Voltamos às postagens semanais do nosso
blog!
Na semana passada, apresentamos as diferentes narrativas disso que vai se constituindo como uma experiência de viagem permanente, que é a revista-disco de poesia Bliss Não Tem Bis. Até agora, fizemos 06 (seis) lançamentos em 05 (cinco) cidades diferentes (Rio de Janeiro, Pelotas, Cachoeira, Salvador e Feira de Santana); lançamos duas vezes aqui no Rio de Janeiro, primeiro em novembro do ano passado, depois em fevereiro deste ano, participando de uma tarde de performances num terraço na lapa na sede das companhias, na escadaria do Selarón, onde a atriz e autora Cristina Flores conduzia os Jardins Portáteis.
Temos planos diversos para este 2014, seja nos voltando para uma reflexão sobre o exercício da edição de poesia e produção poética hoje (em Maio, aguardem evento com Aníbal Cristobo, aqui no Rio de Janeiro!, e, ao longo do ano, postagens com catálogo de revistas de poesia atuantes no cenário brasileiro contemporâneo, dentre outras novidades), seja dando continuidade às linhas de tradução, antologia, crítica e divulgação de poesia e outras artes que marcaram o primeiro ano de existência do blog.
Esta semana, continuamos a viagem,
divulgando na internet pela primeira vez o Lado A da revista-disco. (Trata-se
das faixas de um dos dois CDs que compõem a Bliss não tem bis – quem quiser adquiri-lo, completo, com os 2 CDs Lado A / Lado B, envie um e-mail para blissnatembis@gmail.com,
ou acompanhe nossa programação de eventos).
Além disso, hoje, buscamos elaborar do ponto de
vista crítico as questões que envolvem a produção da revista-disco.
Efetivamente, embora tenhamos diversos poetas que, desde a década de 50,
explorem gamas diversas do fazer poético, experimentando na prática outra
concepção de poesia e do poema, é com dificuldade e de modo esparso que o
discurso crítico brasileiro sai do ambiente e das categorias de análise
consolidados na segunda metade do século passado. De um modo geral, a
referência do texto impresso e da página como espécie de valor essencial do
poético, referenciado como um dos modos do literário, é o standard das discussões
no país. É assim que, de diversos modos, reproduzem-se questões falsas (como a
que tenta opor a forma poética da canção à forma poética do poema impresso, resguardando
um valor de identificação do poético, ou da poesia “em si” ao último) e
mantém-se uma desatualização progressiva em que a crítica fica aquém da
produção poética não só internacional mas do próprio país.
Nesse sentido, talvez seja interessante
apontar exceções à regra, como as encontradas nos seguintes textos, afastados
quase vinte anos, mas que mostram outras perspectivas acerca da produção poética brasileira, Um
poema é um poema é um poema, [leia aqui] publicado na Folha de São Paulo em 1996
por Antonio Risério, e Contemporary
Brazilian Poetry, In The Singular: Giving Voice to a Few Tongues, Silencing
Hundreds (in the best Brazilian style), [leia aqui] primeira parte de ensaio de
Ricardo Domeneck sobre a poesia contemporânea brasileira, no qual fica clara
sua intenção de partir de uma perspectiva que considera a poesia em outra
chave.
Para adensar esse cenário, além da
divulgação do material criativo da Revista-Disco Bliss Não Tem Bis, escolhemos publicar aqui a tradução de um trecho
de um ensaio introdutório de uma coletânea crítica dedicada exclusivamente à
poesia sonora e à performance poética. Trata-se de uma coletânea publicada no
final da década de 1990, organizada pelo poeta e ensaísta norte-americano
Charles Bernstein. O livro traz ensaios de Bruce Andrews, Maria Damon, Joahanna
Drucker, Susan Howe, Steve McCaffery, Peter Middleton, Bob Perelman, Marjorie
Perloff, Nick Piombino, Peter Quartermain, Jed Rasula, Susan M. Schultz, Ron
Silliman, Susan Stewart, Dennis Tedlock e Lorenzo Thomas.
Escolhemos a introdução (apesar de volta e
meia, como é o caso de toda introdução, ela fazer referências frequentes ao
livro que virá) por seu aspecto panorâmico e por ela apresentar o núcleo
crítico, a concepção de poesia que permite ver o poema como uma existência
plural – sem precedência do texto impresso sobre a leitura performática, ou
vice-versa. Em breve, atualizaremos a postagem, disponibilizando uma tradução
do texto completo para download.
No caso de Bernstein, seu texto se volta principalmente
para 3 aspectos: a caracterização da leitura pública de poesia como momento fundamental
das experimentações e práticas poéticas do século XX (a sua apreciação se
circunscreve em especial ao espaço norte-americano, mas podia facilmente ser
estendida a diferentes países europeus, e, desde a década de 1970, ao espaço brasileiro (considere-se, por exemplo, a atuação da Nuvem Cigana, ou o projeto capitaneado por Chacal que já dura cerca de duas décadas, o CEP 20.000, além de diversos festivais e eventos públicos marcados pela presença da leitura de poesia); a explicitação de uma concepção poética com base na ideia de
performance do poema, e performance da palavra; o questionamento da disciplina
da Prosódia tradicional. A sequência do texto (a ser disponibilizada depois)
envolve a fundamentação da ideia de isocronia como superação, do ponto de vista
sonoro, da perspectiva crítica dos sistemas de medida acentuais e métricos. Um
dos méritos certeiros de seu ensaio é prover raciocínio e análise para o campo
da performance que, por sua temporalidade efêmera, parece muitas vezes restrito
a um punhado de considerações breves, e sem maior impacto.
Procuramos, na medida do possível, acrescentar uma
quantidade de links razoável à tradução para que, mesmo na falta do registro do
texto analisado, o leitor possa ouvir o poeta cuja obra está sendo comentada.
Esperamos, aos poucos, formar um material
que nos permita reconhecer a poesia como fenômeno fundamentalmente plural e a
leitura como movimento que envolve o corpo inteiro, integrando diferentes
experiências sensíveis e motoras, assim como as diversas faculdades de concepção, imaginação, e aquilo que liga uma coisa à outra (mente e corpo sempre em relação contínua).
