A produção artística de Victor Heringer é tanto
extensa quanto diversa. Aqueles que acessarem seu site [aqui] poderão
atravessar plaquetes de poesia – uma delas, trabalhada de um modo hipertextual
infinitamente divertido e algo obsessivo – séries de vídeopoemas, discos e
outros objetos de experimentação musical, feitos em parceria, com Dimitri BR,
ou com Benjamim Alencar, poemas visuais, poemas-objetos. Além disso, ele já
publicou dois livros, ambos, pela 7letras – um de poemas, o Automatógrafo, de 2011, um romance, Glória, de 2012, premiado com o 2º lugar
do prêmio Jabuti de Melhor Romance de 2013. Além disso, ele lançou recentemente
os contos Lígia e Sebastianópolis, e tem escrito crônicas
para Revista Pessoa.
Na postagem de hoje, apresentamos apenas parcialmente
essa sua veia prolífica e tão marcada por diferentes experiências. Trazemos
dois poemas inéditos, poemas visuais, um dos capítulos de seu romance e um
ensaio de Lucas Matos, escrito na tentativa de tentar marcar alguns dos
traçados de sua produção artística.
Em algumas das pequenas bios que apresentam
o poeta, se encontra o ano de seu nascimento, 1988, com o segundo oito deitado
de lado, quando ele nasceu, era o tempo do infinito. Talvez sua poética
pratique a lição de Torquato Neto com pequeno deslocamento, e viva
(in)traquilamente todos os dias do sem fim.
***
Dois
poemas circunstanciais inéditos
você sabia
manuel bandeira foi candidato a deputado
pelo partido socialista brasileiro
tanta gente querendo sair da caverna do
platão
tanta gente querendo entrar
sei não sei não
teve aquele conselho do camus pro gerardo
mello mourão
os escritores devem sofrer a história
não tentar fazê-la
sei não sei não
(19 de março)
*
lição
de botânica número dois
o que muda é o amor
mas o amor não muda
***
Capítulo
de Glória (2012)
LI
As confissões de mamãe
And the poor old lousy earth, my earth and my father's
and my mother's and my father's father's and my mother's mother's and
my...
Beckett
O quarto em que D.
Noemi dormia, na casa de Santa Maria Madalena, havia abrigado o arquivo morto
de D. Letícia: doze caixas com fotos de juventude, recortes de jornal e
documentos mundanos – contas, recibos, passaportes virgens, cartas de antigos
amantes. No dia em que soube que o sobrinho-neto viria morar com ela, no
entanto, a velha pediu a ajuda de Conceição para destruir tudo.
As duas passaram
uma tarde memorável sentadas no quintal, ao redor da fogueira que ia consumindo
as lembranças que D. Letícia atirava, uma a uma, ao fogo. Trocaram histórias de
mocidade. Fizeram as pazes com os desafetos do passado, muitos deles já mortos,
e com as próprias vidas. Choraram juntas, mas sem se abraçar. Após aquele dia,
a patroa começou a definhar e, quando morreu, Conceição ficou tão desamparada
que se deu conta de que não precisava dizer mais coisa alguma. Reduziu a voz
aos "ughrruns" e resolveu que esperaria a morte grunhindo.
Ao contrário do que
havia imaginado, os "ughrruns" acabaram lhe servindo muito bem. Os
poucos que realmente queriam entender entendiam-na sem a necessidade de mímica
ou de outros jogos adivinhatórios. A maioria, porém, gostava só de falar, e
Conceição compreendeu logo que roncar, tagarelar, gritar ou ficar quieta, no
mais dos casos, dava no mesmo. As pessoas simplesmente concordavam com os
"ughrruns" e seguiam falando, porque tinham certeza de que os
"ughrruns" concordavam com elas. E, mesmo se Conceição dissesse, com
todas as letras, que não concordava com isto ou com aquilo, elas ainda assim
ouviriam um "sim" cristalino num "não", um "sim"
num "talvez", um "sim" num "cala a boca", etc. e
etcétera. Gastar saliva era inútil. As conversas em geral não passam de
comércio de grunhidos, Conceição pensava (não nesses termos). Uma mulher tem só
uma conversa verdadeiramente significativa na vida. Duas ou três, se der sorte.
Às vezes, Conceição
passava horas dentro do antigo arquivo morto, limpando o já limpo, tirando uma
poeira que não existia mais, com uma expressão que podia tanto ser de medo como
de saudade. Não se importava com a presença dos outros. Com a lentidão de
sempre, espanava as paredes nuas, a mobília decrépita e o imenso espelho
carcomido de manchas avermelhadas, que insistia em devolver imagens mais velhas
que as originais. Começava pelo espelho. Assim que dava a volta e chegava de
novo a ele, substituía o espanador pelo pano, ou o pano pela vassoura, e
recomeçava.
D. Noemi observara
muitas vezes aquele ritual. Nos primeiros dias de sua estada no sítio, quando
ainda não sabia até que ponto ia a mudez da empregada, tentava puxar assuntos
variados, mas logo percebeu que ela não ouvia, ou fingia não ouvir, nada que
não fosse uma ordem direta.
Tinha quase certeza
de que a tia do marido havia morrido naquele cômodo.
Dormir onde
possivelmente alguém havia morrido não a incomodava.
A aparente tristeza
de Conceição tampouco a incomodava.
– A senhora tem
medo do diabo? – perguntou certa vez.
Não recebeu
resposta.
Ao longo dos dias e
das horas, as perguntas foram subindo de tom:
– A senhora não tem
medo de ter vivido para nada?
– A senhora tem
quantos anos, mais de cem?
– A senhora quer um
quebra-cabeça para montar?
