Ter uma mesa de debate com Aníbal Cristobo, Italo Moriconi e Marília Garcia, três
editores de poesia-poetas, no Rio de Janeiro é pensar o contexto cultural da
cidade a partir de três de suas figuras fundamentais. Do mesmo modo, permite
levantar as diferenças e convergências em maneiras de editar, publicar e
circular poesia que hoje se desdobram não só no espaço (Rio de Janeiro, São
Paulo, Barcelona), como no próprio idioma (português-castelhano).
O
debate Edição de poesia hoje: modos de
fazer e desfazer foi uma proposta do coletivo Bliss não tem bis para
integrar a comemoração dos 20 anos da EdUERJ, junto a uma noite de leituras de
poesia e performances poéticas para o lançamento da edição bilíngue pela
7letras do novo livro de Aníbal, Minha
vida como bactéria.
A
ideia era que os integrantes da mesa falassem um pouco de suas experiências em
edição e pudessem discutir com os presentes os desafios, questões e sentidos
para editar poesia no(s) contexto(s) do mundo de hoje.
Essa
semana, no blog, segue transcrita a primeira parte do debate, com as falas
introdutórias dos convidados. Já nelas, se destaca a complexidade do exercício
de “criar um leitor no tempo” como uma atividade que requer também criar a e na
política de um tempo. Criar também a si mesmo.
Anunciamos
ainda, hoje (22/5), como parte integrante dos eventos desse mês, a performance
seguida sobre comunicação sobre voz e poesia: Corpo, política e canção, de Lucas Matos. Às 19h, na Escola de
Letras da UNIRIO.
***
EDIÇÃO DE POESIA HOJE: MODOS DE FAZER E
DESFAZER (parte 1 de2)
- Convidados:
Aníbal
Cristobo: Nascido em Buenos Aires, em 1971, o poeta e editor morou por 5 anos
no Rio de Janeiro, no final da década de 90. Em português publicou Teste da iguana (1997), Jet-lag (2002) e Krill (2004), reunidos
em Miniaturas kinéticas (7Letras /
Cosac Naify, 2005).
Seu
mais recente Krakatoa (Zindo &
Gafuri, 2012) foi lançado em 2002 na Argentina e ganhou versão bilíngue em
português em Minha vida como bactéria
(7Letras, 2014 / tradução de Marília Garcia e Luciana di Leone).
Em
Barcelona, mantém uma editora voltada para a poesia contemporânea, a Kriller71. Boa parte da sua produção
como poeta e tradutor pode ser encontrada no sítio de mesmo nome.
Marília
Garcia: Nasceu no Rio de Janeiro em 1979. É autora dos livros Encontro às cegas (Moby Dick, 2001), 20 poemas para o seu walkman (7Letras /
Cosac Naify, 2005) e Engano geográfico.
Coedita a revista Modo de
usar & co. e já se apresentou nos festivais Salida al mar (Argentina) e Europalia (Bélgica).
Ítalo
Moriconi: Nascido no Rio, em 1953, é poeta, editor, crítico, antologista e
professor de literatura brasileira e comparada na Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (UERJ). Publicou os livros de poemas Léu (1988), Quase Sertão (1996)
e História do Peixe (2001). É editor
da EdUERJ desde 2008 - onde, desde 2010, edita a coleção Ciranda da Poesia, com
21 volumes já publicados.
- Mediadores:
Lucas
Matos e Marcio Junqueira, editores do blog e da revista-disco de poesia Bliss não tem bis.
*
Marília Garcia
Eu
estou muito feliz de estar aqui, é uma honra dividir a mesa com o Aníbal e o Ítalo e a emoção estava tão grande dias antes, que eu resolvi fazer um texto
pra não me perder muito
como um fantasma
queria
começar contando uma história sobre fantasmas
que
eu li na semana passada.
saiu
na revista piauí de abril essa
espécie de reportagem misturada com
conto
chamada
“os fantasmas do japão”,
do
jornalista britânico richard lloyd parry.
a
história se passa em kurihara, uma cidade no norte do japão.
em
kurihara, havia um sacerdote chamado kaneda.
kaneda
conta que depois do terremoto seguido de tsunami
que
houve no japão em 2011 ele
precisou passar meses exorcizando os espíritos das pessoas que morreram
afogadas na tragédia.
ele
conta que nas primeiras semanas
começou
a receber algumas visitas no templo
mas
depois de alguns meses centenas de pessoas procuravam kaneda
com
problemas parecidos.
elas
eram tomadas por fantasmas de vítimas da catástrofe.
o
primeiro homem que veio atrás de kaneda
estava
trabalhando na hora do terremoto e não viu o tsunami.
ele
conseguiu chegar bem em casa
sem
ver de fato o que havia ocorrido.
alguns
dias depois,
ao
saber do estrago quando tvs foram reestabelecidas,
ele
foi com a família ao lugar onde a gigantesca onda tinha passado
e
tudo tinha sido destruído em um piscar de olhos.
a
onda negra passara arrancando árvores
levando
as casas e destruindo as vilas costeiras.
a
destruição completa era um fato inegável
mas
ao mesmo tempo era algo que estava fora do limite do aceitável.
era
algo inconcebível.
era
uma experiência que não podia ser compartilhada.
logo
depois de visitar o lugar por onde o tsunami tinha passado
esse
homem começou a ter comportamentos estranhos:
às
vezes se jogava na lama –
como
se uma onda estivesse passando por cima dele
como
se estivesse morrendo afogado –
e
gritava com a família coisas desconexas sobre a morte.
ele
só entendeu que estava tomado por um fantasma de
uma vítima do tsunami
quando
kaneda conversou com o fantasma
e
exorcizou o fantasma.
kaneda
passou meses recebendo pessoas com o mesmo problema.
uma
mulher precisou voltar inúmeras vezes
ela
teve 25 espíritos exorcizados por kaneda.
o
sacerdote explica na reportagem que quando as pessoas morrem
de
forma violenta ou prematura
elas
correm o risco de se tornar fantasmas que peregrinam entre mundos.
há
rituais para ajudar na passagem
mas
como milhares de pessoas morreram de uma só vez neste tsunami
havia
de repente milhares de fantasmas nessa situação
e
eles não sabiam o que fazer.
bom,
estou contando essa história para falar de uma sensação que eu tive
quando
recebi o convite do lucas.
no
meio do ano passado eu saí do rio.
há
8 meses eu saí do rio.
estou
há 8 meses morando em são paulo,
o
que é pouco tempo mas a
cada vez que venho aqui
ou
converso com alguém ou ouço e vejo as notícias do rio
parece
que passou um tsunami
a
sensação de estar fora e não
acompanhar as coisas de perto
me
faz pensar que a cidade que eu vejo cada vez que venho
é
outra cidade.
como
não estou aqui
não
passo pelas mudanças diretamente
e
cada vez que volto
a
cidade se transformou muito.