No mais, fica o convite: ouçam cá esses poemas em performance!
E
fiquem com antenas ligadas para novos lançamentos da revista-disco!
Obs: as intervenções entre colchetes são do
tradutor.
Obs2: Para mais informações sobre o poeta e
ensaísta Charles Bernstein, ver [este endereço]. Ele tem uma série de conversas com
outros poetas que pode ser acessado [aqui].
***
LADO
A – REVISTA-DISCO BLISS NÃO TEM BIS
*
Introdução
de Close Listening: poetry and the
performed word (Escuta crítica:
poesia e a palavra performática) – por Charles Bernstein [Tradução: Lucas
Matos].
Eu canto e
toco flauta pra mim apenas
Pois ninguém
exceto eu entende minha língua.
Tão mal quanto
elas entendem o rouxinol
Pessoas
entendem o que diz a canção.
PEIRE
CARDENAL.
Ninguém escuta
poesia. O oceano
Não quer ser
escutado. Uma gota
Ou a
arrebentação. Quer dizer
Nada.
JACK SPICER.
Close
Listening: poetry and the performed word [Escuta crítica: poesia e a palavra performática] apresenta
dezessete ensaios, escritos especialmente para o volume, sobre leituras de
poesia, som e performance visual na poesia. Enquanto que a performance em
poesia é tão velha quanto a própria poesia, a atenção da crítica foi negligente
com a performance poética moderna e contemporânea, apesar de sua importância
crucial para a prática artística deste século [XX]. Esta coletânea abre muitos
caminhos para a discussão crítica do som e da performance, prestando atenção
especialmente em trabalhos inovadores. De maneira mais importante, os ensaios
aqui reunidos oferecem elucidações originais e de ampla abrangência sobre como
a poesia do século XX foi praticada como uma arte performática.
Enquanto este livro está voltado para
a poesia contemporânea, seu projeto se estende bem além do contemporâneo em
suas considerações da leitura de poesia moderna, poesias orais, e a lírica em
nossa e em outras culturas, e no seu esforço de repensar a prosódia à luz da
performance e da entoação da poesia. Esse é um assunto de horizonte amplo, que,
creio, será fundamentalmente transformado por esses ensaios. De um lado,
encontram-se abordagens filosóficas e críticas sobre o papel do som na
construção de significado: a forma como os poetas, e especialmente poetas
inovadores do século XX, trabalham com a sonoridade como um material, em que os
sons não são nem arbitrários nem secundários, mas construtivos. Na outra ponta,
está a interpretação crítica de estilo e performance de poetas individualmente.
Essas abordagens visam encorajar “escutas críticas” não somente do texto
impresso, mas também de fitas e performances (e consequentemente encorajar um
uso ampliado de gravações, o que vai, assim esperamos, fomentar a produção de
material do tipo por parte das gravadoras).
Escutas críticas podem se contrapor a
leituras de poemas baseadas exclusivamente no texto impresso, que ignoram as performances
do próprio poeta, a sonoridade “total” da obra, e a relação entre som e
semântica. Decerto, a discussão do som enquanto matéria e dimensão material
também chamam à cena desenvolvimentos tais como poesia sonora, peças e “cenas”
radiofônicas, trilha sonora cinematográfica, colaborações entre poesia e
música, e outras obras audíveis [...].
Qualquer abordagem de leituras de
poesia deve ser uma abordagem também da sonoridade da poesia; a primeira parte
desta coletânea prepara para a discussão específica da performance nas seções
subsequentes. Na parte III, Peter Middleton enfrenta o tema difícil e
escorregadio da história da leitura de poesia moderna. Seu ensaio sugere que a
questão acerca da origem das leituras de poesia pode ser colocada se invertida
– não “Quando as leituras de poesia moderna começam?” mas “Quando a poesia
deixa de ser apresentada primeiramente através da performance?”. Isto é,
“Quando (e se) a leitura silenciosa ganhou precedência sobre a performance ao
vivo?”. Conforme segue, Middleton conclui que leituras de poesia não são
fenômenos que podem acontecer aos poemas, que são os poemas que podem por vezes
se apresentar como leituras. Minha discussão própria aqui, além de
contextualizar essas outras contribuições, foca principalmente nas dimensões
acústicas da leitura de poesia.
Desde os anos 1950, a leitura de
poesia se tornou um dos principais espaços de divulgação de obras poéticas na
América do Norte, ainda assim, estudos de diferentes aspectos da poesia em
performance têm sido raros (e mesmo análises das obras completas de um poeta
rotineiramente ignoram a produção sonora), e leituras – independente da
quantidade de público atingida – dificilmente são objetos de resenhas críticas
em jornais e revistas (embora elas apareçam frequentemente como tema de
reportagens sobre “comportamento” leves e geralmente desinformadas que tratam
de uma perene “revitalização” da poesia)1. Um arquivo volumoso de
documentos de áudio e de vídeo, registros das primeiras gravações de uma voz
quase incompreensível de Tennyson [você pode ouvir um exemplo aqui] aguardam
estudo sério e interpretativo. Nestes ensaios, procuramos integrar a história
da poesia moderna à história mais ampla das artes da performance e às abordagens
filosófica e linguística da dimensão acústica da linguagem. A ausência de tal
história teve o efeito de elidir a significância das tradições da poesia
modernista para a performance artística do pós-guerras. Simultaneamente, a
dimensão performativa da poesia possui uma relação significativa com a arte
conceitual e concreta, bem como com a poesia visual, que expande a dimensão
performativa (e material) do texto literário quanto ao espaço visual.