Conceição ou não
respondia, ou fazia um "ughrrum" quase inaudível, sem interromper a
limpeza do quarto, com a mesma cara e os mesmos ouvidos moucos, a mesma boca de
cova vazia, as bochechas chupadas. D. Noemi nunca a tinha visto abrir a boca,
mas a imaginava sem nenhum dente, sem a língua e sem o dinheiro para comprar
dentaduras. Sentia que, para a velha, sua voz não passava de mais um ruído
doméstico, como o farfalhar da piaçaba no assoalho ou o agudo dos panos úmidos
nos vidros. Ao contrário do que se poderia imaginar, era uma sensação boa.
E as perguntas aos
poucos foram virando afirmações:
– O silêncio da
senhora parece coisa religiosa.
– Está frio.
– Os quebra-cabeças
de 5000 peças são mais fáceis que os de 1000.
Por virtude de
tanto silêncio, D. Noemi passou a confiar naquela criatura tardia, quase
imortal, que entrava sem pedir licença e saía sem cerimônias, muitas vezes bem
no meio de uma frase. Passou a esperá-la no quarto todos os dias, com a
ansiedade que deviam sentir os fiéis de Abel antes dos cultos. Quando a velha
enfim aparecia, depois de ausências longas ou curtas, o silêncio se instalava
forte, espraiava-se, fazia cócegas no nervo cristão de D. Noemi. Como se fosse
natural, a quietude acabou por transformar os ouvidos surdos de Conceição no
substituto ideal para os ouvidos surdos de Deus. O antigo arquivo morto de D.
Letícia ganhou ares de capela. As afirmações de D. Noemi desapertaram em
confissões.
Confessou, por
exemplo, que não via valor simbólico em montar quebra-cabeças, que para ela era
um passatempo sem nenhum sentido. No entanto, achava que só poderia morrer em
paz depois de montar uma reprodução de "Dois caranguejos", de van
Gogh, porque gostava muito do quadro, não sabia por quê. O caso era que não conseguia
encontrar um quebra-cabeça com aquela imagem.
Disse que havia
experimentado todas as posições sexuais imagináveis com o marido, mas nunca com
outros homens. Com os outros, limitava-se ao papai e mamãe. O motivo ela também
não conhecia.
Contou que sabia
perfeitamente, como todas as mães, quais de seus filhos redundariam em nada.
Nenhuma mãe admitiria, mas todas nós sabemos, não é?, ela disse. Nenhum dos
seus três meninos ergueria a cabecinha acima da superfície, nem ao menos para
respirar um pouco. Tentavam, sem dúvida. Eram desajustados, sem dúvida, mas à
maneira dos mendigos e veteranos de guerra, não à de Artaud ou Qorpo-Santo
(explicou à velha quem foram Artaud e Qorpo-Santo). Seus filhos morreriam
afogados no caudaloso rio de brasileiros e seriam esquecidos décadas, talvez
meses depois de defuntos, disse. Venceriam por WO, como ela e o marido e os
avôs e os bisavôs e os tataravôs e os pais e avôs dos tataravôs antes deles. O
mundo nem sequer lhes faria o favor de aceitar o convite para a briga. Não o
desafiavam o bastante.
Ela tinha preparado
os filhos com amor. Sabia que cedo ou tarde teriam que entrar no ringue e fazer
alguma coisa. Ela, enquanto vivesse, só poderia ficar do lado de fora das
cordas, dando instruções. O mundo viria, com sua musculatura planetária, e os
espancaria. Bem-aventurado aquele que não fosse nocauteado no primeiro soco,
que em geral é um amor de adolescência não correspondido ou um constrangimento
público. Depois que absorvessem a primeira pancada e ficassem de pé, o combate
seria mais fácil, mas mais sangrento. Anos e décadas estudando o adversário,
desferindo golpes ridículos e recebendo as notícias mais aterradoras, as
tristezas mais injustificadas, as humilhações desnecessárias. Uma surra
vitalícia. O mundo, profissional acostumado à violência, é covarde, mas não
destrói de uma só vez. Vai matando aos poucos, soco a soco, rasteira a
rasteira, cicatriz a cicatriz. É a lei da autoconservação, D. Noemi explicou a
Conceição: para vencer por mérito, por nocaute e não por cansaço, o mundo teria
que preparar um golpe tão monstruoso que seria preciso abrir a própria guarda.
O mundo não é de baixar a guarda; só gosta de hematomas nos outros.
Educou os três,
portanto, para suportar – e, talvez, num momento de distração do mundo, vencer
– a luta. Inspirou neles o que pôde, transmitiu-lhes o gosto pela batalha, leu
historinhas da guerra de Troia e contou como Ulisses, o mais esperto, era o
verdadeiro herói. Era mais feliz que Aquiles. Era o herói da gente minúscula,
que faz o que pode. Tinha amor até pelos cães, e os cães morriam de amores por
ele. Todos os seus filhos deveriam ser Ulisses, mas se esqueceram das
historinhas que a mãe contava, porque esse é mesmo o destino das histórias. Ela
os treinou com a malícia das piadas, certa de que músculo nenhum vence o mundo,
que há milênios já se dedicava ao halterofilismo. Preparou cada um com todo
veneno e toda alegria, mas, como acontecera com ela e o marido e os avôs e os
bisavôs e os tataravôs e os pais e avôs dos tataravôs antes deles, o mundo não
apareceu para lutar. Estava ocupado com napoleões e madreteresas, picassos e
billgates.
Mas, seguindo a
tradição, os três se apresentaram no ringue, desajeitados e tateantes, já
suados de pavor ou excitação. Imagine, D. Noemi pediu a Conceição, um estádio
completamente vazio, sem plateia, sem gritos por sangue nem caras de dor. O que
há é o eco dos próprios gemidos.
Abel, apesar de ser
o mais novo, foi o primeiro a adentrar o cercadinho, crente que seu amigo
imaginário, Deus ele mesmo, era poderoso o bastante para amedrontar o inimigo.