então,
o
lucas me fez esse convite
e
eu fiquei nas últimas semanas com uma sensação que perdurou
com
uma sensação estranha, eu pensava no que ia falar
e
a sensação voltava.
era
uma sensação de fantasma
ou
melhor
uma
sensação de que eu era um fantasma
um
fantasma voltando para um lugar que não era mais o mesmo lugar.
além
disso,
o
lucas me sugeriu falar sobre a experiência que eu tive na editora 7letras
e
sobre o trabalho de edição da revista modo de usar & co.
eu
trabalhei na 7letras durante dez anos
e
foi lá que tive o que poderia chamar de formação editorial
porém
já saí de lá há mais de quatro anos.
assim,
ao
pensar na narrativa dessa experiência
sentia
um distanciamento
e
outra vez me vinha a sensação de fantasma.
quanto
à modo de usar & co.
eu
podia me aproximar de outra maneira.
afinal
junto com
a
angélica freitas o fabiano calixto e o ricardo domeneck
eu
criei a revista em 2007
e
nós 4 a coeditamos juntos.
porém
desde
o ano passado
quando
me mudei do rio
depois
da publicação do número 4 da revista
por
motivos pessoais
ando
um pouco afastada da modo de usar
e
por ora o ricardo domeneck é quem tem tocado mais efetivamente o projeto
portanto,
nesse ponto eu também me sentia
em
uma situação de fantasma,
mesmo
que fosse um fantasma temporário.
assim,
eu vinha para falar sobre a minha experiência
como
editora de poesia mas
estava me sentindo como um fantasma
por
onde eu olhava, via os fantasmas.
fazendo
uma paráfrase do julio córtazar –
em
um texto que me caiu nas mãos por acaso
nas
últimas semanas –
se
eu desaparecer aqui no meio dessa
fala
ninguém
precisa estranhar.
diante
disso,
fiquei
me perguntando:
como
seria possível falar sobre a minha experiência
partindo
dessa posição de fantasma?
percebi
que eu precisava
transformar essa sensação
e
exorcizar o fantasma ou,
em
outras palavras,
desfazer.
acredito
que de algum modo editar poesia pede
esse
jogo de fazer e desfazer como
sugere o título da mesa:
modos de fazer e
desfazer
se
temos um modo de usar
ou
se tornamos o processo natural
a
ponto de não nos perguntarmos mais as motivações ou os motivos
é
preciso voltar ao ponto inicial ao
ponto em que existe espanto
em
que a coisa não está feita nem dada
muitas
vezes também desfazer vem antes de fazer
por
exemplo
no
mundo editorial
existe
um sistema de edição
incluindo
o mercado as livrarias distribuidoras
as
formas de lidar com a imprensa etc:
uma
espécie de cadeia discursiva em
que as forças estão encaixadas.
se
vou entrar na edição de poesia de modo independente,
como
é o caso de uma revista como a modo de usar que não tem vínculos com editoras,
é
preciso se desfazer dessas formas já
dadas.
é
preciso encontrar meios de fazer que partem dessas formas
mas
que as deslocam e se adaptam.
se
penso por exemplo em um dos clichês ligados à poesia –
poesia não vende –
o
desafio não é como poderia parecer
como vender poesia?
mas
sim:
como
editar poesia
sem
seguir os caminhos e os “modos de fazer” já de antemão prontos?
como
editar exorcizando os fantasmas de que falava há pouco?
na
verdade vivemos em um mundo cada vez mais apto
a
esse tipo de edição
temos
as impressões sob demanda
as
redes sociais blogs ferramentas de compartilhamento
é
preciso pluralizar os meios de circular
e
achar meios que não tenham suas pontas presas aos modos prontos
porque
nesses modos prontos
raramente
encontramos brechas para a poesia circular.
não
sabemos com quem vamos compartilhar um poema
mas
se estamos buscando esse leitor,
melhor
do que tentar passar pelas formas habituais,
para
chegar até ele é preciso projetar esse leitor
buscar
outras formas de descobrir quem ele será
ou
como dizia o haroldo de campos
inventar esse
leitor no tempo
assim
gostaria
de relatar brevemente minha experiência editorial
a
partir desses modos de desfazer
minha
tentativa aqui é tentar desfazer esses fantasmas todos que andei vendo
e
me desfazer da situação fantasma
também
virar
uma pessoa real relatando essa experiência
buscando
a memória para seguir
adiante.
vou
contar sobre duas experiências que tive
primeiro,
na editora 7letras que
foi minha “formação”
e
depois com a modo de usar.
logo
que entrei na 7letras
o
editor e dono da editora, o jorge viveiros de castro,
criou
a coleção moby dick
ele
tinha escrito um conto e queria compartilhar dar
para as pessoas lerem
era
um conto curto
e
ele não queria publicar um livro com tiragem normal pela editora.
então
pensou em um formato
que
desse para imprimir dentro da editora
e
fazer tudo lá em um custo
mínimo
isso
foi em 2002
e
de lá pra cá a impressão sob demanda se aperfeiçoou muito
naquela
época era muito difícil fazer uma tiragem pequena
então
o jorge projetou esse formato, que era ¼ de A4
bem
simples de imprimir na impressora da editora
e
a coleção em miniatura foi batizada por ele de moby dick.
trabalhar
com o jorge
foi
um imenso ateliê de edição mas nao
apenas isso.
a
experiência da moby dick
foi
um ateliê de como desfazer as coisas.
era
uma coleção pirata sem registro de
isbn sem distribuição nas
livrarias
ela
seria vendida apenas no lançamento
com
tiragens de 100 exemplares.
o
jorge convidou os autores mais próximos da editora
e
a gente fazia os livros lá dentro
diagramava
fazia a capa inventava imprimia em papeis coloridos
às
vezes traduzia
a
gente tinha uma liberdade
de
quem não precisa obedecer a nenhuma regra externa.
mesmo
não sendo exclusivamente voltada para a poesia
para
mim,
a
moby dick tinha um selo poético no seu modus
operandi.
algum
tempo depois
tendo
a memória dessa experiência,
com
a valeska de aguirre que também era
editora na 7letras
e
a isadora travassos que
ainda hoje é editora lá,
decidimos
criar uma coleção de poesia
desta
vez seguindo mais as regras editoriais
por
exemplo, os livros tinham isbn e
uma pequena distribuição
foi
a coleção guizos
que
tem esse nome por causa do gato da poeta portuguesa adília lopes
o
plano piloto da coleção foi o livro krill
do aníbal cristobo
nessa
época a coleção ainda estava em elaboração
e
acabamos montando no formato da guizos
mas
fazendo como na moby dick
tiragem
pequena impressão feita dentro da editora acabamento com grampo canoa.
a
partir desse livro
montamos
a guizos
que
teve 20 títulos publicados
de
autores brasileiros contemporâneos.
assim
tínhamos
na 7letras esse espaço para inventar algumas coisas
a
modo de usar & co. veio em 2007.