O novo campo de estudos e teoria da
performance proporciona um contexto útil para este livro. Considerando exemplos
de performances “totais” em outras culturas, teóricos reorientaram o debate
acerca da relação entre teatro, público e texto. Enquanto que boa parte da
discussão da arte performática pós-moderna se focou nesse contexto e em outros
aparentados, houve consideravelmente menos atenção para o que isso implicava
com relação à performance poética. Será uma colaboração particularmente
importante para a “escuta crítica” Frame
Analysis [Análise de Quadros] de
Erving Goffman, especialmente sua concepção de como o roteiro do quadro através
do qual uma situação (ou obra) será vista necessariamente coloca outros
aspectos fora do quadro, naquilo que ele chama de camada ignorada [“disattend track”]. Concentrar a atenção
no conteúdo ou na forma do poema, como é típico, implica colocar o áudio assim
como a tipografia – o som e a imagem do poema – na camada ignorada. De fato, o
curso de boa parte da crítica literária das duas últimas décadas, que se coloca
distante do auditório e dos aspectos performativos do poema, deve-se
parcialmente à noção prevalente de que a estrutura sonora da linguagem é
relativamente arbitrária, perspectiva frequentemente questionada neste livro.
Tais elementos como a aparência visual do texto ou o som da obra em performance
podem ser extralexicais mas não são extrassemânticos. Quando elementos textuais
que são convencionalmente postos de fora do quadro como não semânticos são
reconhecidos como significativos, o resultado é uma proliferação de camadas
possíveis de interpretação. Então, a questão passa a ser se vemos essas camadas
ou estratos como comensuráveis uns com os outros, nos levando a uma “imagem
complexa total” do poema, para usar o termo de Veronica Forrest-Thompson; ou se
vemos esses estratos como incomensuráveis uns com os outros, contraditórios,
nos levando a uma leitura do poema enquanto intotalizável. Aqui, “estrato” pode
claramente ser pensado também como os tipos de camadas superpostas que alguém
acha em um palimpsesto.
Em certo sentido, esta coletânea
apresenta uma resposta complexa, multifacetada para uma compreensão simples e
bastante comum de leituras de poesia, como quando alguém diz: “Eu entendo a
obra muito melhor ouvindo o poeta ler. Eu nunca conseguiria imaginar que os poemas
deveriam soar dessa maneira”. (Isso não quer dizer que se deve descartar a
significância de performances de poetas que parecem “ruins” por um motivo ou
por outro ou que possa fazer alguém gostar da obra menos que na página, nem
quer dizer que não se deva dar atenção a uma performance de um poema feita por
alguém diferente do autor). Nesse sentido, conforme a performance poética é
encarada como tópico de discussão, o assunto é comumente associado a exemplos
carregados de energia, como o notório The
congo [ouvir aqui] (“MUMBO JUMBO in the CONNNG-GO”) de Vachel Lindsay, ou o
estilo de apresentação melodramática de Carl Sandberg [ouvir aqui] (“in the
tooooombs, the coooool tooooombs”), ou o quase-canto de Allen Ginsberg em “O
Uivo” [há várias leituras desse poema, (o poeta Chacal, em seu espetáculo teatral fez uma versão de "O Uivo", inclusive) uma das versões de Ginsberg pode-se ouvir aqui], ou mais recentemente o “rap” ou a poesia “slam” discutidas
na parte III por Maria Damon. Mas o inantecipável tempo atrasado da performance
de Wallace Stevens [ouvir aqui] nos diz muito sobre seu sentido de ritmo
poético e sensibilidade filosófica, assim como a quase monotonia de John
Ashberry [ouvir aqui] sugere uma dimensão mais onírica que o revelado pelo
texto. A intensidade emocional do impacto das pausas de Robert Creeley [ouvir/ver aqui] nas quebras de verso dão uma interpretação afetiva àquilo que de outro
modo se lê como uma percepção altamente formal de quebra de versos fragmentada
– as pausas sugerem tonalidade emocional e dor de maneira audível nas gravações
mas não necessariamente na página. Os registros de Gertrude Stein [ouvir aquiaquiaqui]
deixam claras tanto a ressonância metálica de sua voz quanto sua percepção de
transformações rítmicas contraposta à modulação das repetições e à elegância de
suas imagens sonoras; enquanto que, escutando Langstom Hughes [ver/ouvir aqui],
alguém saca imediatamente não somente os ecos do blues em sua obra mas como ele
modula diferenças entrando e saindo desses esquemas rítmicos. Tendo escutado
esses poetas lendo, mudamos nossa audição e leitura de suas obras na página
também.
Como Middleton aponta em seu ensaio
neste volume, há um número de fatores implicado no dramático aumento da
significância da leitura de poesia no período do pós-guerras na América do
Norte e no Reino Unido. Permitam-me, entretanto, adiantar de saída uma
explicação. Durante os últimos quarenta anos, mais e mais poetas têm se
utilizado de formas cujos padrões sonoros são fabricados – isto é, seus poemas não seguem formas recebidas ou
pré-fabricadas. É para esses poetas que a leitura de poesia ganhou tamanha
importância. Pois as figuras sonoras dos poemas de tais profissionais comumente
são percebidas de modo mais imediato e visceral nas performances (gravadas ou
ao vivo), mesmo que o leitor afinado possa ser capaz de ouvir algo comparável
em sua leitura prévia do texto. A leitura
de poesia é uma afinação coletiva. (Considere-se como as leituras públicas
nos anos 1950 de Creeley, Ginsberg, Olson e Kerouac estabeleceu – numa primeira
instância – não só o som de suas obras mas também as possibilidades para obras
semelhantes. A discussão de Bob Perelman sobre a fala do poeta na parte II
explora versões mais recentes de uma prática estabelecida amplamente por esses
artistas). A proliferação de leituras de poesia permitiu o desdobramento mundo
afora de novas séries de modalidades acústicas, que tiveram um impacto enorme
ao informar a leitura da poesia contemporânea. Essas performances configuram
novas convenções que são internalizadas e aplicadas adiante na leitura de
textos poéticos. Elas constituem os fundamentos acústicos para práticas
inovadoras – nosso quadro sonoro coletivo.