Mal sabia que todos os homens, sem exceção, levam um amigo imaginário para
lutar com eles ou por eles e que Javé já não assusta o mundo tanto assim. Seu
caçula ficou no centro do ringue, que é onde mais gosta de ficar, esperando,
com a confiança dos papas e dos homens-bomba. Chamou o mundo, falou alto e
corajoso, mas o mundo não veio. E Abel acabou se apaixonando pela própria voz,
que ecoava no estádio vazio. Teve a certeza de que ele e seu amigo imaginário
haviam vencido com honra. Acreditava piamente que o mundo tinha se acovardado
diante dele. Os que passavam na frente do estádio – vagabundos, fugitivos,
perdidos ou só curiosos – ouviram as palavras solitárias de Abel e foram até
ele. Sentaram-se nas cadeiras próximas e, acreditando no que Abel acreditava,
passaram a assistir a uma sova extraordinária, em que o mundo perdia mesmo não
estando lá.
Daniel foi o
segundo. Antes de subir ao ringue, fez amizade com o dono do estádio, com os
bilheteiros e balconistas. Mandou telegramas ao adversário louvando seu físico,
seu poder e sua clemência. Colocou-se à disposição do mundo, para o que fosse:
secar-lhe a testa suada nos combates mais importantes, passar a ferro os seus
roupões brilhantes ou segurar os sacos de pancada para que ele não machucasse
as mãos. Quando entrou no cercadinho e o mundo não apareceu, Daniel sorriu. Com
um sussurro, chamou o inimigo de frouxo, maricas, etc. e etcétera. O dono do
estádio lhe ofereceu um emprego, Daniel aceitou. Tornou-se uma fibra muscular,
um nervo do mundo. Transformou-se naquilo que faz as unhas do mundo crescerem.
Benjamim entrou por
último no ringue. Ao subir os degraus, tropeçou, quebrou o nariz e se deu por
vencido. Desmaiou quando viu o próprio sangue, tentou fugir pela porta dos
fundos, tentou embelezar as cordas da arena com papelinhos coloridos. Dava uns
pulos de terror quando achava que o mundo finalmente estava chegando para lhe
descer a porrada. A mãe, que até então se limitava a torcer de longe, entrou em
ação. Puxou uma cadeira e foi dando instruções: não case com essa mulher, não
se mate, arrume um emprego. O filho, acuado numa esquina do ringue, aproveitava
as distrações dela para fugir e se esconder atrás de uma pilastra, uma
colocação de emprego ou uma timidez. O mundo, mesmo se aparecesse, não se
dignaria a procurá-lo.
Todas as telas que
Benjamim pintou, D. Noemi disse a Conceição, retratavam o mundo não vindo
brigar com ele, o mundo arrebentando os ossos de outra pessoa, uma paisagem
fora do mundo, calma, maternal e risonha.
Por fim, D. Noemi
confessou que sonhava com o glorioso dia em que o maldito globo terrestre
tatuado na omoplata desapareceria. Detestava o desenho. Queria morrer, estava
cansada. A história parecia que não ia acabar nunca. Parecia que nada que ela
pudesse fazer mudaria o fim da história. Para quê continuar tentando?
Disse que, dos três filhos, seu preferido
era Daniel.
E que pretendia
comprar um xale, ou um passarinho, para esperar a morte.
– Há quantos anos a
senhora espera a morte?
– Ughrrum...
Conceição a
absolvia de tudo.
***
Poemas
Visuais
“Seja
museólogo, seja herói” (s/ data)
*
S/
Título (s/ data)
*
Angústia
(2013) – [Leia a historiográfica desse poema aqui]
*
Medalinha
(2013)
***
Escrita,
história e máquinas do contemporâneo em Victor Heringer
por Lucas Matos.
A ideia inicial deste texto era fazer uma
resenha crítica que se debruçasse sobre Automatógrafo,
livro de poemas de Victor Heringer, publicado pela 7letras em 2011; no entanto,
como já se vão 3 anos desde a sua aparição, e conforme fui me deparando com a
extensão e pluralidade da produção artística de Victor, me pareceu que seria
mais relevante se eu voltasse os meus esforços para tentar acompanhar algumas
linhas gerais dos procedimentos estéticos e do pensamento movimentado pelo
poeta em seu processo criativo. Como não poderia deixar de ser, os presentes
apontamentos são aqueles que se permitem obter a partir de uma observação
limitada de um movimento em curso, portanto, com restrições evidentes mas que
talvez se justifiquem uma vez que a produção de Victor se revela extensa e
variada. Se o alcance e o objetivo do texto foram revistos, seria impossível
abandonar o Automatógrafo, seja como
ponto de partida, seja como ponto de vista a partir do qual observar o panorama
mais amplo de seu pensamento poético. Assim sendo, talvez não seja de todo
inoportuno começarmos com os dois poemas que delimitam o espaço, estabelecendo
as fronteiras, ou os limites dessa obra em específico, ou seja, o primeiro e o
último poemas do livro:
O POEMA ANTERIOR
Historiografia
remeteu para a câmera de eco
todas as encruzilhadas
foram devidamente encruzilhadas.
vejam vocês os instantâneos que tirou:
somos nós, em ângulo crítico.
saímos com a cara dos perdidos,
mas
até que ficamos bonitos
nessa pose espontânea.
*
O PRÓXIMO POEMA
Rapsodomancia
trará consigo, numa maleta,
cicatrizes de vários tamanhos
para as vidas dos passantes.
e notícias de velhas verdades,
que mandam saudades.
desvendará mãos e mistérios,
confessará que está triste também.
votará pelos telégrafos,
para que reinem, agora
enfim.
virá num dia de sol aberto
para ensinar aos homens
todos os códigos de luz.
terá setenta e um botões
no fraque de ficção científica.
nenhum deles ameaçará os planetas.