se
pararmos para prestar atenção
na
maioria das vezes
as
coisas acontecem circunstancialmente na vida.
o
caminho vai sendo construído pelos acasos
depois
traçamos essa linha para trás
tentando
produzir significado.
por
isso eu queria responder uma das perguntas que o lucas me fez
por
que eu entrei na atividade de edição da modo de usar
relatando
como isso me aconteceu:
em
2007
eu
já trabalhava na 7letras há um tempo
e
conhecia os outros editores da revista por ter editado seus livros lá
com
exceção do ricardo,
que
eu conhecia por um amigo em comum, o dimitri,
mas
nos aproximamos mais por conta dos nossos livros
que
foram editados na mesma época.
então
a ideia da revista veio do fabiano calixto
que
era muito amigo da angélica
que
por sua vez convidou o ricardo
que
me convidou.
nós
4 só tínhamos nos encontrado uma única vez
em
são paulo em uma leitura
mas
começamos a conversar principalmente por email
começamos
a trocar traduções
colocar
na roda os poetas que líamos e descobríamos
trocar
leituras e conversar sobre o que cada um queria:
o
que é uma revista? o que
cada um está lendo?
o
que queremos compartilhar?
seria
uma revista editada por poetas
e
por isso guiada também pela pesquisa de escrita de cada um.
na
época a angélica morava em bahia blanca na argentina
o
ricardo em berlim eu no rio
o
fabiano em são paulo
e
cada um podia trazer coisas que o outro não conhecia
e
reunir esses quatro recortes do mundo
na
revista.
essa
era a coletividade da revista.: o & co. do nome.
apesar
das diferenças, afinal somos 4 editores,
tínhamos
duas convergências
que
acredito ainda valerem hoje:
1.
traduzir e compartilhar poetas de outras línguas que nos interessavam.
a
tradução era importante para os 4 e funcionava como pesquisa para cada um, como
forma de conhecer outras vozes, outros poetas.
2.
reunir na edição cruzamentos com outras artes, música / artes plásticas /
quadrinhos.
um
exemplo, no número 2 tem um poema da nathalie quintane
que
é uma história em quadrinhos
no
número 3 tem um sonho contado por um músico, o rodolfo caesar
ou
um poema escrito pelo artista plástico guillermo kuitca
olhando
pra trás, talvez esse diálogo seja um pouco tímido ainda
mas
ele sempre esteve no horizonte da revista
assim
preparamos
o número 1:
com
mais ou menos 20 poetas traduzidos
do
alemão, inglês francês espanhol
+
novos autores brasileiros
e
esse cruzamento com outras artes
como
eu já tinha um pouco de experiência de edição na 7letras
cuidei
do projeto gráfico, diagramação e contato com as gráficas
e
fizemos uma proposta de co-edição ao daniel, da livraria berinjela
que
nos ajudou a arcar com a impressão da revista
a
fazer o lançamento
além
da livraria ter virado o ponto de venda da modo de usar.
esse
foi nosso ponto de partida.
de
algum modo
tinha
um pouco do lúdico que eu havia experimentado na 7letras
neste
número 1
tivemos
problemas para encontrar impressão sob demanda
e
acabamos fazendo uma tiragem de 500 exemplares
tiragem
grande demais para o que era a revista
e
precisei por alguns anos guarda-la em caixas debaixo da cama.
os
outros números esgotaram logo
já
a partir de 2009 fizemos 150 exemplares
e
foi o suficiente.
quando
ficou pronto o número impresso
fizemos
o blog.
inicialmente
era mais informativo,
falando
dos dados da revista, lançamentos e resenhas,
mas
logo surgiu a ideia de postarmos
os
poetas que estavam no número impresso.
no
blog tínhamos inúmeras ferramentas
como
áudio, vídeo e imagem
e
era possível produzir outro tipo de conteúdo –
por
exemplo um artista como john cage
que
estava no número 1 com um poema
podia
ter o mesmo texto da revista
ao
lado de peças sonoras, com textos de apresentação
às
vezes com pequenos ensaios e leituras breves.
e
assim foi.
havia
uma espécie de reescrita do material impresso
no
meio digital.
ao
ser reescrito o material se transformava.
o
blog cresceu com postagens
semanais
e
foi aos poucos ganhando uma cara e outras funções.
ultimamente
ele tem sido alimentado quase que exclusivamente pelo ricardo
já
a revista impressa acabou sendo bienal.
estamos
no n. 4
e
mesmo com essa periodicidade espaçada
insistimos
na revista em papel
pela
narrativa interna
determinada
pelo formato.
os
textos juntos dentro da revista assumem um tipo de diálogo
que
eu considero diferente do espaço do blog
o
blog é infinito e tem essa estrutura de hiperlinks da internet
funcionando
como uma espécie de banco de dados
a
revista em papel cria uma relação própria entre os textos
e
tem uma marca temporal
que
na internet funciona de outro modo
acredito
que uma forma complemente a outra.
por
fim,
o
lucas me perguntou
se
compreendo algum sentido específico (político, cultural)
em
exercer essa atividade no contexto do mundo de hoje.
queria
retomar a imagem inicial do fantasma
não
para concluir pois quero manter a escuta aberta.
retomo
a imagem do fantasma
pois
acho que pode ser produtiva para pensar a edição de poesia.
acho
que editar poesia
é
uma maneira de tentar lidar com os fantasmas
de
entender e elaborar os tsunamis
e
propor mais formas de ler o mundo
–
não para substituir as que existem
mas para complementar alargar e
entender outros sentidos.
acho
que editar poesia é uma maneira de escapar
dos
fantasmas do mercado editorial,
das
cadeias discursivas já prontas e dadas,
para
encontrar outras formas de entendimento.
desse
ponto
talvez
possamos passar de um mundo cheio de fantasmas
para
uma vida de bactéria por exemplo
para
citar o título do livro novo do aníbal –
em
que o diálogo se dê de outras maneiras
por
contaminação ou por meio de processos microscópicos
em
que um poema possa passar por uma fresta
e
alcançar um outro.
*
Aníbal Cristobo
Bem, eu acho que, talvez, esse negócio do
fantasma que a Marília tava falando, no meu caso, tem uma sensação um pouco
contrária a isso. As pessoas que me conhecem, sabem até que ponto para mim o
Rio de Janeiro tem sido um acontecimento biográfico fundamental, a
possibilidade de acompanhar durante cinco anos aqui o trabalho e o talento e a
generosidade de pessoas que eu admiro tem me configurado no que eu sou hoje.
Então ver que isso é uma coisa que não tem exatamente um ponto de início e um
outro ponto de finalização mas que de algum jeito continua acontecendo é para
mim a melhor coisa que pode acontecer. Então, eu quero agradecer muito ao Lucas
que fez tanto esforço e tanta coisa realmente para que eu possa estar aqui.