Para ser escutada, a poesia precisa
ser som – seja num processo de leitura da obra ativa, ou interativa, seja
através do poeta em performance. Poesia muda permanece enquanto marcas inertes
na página, esperando para serem chamadas ao uso pela fala, ou pela escuta das
palavras em voz alta. A leitura de poesia funciona como um ponto focal para
esse processo, em que sua existência se encontra de um modo único associada à
leitura do texto em voz alta; é um emblema da necessidade de ler em voz alta e
em público. Sequer o processo de transformar palavras sem som na página em
linguagem em performance pode ser considerado uma exclusividade da poesia. Para
ficarmos com apenas um exemplo, Jerome Rothenberg se refere à antiga tradição
judaica de ler e entoar a Torá – transmutando uma escrita sem vogais em um som
vocal completo2. A récita pública também traz à mente diversas
tradições baseadas no sermão, da pregação monocórdia aos responsórios com canto
e resposta. E se a leitura de poesia possibilita ao performer elementos não
escritos, também fornece possibilidades especiais ao ouvinte na resposta direta
à obra, indo da risada ao deboche, até o prazer de se perder na linguagem que
surge adiante, permitindo à mente vagar na presença das palavras.
Quando o registro de áudio da
performance de um poeta é reconhecido como uma parte significativa, e não
somente incidental, de sua obra, uma série de questões textuais e críticas
importantes vêm à tona. Qual o status das discrepâncias entre versões do poema
publicadas e realizadas em performance, e, mais que isso, interpretações
baseadas no texto escrito versus interpretações baseadas na performance? Amiri
Baraka [veja e ouça aqui] é um dos mais dinâmicos poetas performáticos do
período pós-guerra. Para Baraka, fazer as palavras dançarem numa performance
significa tirar os poemas da página, do mundo das ideias, e colocá-los em ação.
Em um de seus poemas-performances mais vibrantes, como Afro-American Lyric (Lírica
Afro-Americana), o texto pode parecer secundário, como se, conforme William
Harris parece sugerir em sua discussão do poema, o texto – com seu formato
tipográfico inventivo – tivesse se tornado apenas notas para a performance3.
Claro, sempre é possível que alguns poemas pareçam mais fracos na página que na
performance, e vice-versa. Mas não creio que seja esse o caso de Baraka, cujo
trabalho consiste continuamente na exploração da dialética entre performance e
texto, teoria e prática, o literário e o oral – uma dialética que envolve mais
dissonâncias que harmonia. Performance, no sentido da ação, é uma forma
estética subjacente tanto quanto uma questão política na obra de Baraka4.
A forma de suas performances são icônicas – elas apresentam significados. Nesse
sentido, o texto impresso de Afro-American
Lyric funciona movendo o leitor (silencioso, atomizado) para um estado de
performance – insistindo na ação; as aparentes lacunas textuais são o motor de
sua forma.
O texto de Afro-American Lyric traz à mente a linguagem de panfletos políticos
marxistas, enfatizando a intocada didaticidade do poema. Ouvir Baraka lendo o
poema numa fita de sua performance no Naropa Institute em 26 de Julho de 1978,
entretanto, dá uma impressão reconhecidamente distinta. Baraka prolonga as
sílabas de “simple shit” (simples merda)
(“Seeeeeeeeeeeimmmmmmmmmmm pull” na versão impressa), entrelaçando-as de modo
sincopado com “classe exploradora, classe de posses, classe burguesa, classe
reacionária”, transformando a diatribe do texto em um cruzamento entre o poema
sonoro e a improvisação jazzística. Cria uma música brincalhona mas ainda
dissonante a partir das palavras aparentemente refratárias da análise marxista
trazendo à tona a incontrolável plenitude fônica de dentro e do entre as
palavras. Não se trata de um mero embelezamento do poema, mas de uma realocação
de seu sentido (“Luta de Classes na Música” [“Class Struggle in Music”] é como
Baraka intitula um poema posterior). As suas récitas invocam uma gama de
performances retóricas que vão da exortação à acusação: ele faz ligaduras entre
seu próprio entoar de uma canção e uma frase de inflexão mais neutra,
mergulhando então num quadro sonoro percussivo. (É notável, em tal contexto, a
narrativa sinóptica de Lorenzo Thomas, na parte III desta coletânea, sobre a
pré-história dos estilos de performance do Movimento da Arte Negra, incluindo,
é claro, o trabalho de Baraka. Thomas começa com récitas do século XIX, para
seguir com descrições do Renascimento do
Harlem (Harlem Renaissance) e do Verso Projetivo (Projective Verse), considerando, no processo, questões como língua
vernácula, dialetos, arte pública, oralidade e comunidade/nacionalidade).
Qual a relação entre a performance de
Baraka – ou de qualquer poema apresentado por seu autor – e o texto escrito
original? Um objetivo que tenho com este livro é superar a presunção comum de
que a letra de um poema – isto é, o documento escrito impresso – é mais
importante e que a récita ou performance são secundárias e fundamentalmente
irrelevantes para o “poema em si”. Na perspectiva convencional, a vocalização
tem algo do status de uma interpretação – fornecendo um brilho possível do
original imutável. Um problema para esse ponto de vista, contestado mais
persuasivamente por Jerome McGann em Black
Riders, The Textual Condition e A Critique of Modern Textual Criticism é
que muitas vezes não há uma única versão original escrita de um poema. Mesmo
deixando de lado o status do manuscrito, existem muitas vezes impressões
variadas e discrepantes – eu talvez gostasse de chamá-las de performances escritas – em revistas e
livros, com modificações na escolha de palavras, mas também no espaçamento, na
tipografia, no papel, e, ainda mais, no contexto da leitura; compõem-se uma
pluralidade de versões, nenhuma das quais podendo clamar autoridade exclusiva.
Eu chamaria essas diversas folhagens em fólio de performances do poema; e eu acrescentaria a performance do próprio
poeta em uma leitura de poesia, ou várias, à lista das variantes que juntas, de
modo plural, constituem e reconstituem a obra. Isso, então, não quer dizer que
todas as performances de um poema têm autoridade igual. A interpretação de um
ator, como a configuração de um desenho gráfico “original” para um clássico,
não terão o mesmo tipo de autoridade que a leitura do próprio poeta ou a
primeira impressão da obra. A performance do autor, assim como a visualização
do poema em suas impressões iniciais, marcam para sempre a entrada do poema no
mundo; não apenas seu significado, mas sua existência.