Se os títulos, pelos adjetivos, apontam
para a posição diametralmente oposta que ocupam na sequência estabelecida pelo
livro (ANTERIOR/PRÓXIMO), suas contrapartes (subtítulos, segundos títulos, ou
como queiram chamar esses duplos que aparecem em diversos poemas, operando uma
espécie de ambivalência da nomeação) dão a espessura temporal de sua oposição.
Não somente porque, no primeiro caso, Historiografia,
estaríamos inscritos num questionamento da escrita da história, tendo de lidar
com o passado, enquanto que, no segundo, Rapsodomancia,
somos lançados a um esforço de vislumbre do futuro, mas também porque se
entrechocam aí o registro discursivo de algo que se supõe factível, na ordem do
real [ou ainda de perspectiva crítica sobre o real], e o discurso que é jogo
divinatório, esforço de ler os anúncios do que ainda não aconteceu mas
certamente virá. Ainda mais: enquanto os elementos possíveis de serem abordados
por uma escrita da história são inúmeros, e tendem a se saturar até tornar o
próprio discurso inviável, a rapsodomancia é adivinhação a partir de trechos de
obras poéticas escolhidas à sorte, ou ocasionalmente; problema, enfim, de
seleção e de métodos de seleção – o problema da escrita é o problema da
escolha.
“O POEMA ANTERIOR”, logo de saída nos lança
em movimento que vai de encontro às reverberações, reprodução ou duplicação do
som, que, na sequência da estrofe, será traduzida como reprodução ou duplicação
da palavra (“encruzilhada”) e de uma relação entre escrita, assinalamento (o
ato de encruzilhar, marcar com uma cruz), e acidente físico (o ponto em que os
caminhos, ou vias se entrecruzam). A escrita como redundância (devida?) do
corpo. A segunda estrofe se apresenta quase como uma outra face, fragmento cuja
ligação com a primeira parte dá-se apenas pela repetição de um sujeito elíptico
que não se esclarece e que se pode supor o mesmo, os leitores são interpelados
como se estivessem em mesma situação espacial e pudessem ver o que o discurso
designa: uma duplicação do instante pela imagem. Surge, então, uma primeira
pessoa que se identifica na foto mencionada, mas que ao mesmo tempo aponta o
ponto de distorção da atividade fotográfica, ou sua inflexão sobre o real (“em
ângulo crítico”), que dará o aspecto da imagem de quem fala como alguém que
apresenta a aparência de quem não sabe onde se situa. A estrofe final, em dois
versos curtos, encerra o poema, em comentário coloquial marcado por um aparente
paradoxo: “pose espontânea”. A disposição dos corpos, mesmo que não planejada,
já está pronta para ser captada e redobrada em seu registro; assim, no jogo de
repetições (que se traduzem, formalmente, no retorno da sílaba “an”/”am”,
espécie de eco sonoro do poema) se insinua uma espécie de subtração de um termo
primeiro: o que a historiografia registra ou escreve é aquilo que foi feito com
sua captação em mente, faz-se algo sabendo que aquilo será depois contado,
fotografado, reproduzido maquinalmente. O “POEMA ANTERIOR” é um jogo de dobras
e repetições que só não pode ser a origem, justificativa ou verdade, do livro.
“O PRÓXIMO POEMA”, por outro lado, inicia
já de um problema temporal: o que o futuro traz, ou pode trazer, é o passado do
presente, isto é, a cicatriz, a marca (da dor curada) que dá a cada um a
profundidade de ter uma história. Lembramos, talvez não gratuitamente, do
famoso episódio da Odisseia, em que
Ulisses, transformado em ambulante miserável, é reconhecido em sua identidade
(real) por uma serva através da cicatriz até então não mencionada pelo texto. Igualmente,
o que virá, na maleta do poema futuro, são informações de verdades marcadas por
pertencer a um passado. Como se o poema que vem prometesse que chegaremos a
saber o que foi. Há, evidente, uma marca irônica, como se ao mesmo tempo em que
se anuncia sua vinda, sabe-se que esse é um exercício do poema presente, de
seus próprios recursos – como as aliterações e rimas em tom de gracejo (“velhas
verdades/que mandam saudades”; “mãos e mistérios”) ou a repetição da estrutura
com os versos encabeçados por verbos na forma sintética do futuro. Ao mesmo
tempo, “O PRÓXIMO POEMA” não deixa de estabelecer a promessa de um consolo,
pela divisa emocional de uma semelhança, e pela recompensa possível de uma
escrita cujo código estabelecido por uma máquina antiga possibilitará o reino
do “agora/enfim”. A escrita telegráfica, de pontos e traços, se distingue não
só pela possibilidade de deslocamento através de distância – o que se escreve
aqui, registra-se em outro ponto – mas também, por não estabelecer nem simular
uma situação discursiva. Como se a própria escrita se oferecesse por sua
materialidade visível, sem apontar para fonte além de si: “todos os códigos de
luz”. Nesse sentido, é significativo o “fraque de ficção científica” não só por
seus botões cujo sentido não se encontra na detonação que podem acionar, mas
pela própria expressão que faz coincidir no mesmo sintagma nominal uma palavra
percebida como antiga, em vias de desuso, e os traços do avanço, de um futuro
imaginado. A confluência de todos os tempos diversos, recolhidos por uma
escrita, por códigos que não se distinguem do que constitui o universo, é o que
se anuncia.