Eu costumo dizer, às vezes assim na
brincadeira, que o meu trabalho com a Kriller71, na verdade, mais que um
trabalho editorial é um trabalho de guerrilha. E dentro dessa ideia de
guerrilha poder estar aqui hoje escutando o que a Marília e o Ítalo têm para
falar é um curso de tática avançado, concretamente de supervivencia. E realmente é uma possibilidade para mim de
continuar aprendendo e continuar ativando esse compartilhar e esse dividir as
experiências tão ricas que acontecem aqui no Rio de Janeiro. E que me faz
pensar também uma coisa que essa inteligência e essa ética das coisas que eles
fazem na verdade está en cerca dentro
de um campo e de uma forma social de entender e de lidar com as coisas que eu
acho que não é diferente da inteligência e da ética que vêm se vendo na luta do
povo em muitos campos nas reivindicações que vêm se fazendo. É uma coisa que eu
fico muito orgulhoso quando eu vejo muitas coisas que estão acontecendo porque
para mim está no mesmo nível que esses negócios de edição. E eu fico pensando
quando vejo essas coisas: eles são meus amigos. E fico muito feliz de ver esse
tipo de coisas refletidas também e acontecendo em outros campos e atravessando
várias disciplinas.
Para falar, enfim, sobre a Kriller71 que
são esses livrinhos aqui [há diversos livros sobre a mesa] que eu venho fazendo
em Barcelona, que é onde estou morando faz doze anos... Tem muito pouca coisa
que eu queria falar na verdade. Uma é que a editora nasce de uma ideia que não
é exclusiva dos livros e que tem a ver com um processo muito básico, que é a
ideia de compartilhar as coisas que a gente gosta, na verdade. Acho que é a
mesma coisa que quando você gravava um cd para alguém ouvir as músicas que você
gostava, ou quando você coloca no seu blog poemas de outros poetas para
compartilhar aquilo com seus amigos. E então, eu acho que isso, na verdade, os
livros, a Kriller71, é simplesmente um desdobramento material que tem outra
forma mas que continua na mesma linha de intenção que essas coisas que eu
estava falando.
Também tem uma coisa que eu gosto muito de
pensar, que é uma coisa que o poeta e crítico argentino Edgardo Dobry falou uma
vez para mim, que eu fiquei achando que é o caso. Ele diz que um editor muitas
vezes é um leitor que está procurando um livro mas, como ele não acha esse
livro, acaba tendo que fazer. E foi certamente o que aconteceu, por exemplo, no
caso desse livrinho aqui, do Robert Bringhurst. Li os poemas dele a primeira
vez aqui no Rio faz um monte de anos, na revista Azouge, do Sérgio Cohn. Achei muito bacana o trabalho. E com aquele
complexo periférico eu pensei: ah, o dia em que eu for para a Espanha, eu vou
encontrar a tradução do cara e os poeminhas dele. Só que ninguém nem tinha
ouvido falar do Bringhurst lá na Espanha, né? Então começou todo um périplo,
aí, para conseguir entrar em contato com o cara, o livro dele em inglês, não
sei o quê, depois eu encontrei uma edição que tinha em Portugal também. Acabou
sendo uma coisa que eu fiz com esse sentido do que o Dobry falava, um livro que
eu queria que existisse, para ser primeiro leitor também, mas que como não
tinha acabou que fui eu que fiz.
Uma outra coisa que eu penso é na
possibilidade de fazer uma mínima intervenção no panorama ou no circuito
editorial da Espanha, que é uma coisa evidentemente microscópica, mas que
também traga umas outras possibilidades, como o fato da autogestão. Eu acho que
ainda, na Espanha, tem um modelo de editorial
e um modelo cultural que não está acompanhando muito bem o que está acontecendo
lá, né? E que ainda tem muitas pessoas, assim, que têm um imaginário mais
ligado à tradição das editoriais, das
grandes editoriais, que são as que
vão de algum jeito fornecer para elas a poesia e a cultura em geral. Então como
eu venho de um background muito diferente – na Argentina, todos sabem muy bien que se a gente não faz as
coisas, as coisas não acontecem – eu acho que também é interessante isso:
tentar mostrar a possibilidade de que uma pessoa, por fora do mercado editorial
constituído possa fazer esse tipo de guerrilha e possa, não sei, mostrar outras
coisas que talvez não estão presentes dentro das editoras de Espanha. E também
ver de que jeito esses autores que eu posso tentar fazer com que fiquem perto
das pessoas, ver se isso também num ponto entra na circulação da própria
escrita, ver se isso pode ser metabolizado e também ter algum efeito sobre a
escrita. Enfim, é uma coisa ambiciosa demais, né? Depois não acontece nada
disso, e acontecem outras coisas, mas isso tem a ver com a minha ideia.
Eu acho que, hoje, eu vinha pensando,
assim: um dos erros mais básicos dessa ideia que eu tinha é que eu via essa
intervenção numa mão única, e ela na verdade vai e volta. Porque você faz uma
coisa e pode modificar minimamente aquilo, mas aquilo também vai te modificar
na verdade. E isso também é muito interessante porque você vai vendo como eu
podia ter essa ideia de levar umas leituras que eu achava interessante para lá,
mas depois também quando os livros começam a circular, tem pessoas que falam:
“olha, eu vi tal, esse livro aqui que você fez”, “olha, vou te passar um
material que eu traduzi de um poeta romeno para ver se você tem interesse em
publicar”. E aí então começam a chegar outras coisas que outras pessoas acham
que podem ser afins a esse meu projeto, e até realmente acho que tem muitas
coisas afins ao projeto, e que trazem leituras para mim que eu não tinha.
Então, é realmente uma intervenção muito mais mão dupla do que eu tinha
imaginado originalmente, o que é muito melhor do que eu tinha pensado.
E também tem um diagnóstico duplo que eu
tinha em relação à Espanha muito intuitivo, e muito pouco fundamentado, sobre
duas intuições que tive quando cheguei lá e nesses anos que eu estou morando
lá. Que no plano cultural e editorial, tinha pouco esse movimento espontâneo,
essa autogestão, e tinha muita interferência do Estado e das empresas, que são
justamente duas áreas que agora estão numa crise muito forte. Porque o Estado já não tem esse dinheiro,
essa verba para criar essas intervenções que fazia. Muito mal feitas também,
né? Porque na verdade o que acontecia é que tinha umas verbas para uma
cidadezinha qualquer, e pessoas muito despreparadas tinham que fazer alguma
coisa. Então, eles acabavam fazendo concurso literário “Tema El toro”. O que gera duas coisas muito erradas: o concurso em
si, e também uma criação sob demanda de um eixo que não tem nada a ver, pessoas
que começam a escrever poemas sobre o touro, e a formar uma ideia da poesia em
relação àquilo. Ou do trem, assim, muitos concursos temáticos muito ruins. E
também, o primeiro golpe de vista, a primeira impressão, foi também que a
poesia que eu via que se estava produzindo lá tinha uma coisa um pouco
conservadora para mim. Então, eu achava que era legal fazer essas misturas e
levar umas outras leituras dessas experiências tão boas que eu tinha tido aqui
por causa da revista Inimigo Rumor e
por causa de estar perto do trabalho da 7letras, que foi um momento de muitas
descobertas e de muitas coisas que começaram a circular sem ser travadas nas
alfândegas.
