eu nunca poderei ser piedoso
meus olhos retinem e tingem-se de verde
Os arranha-céus de carniça se decompõem nos
pavimentos
Os adolescentes nas escolas bufam como
cadelas asfixiadas
arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte
através dos meus sonhos
*
Boletim do Mundo Mágico
Meus pés sonham suspensos no Abismo
minhas cicatrizes se rasgam na pança
cristalina
eu não tenho senão dois olhos vidrados e
sou um órfão
havia um fluxo de flores doentes nos
subúrbios
eu queria plantar um taco de snooker numa estrela fixa
na porta do bar eu estou confuso como
sempre mas as galerias do
meu crânio não odeiam mais a batucada dos
ossos
colégios e carros fúnebres estão desertos
pelas calçadas crescem longo delírios
punhados de esqueletos são atirados no lixo
eu penso nos escorpiões de ouro e estou
contente
os luminosos cantam nos telhados
eu posso abrir os olhos para a lua
aproveitar o medo das nuvens
mas o céu roxo é uma visão suprema
minha face empalidece com o álcool
eu sou uma solidão nua amarrada a um poste
fios de telefônicos cruzam-se no meu
esôfago
nos pavimentos isolados meus amigos
constroem um manequim fugitivo
meus olhos cegam minha mente racha-se de
encontro a uma calota
minha alma desconjuntada passa rodando
*
Os anjos de Sodoma
Eu vi os anjos de Sodoma escalando
um monte até o céu
E suas asas destruídas pelo fogo
abanavam o ar da tarde
Eu vi os anjos de Sodoma semeando
prodígios para a criação não
perder seu ritmo de harpas
Eu vi os anjos de Sodoma lambendo
as feridas dos que morreram sem
alarde, dos suplicantes, dos suicidas
e dos jovens mortos
Eu vi os anjos de Sodoma crescendo
com o fogo e de suas bocas saltavam
medusas cegas
Eu vi os anjos de Sodoma desgrenhados
e
violentos aniquilando os mercadores
roubando o sono das virgens
criando palavras turbulentas
Eu vi os anjos de Sodoma inventando
A loucura e o arrependimento de Deus
*
Poema porrada
Eu estou farto de muita coisa
não me transformarei em subúrbio
não serei uma válvula sonora
não serei paz
eu quero a destruição de tudo que é frágil
cristãos fábricas palácios
juízes patrões e operários
uma noite destruída cobre os dois sexos
minha alma sapateia feito louca
um tiro de máuser atravessa o tímpano de
duas centopeias
o universo é cuspido pelo eu sangrento
de um Deus-Cadela
as vísceras se comovem
eu preciso dissipar o encanto do meu velho
esqueleto
eu preciso esquecer que eu existo
mariposas perfuram o céu de cimento
eu me entrincheiro no Arco-Íris
Ah voltar de novo à janela
perder o olhar nos telhados como
se fossem o Universo
o girassol de Oscar Wilde entardece sobre
os tetos
eu preciso partir um dia para muito longe
o mundo exterior tem pressa demais
para mim
São Paulo e a Rússia não podem parar
quando eu ia ao colégio Deus tapava os
ouvidos para mim?
a Morte olha-me da parede pelos olhos
apodrecidos
de Modigliani
Eu gostaria de incendiar os pentelhos de
Modigliani
minha alma louca aponta para a Lua
vi os professores e seus cálculos discretos
ocupando
o mundo do espírito
vi criancinhas vomitando nos radiadores
vi canetas dementes hortas tampas de
privada
abro os olhos as nuvens tomam-se mais duras
trago o mundo na orelha como um brinco
imenso
a loucura é um espelho na manhã de pássaros
sem Fôlego
*
Meteoro
Eu direi as palavras mais terríveis esta
noite
enquanto os ponteiros se dissolvem
contra o meu poder
contra o meu amor
no sobressalto da minha mente
meus olhos dançavam
no alto da Lapa os mosquitos me sufocam
que me importa saber que as mulheres
são
férteis se Deus caiu no mar
Kierkegaard pede socorro numa montanha
da Dinamarca?
os telefones gritam
isoladas criaturas caem do nada
os órgãos de carne falam morte
morte doce carnaval de rua do
fim do mundo
eu não quero elegias mas sim os lírios
de ferro dos recintos
há uma epopeia nas roupas penduradas
contra
o céu cinza
e os luminosos me fitam do espaço alucinado
quantos lindos garotos eu não vi sob esta
luz?
***
De Piazzas (1964)
Piazza VI
Algumas vezes
as bombas de sorvete
caindo há 15 anos
durante a tempestade
Sem ler
Freud ou Villon
os garotos
rompem barreiras
então em qualquer
terreno baldio
iluminam
vestem-se
no furacão do amor humano
onde
um cometa
se desdobra
TESTE DI RAGAZZI CHE RIDONDO
nos céus
de whisky
em cada
canto da boca
cósmica
Matéria & clarineta
As panteras das plumas & as tranças das
estrelas
numa fuselagem sem saída
um pelicano de tempos em tempos esganiça o
mar dos
ambulantes
noite de meninos com corações brancos
fendas diminuídas na imóvel
lamentação entre a sopa
& o garfo de
polaroide
os canteiros dos clavicórdios em oblíqua
oração sob os
dentes
um curto langor & velas ampliando
*
Piazza VII
O equilíbrio (embora meu)
é um pouco teu como esta luz ao nível da
maré
que tu divides benfeitor fascinando meu
olho de fogo
justo
é a vibração impossível de domar agora na
potência do
vazio celeste
dizem que urras
desmaias & tens visões
rolando sobre tua boca dilatada as auroras
feitas de
Presa
*
Piazza VIII
Eu aprendi com Rimbaud
& Nietzsche os meus
toques de INFERNO
(Anjos de Freud
sustentai-me!)
& afirmando isto
através dos quartos sem teto
& amores azuis
eu corro até a colher de espuma fervente
driblando-me no
cemitério
faminto da última FOME
com tumbas & amantes cheios de pétalas
porque o céu foi nossa última chance
esta noite
*
Piazza IX
Os corações árticos coçavam suas cabeleiras
cultivando
a morte
grandes & ardentes no mesmo sopro de um
mesmo
sorriso apodrecido
purificados como os nossos idênticos
pioneiros metálicos
às vésperas dos trovões de ar que nos
arrebatam as
cabeças para o céu
sobre os muros de plenas dissecações ao
brilho
inesperado do salmão das nuvens
nas cidades circulares de dolorosos
espinhos atômicos
na infância cor de pêssego como a hora do
amor
em cada solitário as mesmas oitavas com
ossos à mostra
éter & línguas sólidas que nós não
vemos
catalogadas ao lado trágico das mesmas
ondas paralelas
aquelas que nos transportam vencendo toda a
paisagem
purulenta
gotas de meninos morenos mudados em
nevoentos
cascalhos de desolação
nas montanhas murchas de luar onde a
lembrança é
cinzenta
correndo teu arco na tempestade solar da
incerteza
o dia escurecia a auréola dos mortos
descobridores de
Mágicas
*
PIAZZA XII
Teus olhos amarelos
ritmados
numa ferida distante
de AMOR
A Rosa Azul & vazia como uma gaveta de
hotel
Diga-me langorosamente os pequenos
mamelucos
tremem
em tentáculos eletrificados
eu
provo tua boca
as
folhas se desorganizam
em
tapeçarias outonais
&
nas curvas de teus RINS
Fotografando em cores (em supremo grau como
o
fogo na floresta)
uma cidade sagrada tão
AZUL
***
Uma outra cidade, de Ugo Giorgetti
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