Ora, se Automatógrafo
é o que se coloca entre o anterior e o próximo, entre a escrita da história e o
uso da poesia como oráculo futurológico, o livro será o exercício de uma
exploração entre as fissuras e fraturas do que pode ser entendido como o tempo
presente, o que é nosso contemporâneo. E talvez aqui eu possa me desviar, para
melhor me aproximar de um procedimento que retorna e se mostra constante em
Victor, da pergunta impositiva acerca do que é ou do que constitui o
contemporâneo, chegando a um problema mais específico: de que ponto de vista se
pode captar o tempo presente? Ou ainda: que tipo de trabalho com a linguagem e
com a escrita pode se prestar a esse esforço? Começo por um pequeno decurso, me
valendo das palavras de Victória Saramago sobre o romance Glória do autor:
“[Num] misto de temáticas contemporâneas,
referências a obras machadianas e múltiplas tramas, a linguagem do livro emerge
como um aspecto problemático mas com certo potencial. [...] Heringer cultiva
uma prosa que mais se assemelharia a algo do século XIX, ou até antes [...]. É
como se Heringer tivesse simplesmente passado todo o romance no Instagram, ou
seja, como se imprimisse aquele filtro de foto antiga em imagens com as quais o
conteúdo pouco se conecta” (Victória Saramago em “Um romance vintage – Glória,
de Victor Heringer”).
Sem me enveredar pelas avaliações de
Victória, gostaria, entretanto, de apontar a proximidade de suas observações
com as colocações feitas por Dimitri Rebello e Cleo Weiss na apresentação de irregular, primeiro álbum da dupla The Hideous Men (parceria entre Victor e
Benjamim Alencar):
“[os autores] não se furtam a pregar
eventuais peças, como no ‘ragtime do falanstério (do catete)’: a princípio uma
comportada peça para piano solo, que quase se pode imaginar tocada por Ernesto
Nazareth nos salões do Rio Antigo... Exceto pelo fato de que o seminal pianeiro
precisaria ter seis dedos em cada mão para executá-la! [...] o álbum e as
composições jogam com elementos com familiaridade e ruptura, harmonizando com
engenhosidade elementos supostamente díspares. Supostamente, apenas; pois irregular é a um só tempo tese e prova
de como as fronteiras e categorizações se tornaram voláteis – e algo fúteis –
numa época em que a experiência humana, impregnada de tecnologia, parece se dar
cada vez mais sob o signo da simultaneidade” (Dimitri e Cleo em “O que
aconteceria se Machado de Assis entrasse para o Kreftwerk?”).
Se na avaliação dos ouvintes, ocorre uma
harmonização dos elementos díspares – e note-se que sua diferença é uma espécie
de preenchimento ou resto que cada elemento traria de uma temporalidade
diferente – para a leitora do romance há uma espécie de desequilíbrio formal
não (completamente) resolvido entre a sintaxe da obra e os eixos temáticos
observados. Ora, deve-se apontar igualmente a diferença/semelhança dos exemplos
coletados: no caso do que se ouve, o material sonoro aproxima-se de um passado,
ou de uma tradição antiga e identificável, mas as operações formais feitas
sobre ele denotam sua contemporaneidade; no caso do lido, a materialidade
linguística (seleção vocabular, construção sintática, expressões estilizadas e
codificações de fala) remetem a uma antiguidade, embora os lances do enredo e
os objetos que compõem a trama sejam atuais. Para localizar ainda mais o que
pretendo, chamo outro poema de Automatógrafo
ao diálogo:
ELEGIA AO NOKIA 2280
Make it new
(POUND)
Sete anos de serventia,
sete anos de saber a fauna
dos fundos de armário:
roupas velhas de primos,
cartas de namoradinhas,
Nagasáqui toda destruída
e a sua carcaça azul
nem acende mais.
Suas canções irritantezinhas
não ecoam em parte alguma.
Ninguém se lembra do frenesi
que fez nas moças do Méier
a sua carcaça azul
não foi modelo para estátuas.
As fotos dos anúncios se perderam
no caudaloso rio do jornalismo.
Os homens se deslocam pela terra,
os melhores de sua geração se perderam
no caminhão da mudança.
E a sua carcaça azul
ainda guarda na memória
os números inúteis,
um vago orgulho familiar,
os nomes e sobrenomes,
o engordurado de tantas digitais
Vejamos que não se trata, simplesmente, de
incorporar temas novos a uma forma antiga, mas de trabalhar diferentes
elementos que trazem a reboque suas marcas históricas – o tom elegíaco (marcado
pela repetição de “a sua carcaça azul” ao fim de cada estrofe continuado por
uma negativa na estrofe seguinte) e a tradição lírica clássica, o lema
poundiano (retomado em via crítica) do compromisso artístico moderno e da
compreensão do fazer das vanguardas, a menção ao episódio histórico da
destruição de Nagasáqui, o aparelho celular já tornado obsoleto, a fala
familiar e cotidiana (“canções irritantezinhas”) – e ver como eles se
atravessam a partir de uma perspectiva: a do fundo dos armários, das coisas
relegadas ao esquecimento que, entretanto, guardam o traço indelével do que foi
vivo. O tema atual – a rapidez com que a relação entre consumo e tecnologia
torna objetos de uso cotidiano obsoletos – ao ser trabalhado em dicção que
entrechoca uma forma frasal antiga e elementos de um mundo moderno (“no
caudaloso rio do jornalismo”, “os melhores de sua geração se perderam/ no
caminhão de mudança”) aparece como o tema histórico dos que foram relegados ao
silêncio, das vidas perdidas no movimento do tempo e da linguagem.