Para mim, a coisa mais interessante desse
projeto foi que ele começou do zero absoluto, quer dizer, da mais completa
desinformação. Eu comecei a fazer isso sem conhecer ninguém praticamente, nem
poetas, nem pessoas que tivessem a ver com edição de poesia, nem nada. E com
uma estrutura e uma capacidade econômica nula na verdade, que continua sendo a
marca da casa. E então, eu achava interessante meio que instalar esse paradoxo:
uma pessoa que trabalha de qualquer outra coisa, que tem uma família, que não
tá sobrando nada, pudesse fazer o que nenhuma editorial séria tinha feito, como, por exemplo, fazer uma antologia
do Paulo Leminski e do Arnaldo Antunes. Eu acho, não sei, muito doido, no caso
do Leminski, um cara que tá vendendo 80.000 exemplares aqui no Brasil, e o
mercado editorial espanhol não tem nenhuma notícia daquilo, não vê nada demais,
achar que isso é uma coisa que acontece no Brasil, mas que não tem nada com
eles. Realmente foi uma experiência e é uma experiência muito rica, porque, por
exemplo, no caso da antologia que a gente fez do Leminski foi assim: eu passei
sem saber nada por todo esse processo de, bem, conseguir os direitos, escolher
os poemas, traduzir os poemas, fazer a maquete do livro, levar o livro pra
gráfica, distribuir o livro eu mesmo; conseguir uma pessoa, um artista plástico
daqui, o Walter Gam, que fizesse a fotografia da capa, conseguir que um dos
primeiros críticos, ou o primeiro crítico, não sei, que escreveu sobre o Paulo
Leminski, o Manoel Ricardo, escrevesse o prefácio também; e isso tudo, sendo
uma pessoa que, na verdade, está fazendo qualquer outra coisa. Eu achava
interessante isso.
Então, de algum jeito, o que eu tentei
fazer desde o começo foi utilizar esse tipo de soluções criativas, e procurar,
vamos dizer, me centrar muito mais no capital biográfico, nas coisas que eu
posso dizer que eu sou agradecido de ter tido essas experiências, de ter morado
aqui no Rio, de ter conhecido as pessoas que eu conheci, de que, através dessas
pessoas, eu tivesse feito umas leituras que eu fiz, aproveitar isso. E, com
isso, de algum jeito, não ficar tão obsesionado
com esse outro capital econômico que não tinha o projeto. Também por causa das
edições sob demanda, não precisa fazer tanto, tem um jeito que você pode fazer.
A gente faz, sei lá, trezentos exemplares, e tal. E então, meio que dá para ir
fazendo os livrinhos. Não sei se aqui também tem essa obsessão, mas pelo menos
em Barcelona, eu acho que na Espanha também, parece que tem uma coisa: ninguém
vai fazer nenhum projeto sem levar ele para ser assessorado, para ver se isso é
viável economicamente, como que são os passos da criação daquilo, não sei o
quê. E é uma coisa que eu não fiz, nem tenho interesse em fazer na verdade.
Assim, tem um ponto em que eu não quero que isso seja pensado como uma editora,
nem eu como um editor, mas como um cara que faz esses livros. E que um dia,
amanhã, de repente, pode não fazer mais se ele não pode continuar com o
projeto.
Porque eu acho que, se o projeto for lido
desde um ponto de normalização disso como editora, só é para sair perdendo.
Assim, eu só tenho a perder, porque não tem como eu me pensar em relação
àquilo... E é uma coisa ambígua, porque eu tenho que tentar que o livro chegue
nas livrarias. Quando não tem distribuidora e sou eu que vou levar lá, tenho
que tentar mostrar uma certa confiabilidade; uma certa coisa de que o cara acredita
em mim. Mas ao mesmo tempo eu não tenho nenhum interesse em esconder a
fragilidade do projeto, quer dizer, eu acho que a fragilidade faz parte muito
claramente do projeto e o fato de que isso não seja uma coisa
institucionalizada. E eu tenho esse interesse de que isso seja visível não como
uma carência, mas como uma característica do projeto. Então, eu acho que é
difícil manter essas duas coisas juntas, mas que é uma coisa que me interessa.
Que isso não seja normalizado. O que tem a ver para mim também com o fato de
que eu não quero que isso seja pensado desde a perspectiva do consumidor, mas
da perspectiva do agente cultural que se compromete com uma comunidade. Não
simplesmente de um cara que pensa se vai comprar um livro, e quanto vale o
livro da outra editorial, quanto vale
esse, quantas páginas tem, quer dizer, [para Marília] eu acho que tem a ver com
o que você falava que são essas pontas que já têm uma forma pré-formatada de se
relacionar com as coisas. E aí, não dá certo. A gente precisa encontrar umas
outras formas, de umas pessoas que tenham uma outra flexibilidade para ler as
coisas que estão acontecendo e que a gente faz. E é a mesma coisa que eu falo
sempre quando as pessoas mandam manuscritos por email. Tudo bem, assim, eu
aceito, eu posso ler aquilo, sempre quando o diálogo não tem a única pauta de
se o livro vai ser publicado ou não. E tenha uma outra possibilidade de diálogo
diferente dessa. Do mesmo jeito que, para mim, um leitor de poesia tem um
diálogo que vai além do fato do cara comprar o livro ou não. Porque, senão,
outra vez, a gente só fica nessas vias que são furadas completamente, eu penso.
Então eu acho que tem a ver com isso, tem a ver com o fazer, tem a ver com os
livros, tem a ver com os poemas de pessoas que eu acho interessante pegar
daqui, levar para lá, mas também com repensar esses vínculos, com os quais
estávamos nos relacionando.
*
Ítalo Moriconi
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiVrOAt3U7pMdtMNdr8z4sKFZEotGXGyqZt2i1ClN87OMvwCej5hDhPM3wWl9VQjhGcusf42ilDuw7xJgUsjY6D0Gk7TecRPlov0xSIkVH2QKdlFEk5tv9iOs3F7nn8oVbnU-pgso4QEcaC/s1600/vlcsnap-2014-05-14-13h59m58s6+%25282%2529.png)
Boa noite a todos. Estou bastante
contente de ter podido de uma certa forma incorporar esse nosso encontro
(animado pelo pessoal da Bliss não tem bis) dentro do calendário de
comemorações de 20 anos da EdUERJ, que até agora não existe. Estamos fazendo 20
anos e eu sou diretor apenas 6 anos. A fala, quando chega a mim, chega ao espaço bastante
institucional, embora seja impossível falar de um espaço totalmente não
institucional, porque de alguma maneira vocês representam o circuito e mil
ambiguidades. Só manifestar esse prazer de estar aqui com a Marília e também
com o Aníbal, que eu mais ou menos de um fora que é quase que geracional, acho
super importante a presença do Aníbal,
assim como tenho certeza que a Marília também.