Um poema compreendido como um evento
performativo e não meramente como uma entidade textual recusa a originalidade
do texto escrito em favor do “evento plural” da obra, para usar uma expressão
de Andrew Benjamin. Isto é, a obra não é idêntica a nenhuma realização gráfica
ou performática, nem pode ser equacionada em uma unidade totalizante dessas
versões ou manifestações. O poema, visto nos termos de suas múltiplas
performances ou de uma intertradutibilidade mútua, tem uma existência
fundamentalmente plural. Isso ganha maior dramaticidade enunciativa quando
instâncias da obra se revelam contraditórias ou incomensuráveis, mas também se
aplica quando as versões diversas são comensuráveis. Falar do poema em
performance é, portanto, superar a ideia do poema como um objeto linguístico
fixo, estável, finito; é negar no poema sua essência e unidade. Logo, quando a
performance enfatiza a presença material do poema, e do performer, ao mesmo
tempo nega sua presença unitária, o que quer dizer sua unidade metafísica.
Perdoem-me pela extensão da citação, conforme
traduzo abaixo comentários de [Andrew] Benjamin com base em psicanálise e
tradução cercando o tópico em pauta5:
“A questão da presença, a pluralidade
contida no ser presente, é de significância fundamental para a poesia. A
presença do texto impresso (o documento escrito) contida na performance, mas
igualmente a presença da performance dentro do texto quer dizer que há, num
momento único do tempo, dois modos irredutíveis de estar presente. Conforme a
presença se torna o espaço da irredutibilidade, será compreendido que ela não
pode ser absolutamente presente para ela mesma. O não original marca a
possibilidade do poema ser tanto virtual quanto realmente plural, o que
significa que no poema vai sempre faltar uma unidade essencial. (Dentro do
contexto da poesia, o que se pode dizer que falta é uma finitude semântica e
interpretativa já dadas, senão uma singularidade do poema). Portanto, não há
unidade a ser recuperada, nenhuma tarefa de pensar na origem como tal; desde a
origem, agora a não origem, já se apresenta o que resiste a uma unidade
sintética. Qualquer unidade será um efeito a
posteriori. Tais efeitos se constituem de publicações dadas, performances,
interpretações, ou leituras. O poema – que é não originalmente plural – não
pode ser conhecido como tal porque não existe como tal”.
[...]
Estou propondo que olhemos para a
leitura de poesia não como uma extensão secundária de textos prioritariamente escritos, mas como seu
próprio medium (meio). Quais são,
então, as características específicas desse medium e o que ele pode fazer que
outros media de performance ao vivo – shows de música instrumental, canção e
ópera, teatro – não podem? A resposta pode ser encontrada no que parecerá para
muitos como a natureza anti-performativa da leitura de poesia: a leitura de
poesia como radicalmente “teatro pobre”, no sentido de Jerzy Grotowski. Se isso
puder ser aceito, mostra-se como aquilo que alguns julgam ser o aspecto mais
problemático da leitura de poesia pode ser compreendido como sua essência: isto
é, a sua falta de espetáculo, drama e variação de dinâmica, como exemplificado
especialmente em certo modo de leitura minimalista – anti-expressivo. Chego a
me sentir tentado a nomear este modo anti-performativo
para sugerir que consiste numa espécie de estratégia retórica (no sentido
estilístico de uma “anti-retórica”) e não sugerir que seja menos escolhido que
no caso de leituras mais “teatrais”. (As leituras de poesia de John Cage são um
bom exemplo desse modo) [ouvir aqui]. Numa época de espetáculo e grande
dramaticidade a leitura de poesia anti-expressiva se destaca como um oásis de
baixa tecnologia que está entre os eventos menos espetacularmente produzidos de
nossa cultura pública. O valor explícito está concentrado quase que
exclusivamente na produção acústica de uma única voz falante desacompanhada,
com quase todos os outros elementos teatrais colocados, na maioria das vezes,
fora do quadro. A voz solo colocada em quadro de modo tão exclusivo pode chegar
a parecer virtualmente desincorporada numa forma como que sobrenatural,
hipnótica. Tais leituras de poesia partilham da intimidade do rádio, de
pequenos conjuntos e da música de câmara. Em contraste com o teatro, onde a
disposição do espetáculo cria a percepção de uma distância entre o que é visto
e quem vê, a ênfase no som na leitura de poesia tem o efeito oposto – conecta
fisicamente falante e ouvinte, provocando um transbordamento da consciência do
contexto da performance. De fato, o modo de leitura anti-expressivo funciona ao
derrotar a teatralidade da situação performática, ao permitir que o ouvinte
penetre um espaço acústico côncavo ao invés de ser empurrado distante dele,
como num modo mais propelente (que cria um espaço acústico convexo). Quando um
poema apresenta uma fonte audível ao invés de visível (a performance escutada
ao invés do texto lido), nossa perspectiva sobre, ou da obra muda. Ao invés de
olhar para o poema – as palavras numa página – nós podemos entrar nele, talvez
nos perder, talvez perder a nós mesmos, meter nossos “pés” (não métricos) pelas
mãos. De acordo com Charles Lock [você pode ler aqui], “a ausência ou presença
de perspectiva marca a diferença crucial entre signos ‘pictóricos’ e
‘simbólicos’, sendo que ambos são ‘visuais’”6. Pois um texto escrito
é o único sistema de signos visuais que, como Lock coloca, é completamente
“livre de perspectiva”. Como um texto, os fenômenos de auditório não colocam a
questão da perspectiva, mas têm sua versão dela, a espacialização, e esse é um elemento constituinte do medium da
leitura de poesia.
