Um móbile
transparente. Tanto que se confunde com o próprio vento. A não ser, talvez,
pela percussão mínima das peças de sua arquitetura de quando a brisa sopra.
Difícil pensar em imagens que não sugiram leveza, frescor, ou em sons como o do
farfalhar, o do deslocamento de ar quando se passa de raspão por alguém: todo
um conjunto de coisas aproximadas ao vento, ou na sua forma mais delicada, a
brisa, vem à mente quando estamos diante dos poemas de Caio Carmacho. Trata-se
de brisa, mas brisa que, ao invés de fazer carinho aos sólidos prometendo o dom
do que é suave, desloca-os, movimenta-os, tirando de seu espaço cotidiano,
recombinando-os, fazendo trocas (de órgãos, de sexos, mashups de discursos e
corpos múltiplos) e enxertos impossíveis.
Ao lado
da questão do peso e do movimento, outro elemento que a poesia de Caio traz à
cena é uma figuração do tamanho através de um exercício de perspectiva: só se
fala do que é comumente tido como grande a partir de um ponto de vista ancorado
no mínimo (pilares da filosofia se encontram nos gestos de lavar e de enxugar a
louça), e o mínimo, em exame microscópico, se encontra sempre deslocado ou em
deslocamento – imagens em trânsito, desfocadas em função da velocidade. Em afinidade, um dos poemas de seu primeiro
livro, publicado pela Ed. Patuá, em 2013, livre-me,
lê-se: “tenho carinho especial por canetas/ isqueiros e bujões de gás”. Aqui, o
que importa não é apenas o conjunto de objetos reunidos em sua pouca elevação
poética, mas a rapidez da passagem – do instrumento da escrita ao objeto
incendiário, de líquido inflamável, do líquido ao gasoso. Afinidade entre o ar
e o fogo.
Caio
organiza todo ano, em Paraty, cidade onde cresceu, o evento poético Picareta Cultural que, no próprio nome, busca
desviar de qualquer gravidade e oficialidade pretensa que quer a poesia a salvo
da pinga, do movimento da brisa, do fogo e do vento.
Nesta
semana, 5 poemas novos de Caio Carmacho, e uma pequena antologia retirada de livre-me.
***
Poemas
Novos
a filosofia ocidental
se fundamenta em três pilares
de sabedoria:
lavar a louça
enxugar a louça
pensar na vida
*
tao e quao
será que sou um monange a sonhar
com a xuxa
ou a xuxa
a sonhar que é um
monange?
*
cena do crime
o voo do pássaro
não é igual ao voo
da mosca
o voo da mosca
não possui a mesma carga
poética que o voo do pássaro
o voo da mosca é antes de
tudo ideológico
assim como a aparição
de uma barata
e foi assim que tudo aconteceu:
havia uma mosca e havia um
baygon
sinatra cantava ao fundo
fly me tothemoon
*
canção de ninar futuros
descanse em paz
tudo que é resto
matéria ignota
de obra em progresso
sobras completas
digeridas à lamartinho
devagar
devagarinho
enquanto te cubro de silêncios
e estrelas
sussurro vanguardas
dentro de headphones
de conchas marinhas
só e somente só para os seus ouvidos:
dorme menino
*
mudança de pele
S
onho
que sou uma
cobra
dentro
de
outra
cobra
que
se
devora
que
se
adapta
em
cada
lugar
que
passa
deixando
pra trás
somente
a carcaça
o ofício do ofídio
: as presas à mostra
nem adão nem eva
me banirão
do paraíso
na lira
do delírio
enveredar
minha
história
acordar
para
o
fu
tu
ro
com
sonho
de
agora
***
De Livre-me (2013 - Patuá).
meia furada
são trinta,
trinta e cinco
centavos
trinta e cinco
segundos
trinta, trinta
e tantos avos
desesperados
essa meia furada
sou eu
por isso amor,
não me ligue a cobrar
*
a brisa como ela é
viaja meses sem passaporte
os agentes do governo nem desconfiam
a ousadia
enquanto barram imigrantes de diversas etnias
vai passando incógnita pelo detector
de metais
com seu hálito de halls preto
vitimiza rostos narizes olhos nucas orelhas
e sai pela porta da frente à francesa
sem autógrafos flashes
adeuses
atravessa ruas
descabela as horas
arranha gargantas
escapa às definições
e aos dedos
não contente
, antes de voltar ao trabalho,
tira para dançar
todos os sacos plásticos abandonados
pelas feirinhas dos bairros
e os passantes pensam:
‘ai ai que ventinho bom...’
e os velejadores pensam:
‘hoje é dia!’
e a mocinha do tempo:
‘uma nova frente fria se aproxima...’