Ele falou o quanto o Rio foi importante para ele e nós sabemos o quanto
foi importante a presença dele aqui com a o projeto da Inimigo Rumor e no sentido
não só do trabalho dele como poeta, mas também de agenciar questões que eu
pessoalmente acho que são fundamentais dentro da poesia. Bom, acho que um dos
assuntos principais pelo qual o Lucas achou que caberia eu estar aqui é
obviamente a coleção Ciranda da Poesia. Eu queria falar um pouco da
Ciranda, não especificamente só da Ciranda, mas de outros aspectos que estão
vinculados a ela.
Em primeiro lugar, num certo
sentindo a Ciranda da Poesia está dentro de uma
certa tradição que existe na UERJ
de se trabalhar com poesia. Tanto no Instituto de Letras quanto, por
exemplo, a editora da UERJ foi criada em 94, há 20 anos, ela antes de ser
criada foi feito um projeto de poesia que era uma coisa artesanal, aqueles
cadernos de poesia cumpridos, na época eu não tinha nada a ver com edição, eu
era apenas um professor que tinha feito um ou dois livros de poesia. Eram uns
cadernos muito legais que incorporavam toda essa dimensão artesanal e dialógica
da poesia, eram muito bem editados. Outra coisa que a gente sempre teve a
partir de uma certa época na UERJ foram as oficinas de poesia, o programa
escritor visitante que teve Carlito Azevedo, Ferreira Gullar. Tivemos os mais
diferentes tipos de escritores e poetas.
Só assinalar isso, que quando eu
assumi a editora da UERJ, eu sabia que estava lidando com um universo de
carência que não ia dar para transformar de uma hora para outra, como está cada
vez mais claro para mim. De uma hora para outra você não tem como transformar
uma editora de uma série de dificuldades de implantação em uma imensa editora
universitária com um catálogo grande, mas isso a gente vem trabalhando com o
catalogo nas ciências humanas que está cada vez mais interessante e importante.
Mas eu falei “eu quero fazer alguma
outra coisa que tenha a ver comigo”. Eu quero brincar com alguma coisa,tem essa
ideia de ludicidade, trabalhar no campo editorial da poesia fora dos esquemas
institucionais ou de mercado, e dentro de um esquema de paixão por esse
compartilhar poesia – que todo mundo começa por aí ou de alguma maneira está
imerso nisso aí. Tivemos a ideia da Ciranda da Poesia, fiz questão de que o
nome da coleção fosse Ciranda-da, brincando com “dadá” para marcar bastante um
lugar do poético que não é o lugar do épico ou grande grandiloquente, ou mesmo
do mainstream, digamos assim. Um
lugar mais experimental possivelmente, ou que tem a ver mais com a modernidade
e com dadaísmo. Esse tipo de poesia, que aceita um Zuca Sardan, um Oswald de
Andrade. Eu acho que não é a única fonte, mas era a fonte com a qual eu queria
comprometer a coleção.
O projeto da Ciranda é um projeto
institucional. Eu, na verdade, na minha vida já participei desses três tipos de
circuitos: tanto circuito da nova poesia que se faz das experiências mais
artesanais, que é um circuito que mudou completamente com a coisa virtual, e eu
acho que vocês dois também tem muito a dizer sobre isso, não apenas da
utilização do suporte virtual como a relação do impresso com o virtual. Tanto
na experiência do Aníbal, quanto da experiência da Modo de Usar é muito
significativo isso tudo. E também o projeto do Bliss não tem bis, o cd
poético. Mas a coleção Ciranda é uma
coleção de 2º grau, é uma coleção de crítica. A gente faz volumes sobre poetas
contemporâneos, então queremos justamente colocar num circuito de leitores
maior, nossas tiragens são de no mínimo 300, vários estão esgotados e alguns já
tiveram reedições. O simples fato de ser uma editora universitária já dá um
potencial de divulgação e venda maior.
O objetivo primeiro era colocar o poeta crítico
- na medida que a crítica de poesia realmente é cada vez mais vinculada à
atividade poética, então, em geral, o crítico de poesia é também poeta e a
gente queria explorar muito essa dimensão - escrevendo sobre seus pares ou não
necessariamente sobre seus pares. A ideia é de uma contemporaneidade, mas um
pouco alargada, porque na escolha dos autores que são poetas ou críticos sobre
esses contemporâneos, tem uma contemporaneidade um pouquinho mais antiga como,
por exemplo, a do Paulo Leminski, que a gente achava que era importante sair
das primeiras leituras desses poetas dos anos 70 e começar a fazer novas
leituras, já que tem novos movimentos de
poesia acontecendo. Esse era o objetivo da coleção. Num momento também em que
havia uma grande crise, um certo ceticismo ou discurso céticos em relação à
possibilidade de uma crítica da poesia atualmente, [a proposta era] chamar as
pessoas para fazerem crítica da poesia. Não sei se está em crise ou não, mas
escrevam sobre poesia.
Também sempre levando em conta a
necessidade que existe de quando você tem um movimento poético acontecendo que
haja as leituras. A crítica e a poesia são dois movimentos concomitantes (a
leitura e a escrita; a escrita e a leitura), esse compartilhar que ficou muito
marcado no discurso de vocês dois está exatamente nessa ciranda que é o
poético: você lê criando e você cria lendo. A ideia da Ciranda é uma ideia
engenhosa que de alguma maneira se tenta dar num circuito institucional que não
chega a ser o da antologia Cem Melhores Poemas que é puro mercado, mas dentro
do circuito universitário trazer um pouco essa ideia de rede. Não da maneira
digamos radical, inovadora e super legal que foi o Escolhas Afectivas. Então a
ideia de rede que está perpassando muito pelo discurso do Aníbal, [para Lucas:]
que responde muito àquela provocação que você fez para a Marília, que é a
questão da relação entre poesia e política. O especificamente político da
poesia hoje, acho que uma das questões mais importantes para pensar e que
implica no questionamento do próprio ato
critico, do que é a critica e de como se faz o processo de leitura e de
escrita, está nessa ideia de uma rede proliferante e horizontal que vem muito
mais do compartilhar do que ficar sinalizando. Enfim, é o que eu chamo, acho
que até usei essa expressão no disquinho [revista-disco Bliss não tem bis], que
é atividade critica como uma porta. A poesia é uma casa que tem uma porta em
que uns entram e outros saem. Então é um outro tipo de relação, a relação em
rede mesmo. Essa ideia da atividade crítica como uma atividade de rede está um
pouco na questão da Ciranda. Todo poeta na Ciranda é objeto e sujeito, ele
tanto pode ser lido por um “poetânio”, quanto estar lendo. Isso seria o núcleo
duro.