Talvez não seja de todo absurdo notar aqui
um movimento geral que poderia ser descrito nos termos de um deslocamento na imagem
tropicalista: tal como ela foi caracterizada por Roberto Schwarz, a alegoria
típica do estilo apresenta a combinação de elementos técnicos e formais
modernos combinados a conteúdos arcaicos, e expressões sinalizadas de uma
sociedade distante da modernidade ocidental (encarados simultaneamente como
sinal de subdesenvolvimento, e como índice real da especificidade da sociedade
brasileira). Aqui, não interessa muito a discussão seja do alcance, seja da
avaliação que o crítico faz dessa imagem, apenas as suas linhas estruturais
básicas na compreensão de que seu esforço era o de responder um contexto
marcado pelas contradições de um Brasil que era alçado a fases novas do
capitalismo, mantendo estruturas ideológicas arcaicas. A minha sugestão é a de
que um dos procedimentos de Victor é uma inversão desses polos: situam-se os
elementos da linguagem numa espécie de trabalho que remete a uma modernidade situada
no fim do século XIX e primeira metade do século XX (tendo como referências,
poéticas/prosaicas, Machado de Assis, Manuel Bandeira, Nelson Rodrigues, etc.),
para a partir daí recolher o que o movimento do avanço e do progresso vai
selecionando como coisa a ser desaparecida, silenciada, esquecida. Mesmo os
elementos mais atuais são postos nessa dinâmica: olhe para isso que está em
vias de desaparecer, que em algum sentido já desapareceu.
A própria marca prosaica da linguagem dos
poemas parece de algum modo se limitar com isso: o poema olha para si, sua
própria construção de linguagem, como algo em vias de desaparecer no movimento
voraz das falas e das camadas de palavras de ordem depositadas sobre a língua.
A poesia se dá como uma arqueologia da linguagem que revela o esforço do
cotidiano, em sua demanda de posições, opiniões, falas incessantes, de suprimir
escolhos, restos de linguagem que guardam as marcas do que viveram aqui. Assim,
cada elemento pode ganhar a estranheza de sua historicidade, recolhida nesse
momento de agora que é convivência de temporalidades diversas.
Em “O AUTOMATÓGRAFO”, o primeiro dos textos
do livro de poemas que aparece após “O POEMA ANTERIOR”, temos a descrição – que
uma nota de pé de página explica ser tradução/corte/colagem de um artigo de
professor de psicologia experimental e comparada – de uma máquina que
transformaria em escrita os menores movimentos do corpo. Algo que nos
possibilitaria estar diante de um vínculo direto entre o elemento gráfico e a
corporeidade, sem mediação de um código que remeteria possível ou supostamente
a uma situação discursiva de fala. Um dos poemas visuais de Victor – “Angústia”
– parece recuperar essa relação ao colocar na limpeza de traços abstratos de
algo como uma letra a posição física de quem experimenta uma sensação que não
se pode colocar em frases, encadeamento de palavras. Uma letra sem fonema, uma
língua sem som, escrita de ruído de fundo marcada pelo que resta do movimento
do corpo. Poderíamos lembrar aqui em Glória
também a estratégia – numa espécie de retomada irônica do tema, uma vez que é
marcada pela simulação/dissimulação de uma obra que existe primeiro como
promessa virtual – do artista Benjamim para finalmente conhecer a mulher por
quem crê ter se apaixonado (há um engenhoso jogo de duplos entre personagens
físicos e virtuais que não cabe detalhar aqui): fazer uma obra que seja um mapa
dos movimentos das formigas.
“Olhou novamente para o mapa e considerou
as formigas. Imaginou as formigas olhando para o mapa de seus próprios
movimentos, como os homens antigos olhavam para as estrelas e enxergavam nelas
os caminhos traçados por um deus qualquer. As formigas, espécimes crédulos,
tinham encontrado o amor maior do mundo em Benjamim. Grande efervescência,
grande esperança no mundo formicular. Pois aquele era o homem que lhes havia
feito um mapa. Aquele era o homem que mostraria a elas os atalhos para os
lugares mais lindos. Aquele era o caminho, a verdade e a vida. Glória a
Benjamim, diriam as formigas na língua das formigas, que é o som nenhum. [...]
E elas o amariam mais porque aquele que conhece os caminhos, conhece,
sobretudo, a saída.
“Naturalmente, as formigas pouco entendem
de assuntos cartográficos. Se entendessem, saberiam que há mapas sem saída. Que
o mapa que descreveria seus movimentos no interior do apartamento 303 do
edifício Glória estava dentro do mapa do bairro da Glória e que o mapa do
bairro da Glória estava dentro do da cidade do Rio de Janeiro, e o da cidade
dentro do do estado, o do estado dentro do do país, o do país dentro do do
mundo. Saberiam, enfim, que deste último, do mapa-múndi, não há escapatória
para as formigas, seres que ainda não dominaram a tecnologia das viagens
interplanetárias” (Victor Heringer em Glória).
Sem me estender muito sobre a passagem, a
fantasia de Benjamim se sustenta na possibilidade de ele deter uma escrita
superior que atua ou revela não o discurso das formigas, mas a realidade
corpórea em que vivem. Claro que tudo é matizado por um distanciamento irônico,
uma vez que, no início do capítulo sabemos que os mapas de Benjamim são
rabiscos feitos às pressas até dar a impressão de um arabesco, e querem apenas
simular um estudo efetivo dos padrões de movimentação das formigas que jamais
foi realizado. Entretanto, ainda assim, essa experiência da escrita que tanto
capta o mundo físico quanto revela uma estrutura da realidade – esse mito
último do escrever – é desmontado pela saturação das informações escritas. Um mapa
está dentro do outro que está dentro do outro até que o final do comentário
revela sua dubiedade: fala-se das formigas com relação a Benjamim, mas também
dos homens que são como formigas na escala de outros mapas do universo.