Essa abordagem formalista da leitura
de poesia pode explicar o desagrado comum entre poetas das apresentações de
atores lendo poemas: pois isso denota não um desagrado com relação à
vocalização, mas com relação ao estilo de atuação que enquadra a performance em
termos de personagem, personalidade, ambientação, gesto, enredo ou drama, mesmo
que esses elementos sejam extrínsecos ao texto em pauta. Isto é, a atuação
ganha precedência sobre deixar as palavras falarem por si mesmas (ou pior, a
eloquência compromete, para não dizer eclipsa a música em trapos do poema). O
projeto da leitura de poesia, a partir dessa perspectiva formalista, é
encontrar o som nas palavras, não num cenário extrínseco ou num acompanhamento
suplementar. Sem querer, de modo algum, desvalorizar o estilo de leitura mais
extravagantemente teatral, eu apontaria para este modo mais monovalente, com
inflexão mínima, e de qualquer modo reduzido, como o encontro da essência do
medium. Afinal, a poesia não pode, e não precisa, competir com a música em
termos de complexidade acústica, ou força rítmica, ou com o teatro em termos de
espetáculo. O que é único, e a seu próprio modo estimulante, é que ela faz o
que faz dentro dos limites da linguagem apenas.
(Permitam-me ecoar aqui o ensaio de
Peter Quateirman presente neste volume, e em particular com relação a seu
cuidado para que a vocalização que um poeta faz de um poema não deve ter o
poder de eliminar vozes ambíguas presentes no texto; nem a performance do autor
deve ser privilegiada de modo absoluto acima das de outros leitores e
performers).
A performance de poesia (sem
acompanhamento) tem como limite superior a música, como a realizada no que vem
a se chamar de poesia sonora, e como limite inferior o silêncio, como o
realizado no que vem a se chamar de poesia visual. A poesia visual nos leva a
olhar para as palavras assim como ler, enquanto que a poesia sonora nos faz
ouvir tanto quanto escutar. Curiosamente, há uma interseção entre esses limites,
como quando um poema visual é apresentado como poema sonoro, ou um poema sonoro
gravado como visual (fenômeno importante para, neste volume, as explorações de
Johanna Drucker, Dennis Tedlock e Steve McCaferry). Na maior parte, entretanto,
este livro se volta para a leitura de poesia em seu sentido mais comum, já que
me parece que tal modo de leitura é mais negligenciado pela crítica – ou talvez
simplesmente desconsiderado, se não ridicularizado. Mesmo aqueles que mantêm
maior simpatia pela poesia em performance costumam apontar que a maioria dos
poetas não sabe ler o próprio trabalho, como se tal sentimento sugerisse um
defeito com o medium das leituras de poesias. Alguém pode dizer que a maioria
dos poemas publicados em livros e revistas são chatos sem que essa observação
implique um juízo sobre a poesia escrita como medium. Talvez fizesse mais
sentido dizer que se não se gosta da leitura de um poeta, é porque não se gosta
do poema, para acompanhar a colocação de Aldon Nielsen em uma lista de discussão
recente na internet. Não há poetas cuja obra eu admire e cuja leitura tenha
falhado em me envolver, em enriquecer minha escuta do seu trabalho. Isso não
quer dizer, no entanto, que certas apresentações não constituam problemas, ou
compliquem minha compreensão e apreciação. Por motivos relacionados, me
interesso bastante em registros de áudio de leituras de poesia. Se, como estou
sugerindo, leituras de poesia são o fundamento do texto acústico e sonoro do
poema – o que desejaria chamar de audiotexto do poema, expandindo o termo de
Garrett Stewart, fonotexto – então a
reprodução em áudio se encaixa de forma ideal ao medium. (Vídeos, me parecem,
são normalmente menos atraentes para a poesia, já que os escassos recursos
visuais usados tipicamente – planos estáticos de uma pessoa em um púlpito – não
se equivalem à trilha sonora e tendem a planificar a dimensão afetiva da
performance ao vivo. Para mim, a extensão cinética de uma leitura de poesia
mais cheia de energia e formalmente elaborada se encontra na série de filmes
feita de metades dos anos 1970 até metade dos anos 1980 por Henry Hills,
especialmente Plagiarism [Plágio], Radio Adios e Money [Dinheiro] [você pode ver o vídeo de Money aqui]).
Qual a relação entre som e sentido?
Qualquer consideração da leitura de poesia deve dar especial atenção a tal
problema, já que leituras de poesia performances acústicas que constituem o
fundamento do audiotexto do poema. Uma forma de abordar o assunto é enfatizar a
dimensão oral da poesia, a origem dos sons da linguagem na fala. E claro que
muitos poetas desejam, sim, identificar sua performance apenas com tal aspecto
da oralidade, até ao ponto de sublinhar um “retorno” a uma cultura mais “vital”
do passado, pré-existente ao advento da imprensa. Mas eu estou interessado numa
gama maior de práticas performáticas que as que se encontram sugeridas pela
oralidade; de fato, alguns dos estilos de leitura de poesia mais interessantes
– de Jackson Mac Low a Stein a T. S. Eliot – desafiam a oralidade de várias
maneiras: Eliot através de seu estilo vocal despersonalizado e perturbador
(emanando mais através da boca, do que pelo diafragma); Stein com suas
ressonâncias cubistas, moduladas ou disseminadas espacialmente; e Mac Low com
sua pronúncia imaculada de padrões lexicais construtivistas. A oralidade pode
ser compreendida como um marcador estilístico ou mesmo ideológico de um estilo
de leitura; em contraste, o audiotexto pode de modo mais aproveitável ser
melhor entendido como aural – aquilo que o ouvido ouve. Com aural pretendo enfatizar a sonorização
da escrita, e fazer um contraste rigoroso com oral, e sua ênfase na respiração, na voz e na fala – uma ênfase que
tende a valorizar fala mais que escrita, voz mais que som, escuta mais que
audição, e por fim, oralidade mais que auralidade. A auralidade precede a oralidade, assim como a linguagem precede a
fala. A auralidade está conectada ao corpo – como a boca, e a língua e as
cordas vocais atuam – não à presença do poeta; trata-se de fenômeno
proprioceptivo, no sentido de Charles Olson. Na leitura de poesia, atua o
poema, e não o poeta; materializa-se o texto, e não o autor; é uma performance
da obra e não do compositor. Em resumo, a marca distintiva da leitura de poesia
é que ela é menos a presença do poeta que a presença do poema. Minha
insistência na auralidade não pretende colocar o ouvido material acima dos
lábios divinos, mas encontrar um termo que inverta a identificação da oralidade
com a fala. A auralidade quer evocar o sentido performático de um “fonotexto”
ou de um audiotexto e pode ser melhor escrita do seguinte modo: a/oralidade. (Tanto Susan Schultz quanto
Dennis Tedlock, em seus ensaios, exploram aspectos dessa questão).