A coleção também tem uma porosidade,
ela não tem uma política muito firme sobre nada. Então embora a ideia seja
poeta escrevendo sobre poeta, e isso girando (eu escrevo sobre ele e ele
escreve sobre mim), mas também pessoas que sejam apenas críticos ou tradutores
podem escrever na coleção. Assim como é sobre contemporâneo, mas pode abrir
para o pessoal dos anos 70. E também na própria língua, porque dentro de uma
editora toda organizadinha assim, como tem que ser uma editora de uma grande
universidade, a gente praticamente apagou a fronteira entre a poesia brasileira
e a poesia estrangeira, porque os volumes de tradução são idênticos, tem só um
pequeno sinal, um “t” esmaecido na folha de rosto, indicando que é um livro de
tradução. Não é uma coleção de poesia contemporânea brasileira, eu chamo (estou
gostando atualmente, não sei se vou manter eternamente esse gosto) de poesia que
se faz em língua brasileira hoje, mas entendendo a língua brasileira como
alguma coisa que está em diálogo com outras línguas também. Então a atividade
da tradução é tão central, na minha opinião, para o que há de mais interessante
e mais relevante na poesia hoje, que a coleção tem portugueses, brasileiros,
argentinos traduzidos, franceses traduzidos.
Vocês falaram muito em Rio de
janeiro. A Marília pairando como uma fantasma e o Aníbal como coração e
víscera. A coleção reflete um pouco na sua orientação mais geral um determinado
contexto de criação que é esse contexto Inimigo Rumor, o contexto carioca de um
espaço mais restrito – e eu chamaria de experimental. Acho que o nosso plantel
está muito informado por uma visão que vem daí. Mas é central na proposta da
Ciranda da Poesia abrir isso. Não diria que a gente busca um ecletismo, mas uma
diversidade. Ou seja, a coleção não é um
periódico de poesia que tem uma política marcada. Então, para nós é importante
que tenhamos poetas de outras filiações, abrir para outros universos poéticos.
Esse contexto carioca dos últimos 20 anos que se aglutina em torno desses
vários projetos: Inimigo Rumor, Modo de Usar, as iniciativas do Aníbal, que de
repente tem um eixo, está longe, mas é como se Barcelona é o Rio de Janeiro num
certo sentido, e o espanhol é o português e o português é o espanhol. Mais do que uma tradução, é um processo de
metamorfose.
A gente pretende realmente
ultrapassar um pouco essas fronteiras e ter um leque mais amplo. O que é sempre
complicado, mas não do ponto de vista da proposta Ciranda propriamente. Sempre
tendo noção que as tribos podem entrar em choque ou se estranharem. Entrar em
choque nem tanto, porque eu acho que já ultrapassamos essa etapa selvagem da
cultura brasileira, mas elas podem se estranhar um pouco ao ponto até de cada
família ter um nominalismo. O que é poesia para mim de repente não é poesia
para outro, tem esse tipo de coisa. Acho que a coisa pode ser pensada de maneira
um pouco mais fina em função de circuitos.
Outra coisa que tentamos, mas não é
tão fácil assim, porque nós somos puxados por esse poder de atração, pelo fato
de sermos uma editora do Rio de Janeiro. Mas é muito importante pra nós ter
gente de Minas, gente de São Paulo, ter uma circulação nacional. Acho que a
gente já tem uma presença em alguns lugares, mais ainda queremos mais
paulistas, mais mineiros, mais gente de outros estados. Conhecer mais e
publicar mais. Eu sempre digo, a Ciranda da Poesia, em princípio - pode ser que
isso se revele como um sonho irrealizável ou até como um sonho errado -, mas
ela em princípio é para ficar para todo o sempre. Como a Editora Agir teve
aquela coleçãozinha “Nossos Clássicos”, que pelo menos a minha geração fez a cabeça
naquela coleção. Ela era uma coleção eterna, ela durou anos e anos e anos. E a
Ciranda é isso. A ciranda é a ideia de que sempre existirá na EdUERJ a coleção
Ciranda da Poesia propondo esse diálogo, essa circulação de poetas e o discurso
crítico.
Tem também outro aspecto sobre a
coleção em si que é: não há um controle editorial sobre a perspectiva crítica,
sabe? Então quando a gente pede a alguém pra escrever um livro sobre algum
poeta; na maioria absoluta dos livros da ciranda, nosso método é praticamente
assim: “quer escrever pra Ciranda? qual poeta que você quer escrever? esse?
então escreva sobre esse”. As perspectivas críticas podem ser as mais variadas.
Tem vários volumes que tem uma coisa que eu acho que é uma tendência muito
forte, dessa crítica mais recente, dos jovens que estão escrevendo crítica, que
eu chamo da implicatura do eu. Então fazem leituras, assim, aproximando muito a
experiência pessoal da leitura daquela poesia. Não tenho nada contra isso, só
estou chamando a atenção, que surgiram muitos textos assim. Já outros não, são
bem quadradinhos, porque também achei eu (e achamos nós) que era importante
que, como são volumes de uma editora universitária que não querem facilitar,
mas que de certa forma tentam se dirigir a um público, eu sempre penso eu
jovem, quando queria ler sobre poetas e tava começando - me lembro quando tinha
quinze anos e fui ler Metalinguagem do Haroldo de campos, foi uma das
experiências fundantes de mim. Então eu fico pensando nisso: alguém tá
interessado por poesia contemporânea e tem esses livros da Ciranda nas
livrarias, aí ele pega e lê. Então para mim era importante ter a close reading.
Um dos aspectos mais interessantes
da encomenda da Ciranda é que a pessoa é solicitada a fazer uma antologia.
Muitos dos poetas – eu imagino que o Aníbal deve ter tido uma experiência
interessante fazendo um exercício de antologia com o Paulo Leminski – nunca
foram antologizados, são poetas contemporâneos. Nunca passaram pelo crivo de um
olhar crítico, qual fosse. Mas um pré-requisito mínimo, que nem todos seguiram,
era que alguns dos poemas escolhidos na antologia fossem analizados tipo close reading, um linha a linha, porque
é assim que você se aprofunda um pouco mais no que é a leitura propriamente
poética – embora os tipos de texto poéticos possam ser diferentes e talvez até
alguns tipos de poemas percam se receberem uma leitura tipo linha a linha. Eu
acho que vários poemas dessa constelação não precisam de leitura linha a linha,
precisam de outro tipo de leitura.