O que interessa reter aqui é que o
procedimento que estamos tentando localizar – de uma escrita que surge de uma
certa relação da forma gráfica com o corpo, suprimindo uma mediação via fala –
também se desloca para se furtar, através da crítica propiciada pela ironia,
aos mitos possíveis dessa escrita: a da relação com uma autoria divina que
deteria os princípios da escritura da realidade, a da revelação da verdade. A
literatura de Victor não pode ser nem uma coisa nem outra de um lado porque se
subtrai, pela colocação de uma máquina, de algo que procede por um código entre
outros, mas mais que isso, de um código falível como outros, marcado então pela
opacidade (impossibilidade de ser desvelado) e pela possibilidade do erro; de
outro lado, a escrita literária é acometida por uma saturação de informação que
a leva ao limite da significação, deixando no final a impressão da pequenez do
que se conhece e da vastidão do que se desconhece ao invés de dar-se como
palavra final. A letra da angústia como procedimento gráfico/físico que nos distancia
da escritura divina.
Em Automatógrafo,
haverá vários pontos de confrontação entre o visível, ou o ato de ver, e o
falável, o ato de falar. Em Oração, a
ladainha religiosa que parte da fórmula “Olhai por nós, pecadores” é assumida
como forma de pedir a canonização de todos que se situam nos contextos diversos
de ver algo, chegando aos versos: “Estamos cansados. Aqui tudo se vê,/ mas
todos dizem meteorologias”. A fala tende a se perder sempre no burburinho
insignificante das conversas sobre o tempo, das conversas de elevador. Nesse
sentido, será recorrente na poética de Victor uma espécie de marca de um dizer
coletivo, como fragmentos corais, que seria como um recolhimento de diversas
enunciações anônimas como que colhidas do coloquial cotidiano e que atestam
apenas um falatório incessante que interessa como ruído e dispersão. Vejamos
dois exemplos:
A MÁQUINA
A
Máquina
dorme
de touca
(MANOEL DE BARROS)
Diz que comprei tal máquina para falar por
mim.
Não sei de fonte primeira, mas no diz que
diz que diz que
me chegou a informação.
*
UM PRESENTE
Desfaz a hipermetropia dos seus dentes.
Corrige as ondas longitudinais da língua.
Para a melhor saúde refracional da sua boca
(e de toda a sua família)
– anunciam os anunciantes
que agora vendem lentes fotográficas sem o
corpo da máquina.
O corpo é você.
Basta aproximar muito os lábios, morder
e está posta a máscara de vidro. Faz
maravilha:
objetiva a voz, justifica o olho, sussurra
manso,
adora Michelangelo, acha as ruas, engole o
choro.
Uma graça. E sem data de validade.
E o avançadíssimo mecanismo de encaixe?
De assombrar:
sempre vem na mordedura exata. Como?
Tiraram as medidas da sua boca
enquanto bocejava.
Entre o sujeito que fala e a própria fala, há
uma máquina, que é o próprio mecanismo de dizer algo produzido a partir de
dizeres múltiplos e cuja origem, cuja fonte primeira é irrecuperável. A
informação que constitui a fala chega sempre de falas outras na forma do “Diz
que”, ou do “Dizem”. Nesse sentido, é bastante interessante como o segundo poema
selecionado vai reproduzir várias estruturas típicas da publicidade (“(e de
toda sua família)”, “Basta... e está posta”, “Faz maravilha”, “Uma graça. E sem
data de validade”) justamente para delimitar a lente a partir do qual se
corrige a natureza selvagem da experiência da voz, estabelecendo uma espécie de
filtro discursivo de fundo. A aproximação com os registros luminosos, a
promessa de um dizer preciso como a fotografia é apenas jogo do anúncio dos
anunciantes, uma vez que o que se realizará é uma espécie de apassivação (“objetiva
a voz”, “sussurra manso”, “engole o choro”). A nota dissonante que registra o
ponto crítico do poema é justamente quando se pergunta “Como?”. A resposta, que
aponta o momento de captura, ou de apropriação do corpo para inseri-lo enquanto
peça, corpo da máquina de dizer, desvela a violência do jogo do discurso
publicitário. Mapeia-se o corpo em seus movimentos involuntários,
intermitentes, para encaixá-lo na produção de pontos fixos, produtores/produtos
discursivos.
Para encerrar esse esforço de ver alguns
pontos em andamento da obra de Victor Heringer, gostaria de selecionar um
último poema de Automatógrafo que
talvez permita recuperar os comentários feitos até aqui:
NOTÍCIAS PARA NIRA
O
lado de cá
O tempo aqui anda estranho.
No jornal dizem que os cientistas
brincaram demais com os relógios,
e agora ninguém sabe mais a hora,
a senhora veja, de bater parabéns.
Aqui, a linha da Serra dos Órgãos (meus
também) ainda é eletrocardiograma (meu
e do Rio). Fácil ver um coração que bate.
Preguiça danada de escalar.
Ando preferindo o horizonte.
Faço sambas para o tango e tango para os
homens
sadios. Desnecessitam, porque morrem em
qualquer
curva do ponteiro, nas mais bestas,
a senhora veja. Sem tempo, nem prestam
atenção.
No mais,
o deus da senhora continua traquinas.
Diz “meu deus” a tudo;
clama por si próprio quando não lhe
entendem
a galhofa. Às vezes tomamos café juntos.
Anda nuns negócios escusos e parece que
sumiu.
Dizem
que é o Bicho.
Tenho andado esperando, nuvem parada,
sabe como? Crianças apontam,
tentam descobrir se sou carneiro, cachorro,
cabeça de dragão.
Em parte, cabe reconhecer que a sabedoria
do poema está em residir na ambiguidade do verbo andar em português brasileiro,
uma vez que ele apresenta tanto a noção de movimento, deslocamento, quanto o
traço aspectual de duração, permanência de/em um determinado estado. Assim,
mandar notícias é sempre uma espécie de fazer o texto oscilar entre o que se
movimenta e o que retorna e se repete, sem que se altere o estado das coisas.