O audiotexto, no sentido da
performance acústica do poeta, é semanticamente um dos campos mais densos da
atividade linguística, podendo ser mapeado através de elementos como medida,
assonância, aliteração, rima, e similares (embora todos eles permaneçam
elementos subjacentes a esse campo mais denso). Pensar nos termos de
performance do poema recoloca muitas das questões trabalhadas por estudiosos da
prosódia que examinando o texto escrito dos poemas, muitas vezes analisavam
sílaba por sílaba, fonema por fonema, acento por acento, pé por pé, tônica por
tônica, pulso por pulso, medida por medida. O poema-performance combina ainda
menos elementos para analisar que os complexos métricos e rítmicos do poema
lido. Muitos estudiosos de prosódia insistiram que a frase (musical) fornece um
modo mais completo para compreender os padrões sonoros da poesia do que sistemas
acentuais, sejam quantitativos sejam silábicos, que fragmentam a poesia em
sistemas métricos. A consideração da palavra em performance apoia essa visão,
embora o conceito de fraseado e de musicalidade sejam bastante expandidos
conforme alguém vai do sistema métrico ao acústico, além do “verso livre” até
formas sonoras. Primeiramente, a dinâmica mapeada pela prosódia acentual tem um
lugar bastante reduzido no ambiente sonoro da leitura de poesia, em que
entoação, altura, tempo, acento (no sentido de pronúncia [algo próximo de
sotaque]), peso ou timbre de voz, expressões faciais e corporais não verbais ou
movimentos, assim como elementos prosódicos mais convencionais como assonância,
aliteração e rima ganham um papel importante. Mas mais importante, sistemas de
regularização de análise prosódica falham diante da profusão sônica de uma
leitura: é como se padrões sonoros “caóticos” estivessem sendo medidos por
coordenadas orientadas em eixos cuja dependência de grandezas independentes de
contextualização se revela inadequada. A leitura de poesia está sempre à beira
do excesso semântico, ainda que um dado leitor permaneça do lado de cá da
borda. De fato, uma das primeiras técnicas da poesia em performance é a ruptura
com padrões sonoros razoáveis através da irrupção intermitente de elementos
acústicos não recuperáveis por uma análise monológica. Se, por um lado, essas
irrupções podem ser altamente sofisticadas, por outro, elas podem também se
entregar aos ritmos corpóreos – engasgos, gagueiras, soluços, arrotos,
omissões, microrrepetições, oscilações em volume, pronúncias “incorretas”, e
assim por diante – isto é, se você tomar esses elementos como aspectos da
construção de sentido do poema-performance, como proponho, e não como uma
interrupção estranha7.
Prosódia é uma área muito dinâmica
para ser restrita ao verso métrico convencional. Ainda assim, muitas abordagens
da poesia continuam reduzir as questões do ritmo poético à medida silábica e à
regularização dos acentos tônicos, como se a poesia não métrica, especialmente
a poesia mais radicalmente inovadora deste século [XX] não fosse mais rica rítmica e acusticamente que as
suas contrapartes tidas como formalistas. No espaço acústico da poesia em
performance, eu enfatizaria deslocamentos
tônicos e assimetria, tanto quanto a disritmia acentual: dissonância e
irregularidade, ruptura e silêncio constituem uma força rítmica (ou uma força inversa) no poema sonoro8.
Tais elementos que vão contra o ritmo criam, de acordo com Giorgio Agamben, “um
desencontro, uma desconexão entre elementos métricos e sintáticos, entre a
rítmica sonora e o sentido, tal que (ao contrário da opinião difundida que vê
na poesia o locus de uma correspondência conquistada e perfeita entre som e
sentido) a poesia vive, na verdade, somente em seu desacordo interno. No
momento mesmo em que o verso afirma sua própria identidade quebrando sua
continuidade sintática, é irresistivelmente atraído para se dobrar na linha
seguinte a depositar o que havia lançado fora de si”9.
Se estúdios de prosódia naufragaram no
início do século XX por sua inabilidade em reconciliar a musicalidade da poesia
com as classificações métricas estritas, então as récitas de modo proveitoso
transformaram o objeto de estudo substituindo a medida pelo ritmo, para usar
uma distinção feita por Henri Meschonnic, para quem a métrica é associal e sem
sentido, enquanto que o ritmo está fundamentado na historicidade do poema e
implica uma socialidade10. A questão deixa de ser a escrita – o
texto impresso – versus a oralidade, e passa a ser a acústica corpórea da
performance – a auralidade da obra – versus uma abstração ou uma idealização
externa que está baseada na ideia na projeção do tempo como um espaço “vazio”,
que é linear, homogêneo e progressivo. A nova prosódia requer uma investigação
não do tempo abstrato, mas da duração e seus microtons, descontinuidades,
espaços estriados e contra-fluxos. A métrica tradicional, com seu pulso de
metrônomo, permanece fundamentalmente um sistema euclidiano que é inadequado
para uma medição completa das prosódias complexas do século XX, ou mais ainda,
de uma poesia bem mais antiga (incluindo o que Tedlock discute em sua
contribuição neste livro).
[...].
BERNSTEIN, Charles (org.) Close
Listening: poetry and the performed word. New York: Oxford University
Press, 1998.
[O texto foi republicado num livro
reunindo ensaios e textos diversos de Charles Bernstein, a saber, BERNSTEIN,
Charles. My way: speeches and poems.
Chicago: Chicago University Press, 1999].