e os parapentistas:
‘voar-voar subir-subir’
e a nasa:
‘houston, we have a
poem’
e os andinos da praça da sé
bem... os andinos da praça
da sé
só pensam em tocar céline dion
para suas lhamas apaixonadas
*
latin lovers
um dia você vai entender
que eu não sou nada daquilo que
você esperava
príncipe de bengala
escondendo a espada
um dia você vai esperar
que eu nade a favor da corrente
rente à raia da ponta esquerda da piscina
onde você me aguarda
com raiva e uma toalha
meu piscalerta aceso
minha saída da sauna ou da praia
um dia você vai nadar e nadar e nadar
não dar em nada
e até lá talvez você me interne e eu te entenda
e passemos a nos frequentar religiosamente
às terças
um dia trocaremos enfim o sexo
e os papéis
e leremos juntos a gê magazine
do vampeta
e desse dia em diante
todo canto de sereia
será regido
por escopetas
*
fuga de alcatraz
e de repente a gente arrisca
risca o fósforo sobre a monotonia
tchau colchão
zona de conforto
falsa alegria
*
rins
o que me entristece
não são os 5 reais gastos,
mas a alegria
transbordando a latrina
*
no dia em que eu parar de fumar
não haverá fogos nem rojões
de torcidas organizadas e desorganizadas
não me ofertarão virgens para serem sacrificadas
não me convidarão para surubas ou festinhas
vegetarianas
regadas a suco de laranja
no dia em que eu parar de fumar
nenhuma estrela brilhará inédita no céu
nenhum feriado será decretado
nenhuma moção de aplausos acontecerá
ninguém reprovará minha loucura
ninguém recomendará terapia
ninguém dirá o que todo mundo diz
no dia em que eu parar de fumar
me tornarei careta oficialmente
e dispensarei todo o álcool do planeta
e todos os poemas serão saudáveis
com o hálito fresco brotando
da boca, corpo e cabelos
no dia que eu parar de fumar
por maior que seja a minha vontade
o mundo não se acabará
*
saravá onan!
um lance de dedos jamais abolirá
o desejo
*
ESTE LADO PARA CIMA
não se deixe enganar caro leitor
para ler este poema é necessário
CUIDADO
muito cuidado
sua arquitetura branca e
FRÁGIL
pode não impressionar no princípio
afinal, para compreendê-lo a fundo é preciso
familiaridade e um manual prático
para a interpretação de tipos
porque nem toda surpresa vem embrulhada
em papel de presente
nem toda surpresa
inclui pilhas
nem toda surpresa
chega lacrada com um
cartão: de: para:
que nem todo entregador não
consiga violá-la
porque o poema, caro leitor,
é um eterno convite
conteúdo que cabe
numa embalagem que se abre
*
o poema pergunta ao poeta como veio ao mundo
papai fez você de pau duro
*
baratas aladas
vêm e vão
vão
e vêm
no
vaivém do
verão
*
mashup
eu de cueca abrindo uma brahma gelada
a queda do muro de Berlim
o espelho do banheiro, o embaço, o suor das coisas suas
gotas
crianças atirando pedras nos jambeiros
um lençol branco um corpo estendido pessoas ao redor
de pessoas
: “não há nada para se ver aqui”
é proibido proibir
a vida com suas lentes polarizadas
convida para
uma dança espontânea
uma foto espontânea
um macarrão instantâneo
uma barra forte rasgando ruas sem freio
abrir os olhos dentro da piscina
abrir os olhos dentro do mar
abrir os olhos dentro da vagina:
respirar
uma coleção de clichês pode me servir perfeitamente neste
momento
plataforma de petróleo
extraindo lágrimas do olhos
um pavão que abre seu leque
prismático
não sabe os abalos sísmicos que provoca
a beleza é uma península situada
entre o coração o pulmão e o cérebro
de nada adianta fotos e postais
quem nunca esteve lá, além de não saber
o que estou
sentindo
não faz ideia do que estou
falando
*
western spaghetti
a trégua cessou com a chegada
do carteiro
não se aproxime, eu disse
ele ignorou
adverti-o novamente
me olhou de esguelha
um feno cruzava as duas extremidades
da garagem
um carro de som anunciava as pamonhas
de piracicaba
as contas do mês
me acertaram mais rápido que
qualquer bala
*
oração para ades, o deus suco
ergo o cálice de requeijão
e faço um brinde
ao deus dos deuses
invocando das profundezas
de minha gaveta de verduras decaídas
e frutas imemoriais
a fé inquebrantável em sua força
oculta
vaca profana de tetra pak sob a luz
frígida de minha geladeira
seu sangue de maçã de soja tem poder
seu sangue de uva de sola tem poder
seu sangue de manga de soja tem poder
abençoado vou à academia
onde te abro e te sorvo
como um fiel absorto
na sua própria adoração
sejam louvados em todo o universo
todas as casas todas as camas todas as gôndolas
de todos os supermercados
paratodoosempre
ó magnificiente deus sucão
e seu insólito rebanho
amém!
*
lição 100% algodão
a mãe adoeceu,
não teve jeito
aprendeu sozinho
a lavar
as próprias roupas
desde então
nunca mais tirou da
cabeça
as pequenas coisas
importantes
a mãe, o alvejante
*
a importância do convívio
dia de velório reúne
a família
ninguém sabe ao certo
o motivo
é um aniversário
ao contrário
a morte
serve para lembrar
o que se deve guardar
plantar os vivos
cuidar
dos vivos
aguentar os vivos
viver
com os vivos
enquanto há tempo
*
composição
e agora
que faremos
?
faremos nus
*
livre-me III (ensaio & conclusão)
livre-me como um pedido do livro-objeto
um mendigo que dá moedas no semáforo
um slogan de modess
livre-me como passe de mágica
oferenda de réveillon
abolição da autorreferência
livre-me: um mantra
uma proposta
um estratagema
livre-me dos rótulos
dos complexos
olheiras
correntes
literárias ou não
livre-me dessa cruz pesada
leve-me para casa
lave-me com buchinha
and love me
como se não houvesse amanhã
***
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