A Ciranda é mais ou menos isso. Acho
que depois no debate, se eu deixar vocês falarem, a gente pode conversar mais
sobre isso. Eu só queira fazer um pequeno comentário a partir do disco, do CD
“Bliss não tem bis”. Lá eu estou na minha persona de crítico. Ficou linda a
faixa musical, agradeço, e aí tem aquelas minhas três pequenas falas, que
aquilo tudo foi uma ideia do Lucas. São 3 trechos. O primeiro trecho não me
interessa nesse momento. Aí são 2 trechos. Eu estava reouvindo hoje e o segundo
e o terceiro trecho não tem nada a ver um com o outro. E o segundo trecho
talvez não tenha nada a ver. Eu vou dizer por quê. Porque eles falam de dois
campos, ou dois circuitos, completamente diferentes. Então, no segundo trecho
(o Lucas queira que eu fizesse uma coisa provocadora, um repto, um desafio) eu
falo de uma qualidade alta - é verdade isso, não é demagogia – eu acho que tem
uma quantidade imensa de poetas novos escrevendo com uma qualidade alta, mas
tendendo a uma homogeneização à forma do verso, etc. Houve a partir dos anos
80, 90, uma recuperação, depois daquela geração marginal, um novo prestígio do
poético. E eu, na verdade, não tenho nada contra isso, acho legal, mas, é uma
mediania que vai cada vez ficando todo mundo igual. E aí eu lanço esse repto
assim: se esse tipo de linguagem, da recuperação do verso, principalmente da
qualidade poética e da ideia de poema e da própria ideia de poesia como
discurso em verso estaria chegando a um certo limite por estar chegando a uma
banalização ou pasteurização.
No terceiro trecho, eu faço uma fala
que é completamente oposta à segunda. Porque eu falo de um tipo de poesia que é
a que me interessa realmente como alguém mais próximo da prática poética, que é
uma segunda vertente que também aponta para um limite da crítica. Para você ver
como pode ser complexa e prismática qualquer discussão sobre poesia e crítica,
quando você pensa nos diversos campos possíveis, nos diversos alcances
possíveis e nos diversos interesses que podem ser até conflitivos, embora não
necessariamente devam se excluir.
Então existem, paralelamente a uma
massa imensa de bons livros de poesia que saem todo ano e que tem esse perigo –
lá [na faixa] eu coloco como perigo, porque na verdade esse é um movimento
normalizado da poesia, digamos assim – e esse tipo majoritário de poesia
certamente precisa de um movimento de uma crítica no sentido clássico da palavra,
sem dúvida. Porque a decantação é fundamental, porque quando você tem uma
quantidade brutal sendo produzida – eu e várias pessoas aqui presentes estamos
agora tendo essa experiência. Eu estou naquele primeiro jurado do Portugal
Telecom, então você recebe, sei lá, 300 livros de poesia. A maioria é bom.
Nesse ponto eu acho que o Aníbal tem um pouco isso, o Aníbal gosta de poesia.
Ele vê poesia e, ao mesmo tempo em que tem um sentido muito grande de qualidade
de seleção, também tem essa abertura completa, prática, para o movimento da
escrita.
Agora, nessa outra vertente que é a
que me interessa realmente mais como criador, como alguém ligado no movimento
poético, que eu acho que esse solo cultural de vocês [Marília e Aníbal] ao
longo dos anos representa e que é o que a Ciranda também quando bota “dada”
está querendo fazer, primeiro ele aponta para um limite da crítica pelo
seguinte - aí eu volto às palavras, que já estava em prática lá na minha sala
de aula vários anos atrás: a poesia como modo de usar, como modo de fazer e
como modo de desfazer. Nesse plano, a atividade crítica é a própria atividade
poética, ou seja, não necessariamente você cria um discurso crítico racional.
Não há um discurso crítico, porque a maneira de você praticar um discurso crítico
é escrevendo um poema, é através de propostas criadoras. De periódicos, de
livros, de trabalhos.
Quando a gente observa, por exemplo,
qualquer periódico de poesia, não apenas o de vocês, mas qualquer um, e
qualquer site de poesia, para usar uma palavra da publicidade, tudo tem um
conceito. Mais ou menos explicitado pelas pessoas que estão fazendo a coisa,
mas sempre há um conceito. E esse conceito é o dado justamente de inteligência
no objeto, que tanto pode estar no discurso crítico clássico conceitual, como
pode estar numa proposta criadora a partir de um diálogo por igual.
O diálogo tanto pode ser por igual,
como nessa lógica das redes, quanto pode ser um diálogo com um sistema de
referências. E é bom que exista um cânone, porque, por exemplo, lá no CD da
Bliss tem uma fala do poeta como fingidor [faixa de Laura Wrona]. Uma coisa
mais canônica do mundo, que seria uma relação do óbvio com o superóbvio, “ah,
eu vou fazer um trabalhinho com o poema do Fernando Pessoa”. Mas o trabalho de
vocalização, de gravação, de oralização, é extremamente interessante. Então não
apenas as relações horizontais entre as várias linguagens são a maneira pela
qual o discurso crítico se dá nesse outro plano em que a poesia existe, em que
realmente ela está fora de uma linguagem canônica propriamente, de uma
linguagem consagrada, e ela tá no campo que eu diria que é experimental. Por
isso que eu falei do campo experimental.
Então existe uma poesia que a gente
poderia chamar de experimental, mas o que que é o experimental? Aí eu realmente
acho que é o jogo do fazer e desfazer linguagem e língua, principalmente. Eu
acho realmente que o que tem de mais interessante na poesia e não apenas a
brasileira, a mundial, é esses embates dentro da língua. Por isso a tradução, o
multilinguismo, que é o que eu falo lá no terceiro tópico, como tem também no
poema lá, a fricção entre as línguas e a atração erótica também [Translating é sexy, poema de Leslie
Kaplan traduzido e vocalizado por Marília Garcia e Leonardo Gandolfi na
revista-disco Bliss não tem bis]. Então a atividade poética muito mais como um
desfazer permanente das estruturas linguísticas vigentes do que propriamente um
fazer. Dentro disso, não apenas a relação muito forte ultimamente entre as
línguas cultas, digamos assim, mas, por exemplo, a implosão que está se dando
com a questão indígena, com as línguas indígenas, essa explosão que está
acontecendo. Eu acho que interessante é a poesia em portunhol, as experiências
da poesia ameríndia e tudo o que vocês fazem em termos de trocas. Até
desenfreadas, porque compara, por exemplo, como era o papel da tradução no
tempo do concretismo, que era maravilhoso, mas era voltado pra criar um
referencial absoluto. E hoje a atividade de tradução é uma troca desenfreada, é
uma algaravia. Eu não opto, como minha prática de vida mostra, por uma coisa ou
outra. Mas realmente, do ponto de vista de um trabalho a se fazer, o que me
interessa muito é isso. Agora não tenha dúvidas de que essas experiências eu
vou colocar na coleção institucional da Ciranda, então tem uma dialética. Mas
tava querendo apontar pra essas dimensões.
***
Agradecimentos a Henrique Benzi, Casa de Leitura Dirce Côrtes Riedel; EdUERJ e 7Letras.
[PARTE 2]