Notas:
[Como alguns trechos foram cortados
para a publicação no blog, nem sempre a numeração das notas conforme aqui
publicada corresponde à numeração do texto de Bernstein]
1. Há apenas duas coletâneas [em
língua inglesa, e à época da publicação do livro, final da década de 1990] que
consegui localizar e que abordam a leitura de poesia: Poets on Stage: The Some Symposium on Poetry Reading [Poetas no palco: o Simpósio Some sobre
leitura de poesia], ed. Alan Ziegler, Larry Zirlin e Harry Greenberg
(1978); e The Poetry Reading: A
Contemporary Compendium on Language and Performance [A leitura de poesia: um compêndio contemporâneo de Linguagem e
Peroformance], ed. Stephen Vincent e Ellen Zweig (1981). As abordagens das
leituras de poesia nessas coletâneas pioneiras são bastante anedóticas. Também
notáveis são os relatos anuais do Programa de Residência da São Francisco’s 80
Langdon Street, para os anos de 1981 e 1982, reunidos por Renny Prikitin,
Barrett Watten e Judy Moran, que continham um bom número de abordagens
articuladas, por diferentes autores, de palestras, leituras e performances
realizadas nesse espaço. Mais recentemente, a Poetics Lists [Lista Poética], um
arquivo de um grupo de discussão eletrônica no Eletronic Poetic Center (http://wings.buffalo.edu/epc)
apresentou diversas vezes considerações de leituras e de conferências
(inclusive listas dos presentes às leituras e até mesmo um ocasional relato
colhido na hora). Em contraste, como reflexo da prática acadêmica standard, não
há nenhuma menção à gravação das performances de poesia de Wallace Stevens em
um livro recente sobre o poeta, escrito por Anca Rosu, embora haja alguma
ironia no auspicioso título desse livro: The
Metaphysics of Sound in Wallace Stevens [A metafísica do som em Wallace Stevens] (Tuscaloosa: University of
Alabama Press, 1995), que serve apenas para demonstrar como a metafísica tende
a tomar o lugar da física.
2. Ver Jerome Rotenberg, “The Poetics of Performance” [A poética da
performance], in Vicent e Zweig, 123. Ver também David Abram, The Spell of the Sensuous [A letra do sensível] (New York:
Pantheon, 1996), pp. 241-50.
3. William Harris, The Poetry and
Poetics of Amiri Baraka: The Jazz Aesthetic [A poesia e a poética de Amirir Baraka: a estética do jazz]
(Columbia: University of Missoury Press, 1985), pp.109-110; Harry extrai as
partes do texto que cito em seguida. Ver também a entrevista de Harry com
Baraka, em que o poeta concorda que seu poema é uma partitura e diz que está
principalmente interessado na performance “[o texto escrito] é menos importante
para mim” (147). Harris discute brevemente as performances de Baraka em pp.
59-60. Ver especialmente sua investigação entre dança, música e a obra de
Baraka a partir de p. 106.
4. Ver Nathaniel Mackey, “Other: From
Noun to Verb” [“Outro: de nome a verbo”] in Discrepant
Engajegement: Dissonance, Cross-Culturality and Experimental Writing [Engajamento dissidente: dissonância,
transculturalismo e escrita experimental] (Cambridge: Cambridge University
Press: 1993).
5. A passagem é baseada no texto de
Andrew Benjamin “Translating Origins: Psychoanalysis and Philosophy”
[“Traduzindo origens: psicanálise e filosofia”] in Rethinking Translation: Discourse, Subjectivity, Ideology [Repensando a tradução: discurso,
subjetividade, ideologia], ed. Lawrence Venuti (London: Routledge, 1992),
p.24; todas as referências são substituições minhas, diferindo do “original” de
Bejamin; também cortei algumas frases. Ver também de Benjamin The Plural Event: Descartes, Hegel,
Heidegger [O evento plural:
Descartes, Hegel, Heidegger].
6. Charles Lock, “Petroglyphs In and
Out of Perspective” [“Petróglifos Em ou For a de Perspectiva”], Semiotica, vol. 100, nos. 2-4. (1994),
p. 418.
7. Estou ciente do fato de que
estudiosos da Prosódia podem mascarar e analisar uma performance poética de
modo a ilustrar certa teoria particular (inclusive as mais convencionais) –
assim como eu o fiz. Isso não é mais do que apropriado nesse terreno dinâmico
semanticamente.
8. A ciência da disprosódia ainda se
encontra em sua infância embora seja provável que venha a dominar os estudos
técnicos dos fenômenos poéticos não identificados (FPNI) no milênio que se
aproxima. O Movimento Disprosódia foi fundado por Carlo Amberio em 1950. Uma
tradução de seu principal texto teórico, A dissemia das sílabas mátricas, transposta de uma língua
previamente desconhecida em versos hexâmetros “pisca” trocaicos – uma forma que
Amberio acredita chegar o mais perto possível dos padrões de pensamento
contra-intuitivos do Inglês Norte-Americano não falado – há algum tempo vem
sendo preparada pelo Centro para o Desenvolvimento dos Estudos Disáficos
(CDED). (O verso pisca, inventado por Amberio, é constituído por rimas internas
organizadas por um padrão de fractais).
9. Giorgio Agamben, “The Idea of Prose”, in The Idea of Prose, tr.
Michael Sullivan and Sam Whitsitt (Albany: The State University of New York
Press, 1995), p. 40. O
assunto específico de Agamben na passagem é o enjambement. Agradeço a Carla
Billiteri por me indicar a leitura do ensaio. [há uma edição em português do
livro: AGAMBEN, Giorgio. Ideia da prosa. Tradução:
João Barrento. São Paulo: Autêntica, 2012. Todavia, não conseguimos consultar a
versão em português a tempo para a presente tradução, de modo que a citação foi
traduzida da citação em inglês, do texto de Bernstein, e a indicação de página
nesta nota, também se refere somente ao exemplar norte-americano].
10. Henri Meschonnic, Critique du
rythme: anthropologie historique du langage. (Lagrasse: Verdier, 1982).
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