Tanta coisa acontece para que nada aconteça contra essa sensação de fundo de
que tem algo acontecendo mas ninguém sabe bem dizer o que é. O primeiro verso,
nesse sentido, é tanto a percepção de uma alteração no clima que, entretanto,
não se afirma nem se desafirma, quanto um esforço de dizer a dificuldade da
própria época (the time out of joint?).
A sequência da primeira estrofe se, por um lado, escolhe o espaço do jornal e
justamente para notar nele esse dizer impessoal, pouco situado e informativo,
que se confunde com o rumor dos que estranham mudanças de horário de verão, por
exemplo. Nesse sentido, “a hora de bater parabéns” tanto pode ser lida quanto
uma desorientação incomum absurda, uma perda no próprio calendário, quanto uma
desorientação ao longo do dia, na observação do curso do sol. Não deixemos de
apontar a pequena frase “a senhora veja”, que se repetirá como marca de
interlocução, estilização literária algo antiga do discurso oral.
As três estrofes seguintes estabelecerão
formas diferentes de percepção da passagem do tempo. Num entremear do espaço
geográfico com o corpo (órgãos do nome da serra, mas também do eu-lírico;
acidente do relevo da cidade que é uma escrita/desenho, via máquina, do pulsar
do coração), vê-se o ritmo dos batimentos cardíacos. Nesse sentido, o verso
irônico “Preguiça danada de escalar”, mantendo a preferência pela observação
(em sua suposta facilidade de transposição de imagens), aponta para manutenção
desse tempo em que nada se faz. A estrofe seguinte, a partir desse andar de
quem prefere o horizonte, ao invés da verticalidade, marcando o amor das coisas
que estão próximas ao chão, introduz a duração da composição popular, embora
enviesada. O samba se faz para o tango, e o tango, diferente do que ocorre no
poema de Bandeira, se destina aos homens sadios. O tempo dos homens sadios,
entretanto, é outro, o da pressa, o dos que não têm tempo para a duração da
música e de seu saber da finitude, ou do trágico. O neologismo entra justamente
para falar em dissimulada ironia que ninguém precisa estar ciente da iminência
da morte para morrer. A temporalidade da música se confunde à temporalidade da
morte – ela vem, mesmo parecendo gratuita, banal, mesmo que não se ouça a sua
chegada com atenção. Enfim, de modo também enviesado, marcado por uma ironia e
um distanciamento entre o aparente ingênuo do poema do menino Jesus de Caeiro e
um humor cáustico, o tempos das coisas
que não se sabem. Prefiro falar assim, pois na obra de Victor Heringer, há
extensa tematização dos discursos religiosos, sem nunca ser religioso, mas numa
espécie de ateísmo que nunca deixa de abrir o mundo às suas pontas inúmeras de
mistério. Efetivamente, ele chegou a pesquisar a relação entre sagrado e
profano na escrita machadiana, formulando a ideia de uma escrita contorcionista
que nunca opta pelo estático no conflito entre uma mentalidade religiosa e uma
arreligiosa. Nesse sentido, cabe apontar no verso final da quarta estrofe, esse
retorno dessa fala coletiva, coral, sem ponto de origem, que é apenas o rumor
do que se murmura: “Dizem que é o Bicho”. Aí, embora a maiúscula sugira,
claramente, que “o deus da senhora” anda metido nos negócios escusos do
conhecido jogo ilegal especialmente popular na cidade, também pode-se notar
outras possibilidades de interpretação da frase: seja vendo na expressão “o
Bicho” uma gíria comum na segunda metade do século passado, seja vendo nela, o
totem animal do divino. Por fim, na última estrofe, situa-se essa experiência
do “andar” como experiência da espera, do deslocamento fluido, da constante
mutação que retorna ao primeiro verso – “O tempo anda estranho” – mas agora
numa semelhança entre clima e a primeira pessoa do poema. As crianças parecem
compor o conjunto de grupos (cientistas, homens sadios) que dividem o espaço do
poema com quem fala, sem que haja uma integração efetiva. Não deixa de ser
sintomático que as crianças, ao adivinharem na primeira pessoa as formas de
nuvens, se valham de formas animais, lembrando ora o jogo do bicho, ora os
signos advindos da observação do céu.
Caberia, afinal, mostrar que uma das formas
da poética de Victor Heringer entender o tempo presente é a cidade: a espessura
das historicidades diversas que atravessam a cidade, e com a qual os materiais
do poema se confundem. Nesse sentido, é da observação miúda, dos pequenos
recortes de espaços diferentes que compõem o espaço urbano (tênis nos fios de
telefone, bairros onde o tempo parece ter parado, esquinas e encruzilhadas,
filas que dobram quarteirões e em que não se sabe o que se espera, etc.) que a
sua obra vai construindo sua reflexão sobre o tempo em que vivemos. Ao mudar do
Rio de Janeiro para São Paulo, o artista chegou a escrever uma crônica em que
tentava fazer a passagem, criar ficcionalmente a mudança, o fim de um tempo (na
vida dele e, também, conforme observável, na vida da cidade). Talvez fique a
pergunta de como, ou se, a sua escrita e sua arte se transformarão, e em que
sentido, que novas temporalidades podem ser recolhidas.
Referências
Heringer, Victor. Automatógrafo. Rio de
Janeiro: 7letras, 2011.
_______. Glória. Rio de Janeiro: 7letras,
2012.
Rebello, Dimitri; Weiss, Cleo. O que
aconteceria se Machado de Assis entrasse para o Kraftwerk? In. http://automatografo.org/irregular.html [Clique aqui para ler o texto e fazer o download do álbum]. último acesso: 27/06/2014, às 11:22.
Saramago, Victória. Um romance vintage:
Glória, de Victor Heringer. In: Fórum de Literatura Brasileira, v.10 (Universidade
Federal do Rio de Janeiro), p. 209-214, 2013 [Leia aqui]