Parte 1 |
Parte 2
Encerramos a sequência da entrevista com
Ítalo Moriconi com suas considerações sobre a relação entre arte e cultura, e
como elas o fizeram reavaliar alguns de seus questionamentos estéticos acerca
da produção literária brasileira dos anos 90 em diante.
Na sequência,
Ítalo, ao ser convocado para comentar questões que tangem a relação entre
subjetividades e poesia, acaba compondo um pequeno autorretrato de sua prática
poética: evidencia sua compreensão da linguagem do poema (que ganha corpo na
frase “tem que ter o idioleto radical”) e seus procedimentos, sublinhando a
dramaticidade e o trabalho da máscara como figurações características de sua
persona poética.
Publicamos,
aqui, três poemas de Quase Sertão,
livro lançado pelo autor em 1996, e dois de História
do Peixe, de 2001 – e ficamos como que à espera das outras: que novas
máscaras virão?
De Quase Sertão.
Copacabana
Meu novo amor é gente simples do povo.
Tem 19 anos, negro rutilante.
Entre a última vez que nos vimos (tempos
atrás)
e hoje cedo
já trocou de nome pra Rick.
*
(Notícia da Aids)
logo na hora do McDonald’s
gânglios implodiram-lhe o pescoço
grossos como cordas, lajes
pendentes, feito açougue –
carne estraçalhada, e apodrecida
– AVENIDA HIPOTRÉLICA –
seus altos prédios escalavrados
os –
demasiadamente humanos
demasiadamente humanos
contra o céu, decepado
– Cães,
carregai a legenda Ítalo para o meio das
ruas
fazei retinir em cantos escusos o mito
Ítalo
os
demasiadamente humanos,
vou, de boca em boca,
despedaçado como as calçadas da cidade
decadente,
alimentando a boataria,
inspirando jovens visionários
passado jamais existido
sem mais leitores
carne podre
úlceras no cu
logo na hora do McDonald’s
(1984).
*
Contrato
Eu tenho nojo do teu comportamento.
Você tem nojo do meu comportamento.
Vamos guardá-lo no baú ancestral de couro
escondido.
E fabricar nosso tecido
De meias-palavras.
*
De História do Peixe.
A palavra glossy
Câmera escondida. Conexões telefônicas
sucessivas. Alegria da luta. Metidos em cuecões largados. Ao pé do fogo. Foi
minha primeira vez, era um filme inglês. Ou em inglês. Depois dos licores, o
fogo pegou mesmo. Papel crouché, brulé. Suas rolas mais rubras, sombras
flambadas. O céu baixado sobre o tapete, eliminando o puzzle. Já não eram
rolas, eram falos. Todos os poros falavam. Licores faiscavam. Eram mil e mais
mil vozes falando, por todas as saídas. Mil vozes, mil poros, mil olhos.
Sussurrando e agindo. Aromáticos, pelos matos de pelos, criando seu recesso
sagrado. A verdade fulgurou naquele átimo apenas. Seu materialista. Seu
hedonista. Seu sem nada. A câmera enganchada, consolatrix.
*
Clearly non-glossy
Comer e dar, dar e comer, comer e dar,
mergulhar em cocô. Aquele cheiro incomodava, eu ainda não sabia que vinha e
logo de onde. Vingança do tipo de anjo. Quando nasci uns banjos galopantes
disseram, a vida é brutal, sabias? Quero delicadeza.
Preciso comer. Preciso tomar as pílulas.
Preciso comer. Preciso tomar as pílulas. Vou comer. Você não vai comer. Você
vai ingerir as pílulas. Com bastante água. Preciso comer. Vou comer. Vou
delirar. A boca pela tua pele até perder. Tudo. Tudo. Não quis deixar nada. O
peixe morre pela boca.
Nada deixar. Nada. Cascatas de secreção
tatuariam a pele triste. Lhe dei leitinho. Deixa. Jorros. Vindos do ventre
besta desativar o credo em cruz, entre ferros. Fica. Mas fica sem pica.
Desitalianizar-se. Desamericanizar-se. Desbrasileirar geral. Deixa. Deixa tudo.
Não fica. Não volta.
*
BLISS: Apareceu a palavra
corpo, e a gente tava antes falando na contracultura anos 70: é um corpo muito
diferente, esse que se relaciona na poesia da linguagem, em que se relaciona o
corpo com a filologia, daquele corpo celebrado nos anos 70?
I: Olha, eu tô
falando em outro sentido. O que eu chamo de poesia da linguagem é o texto, é
uma experiência da linguagem, é uma arte que tá relacionada com essa
experiência profunda entre pode ser o corpo, mas poderia ser chamado também de
interioridade, intimidade, subjetividade. Essa relação íntima entre o corpo e a
filologia. Por que filologia? Porque é a linguagem nas suas mínimas filigranas,
como que as palavras se relacionam entre si, como que eu posso relacionar
palavras, como que elas se encontram, como elas se chocam. E ao mesmo tempo que
é uma coisa completamente mental é uma coisa completamente oral. No momento em
que ela se torna performática, ela já tá atravessando a fronteira pra cultura,
mas, veja, num certo sentido – e é isso que eu critiquei, ou manifestei uma
desconfiança quando apareceu, mas que hoje eu vejo que não é essa questão, ou
melhor eles têm razão. Eu criticava muito essa posição. A poesia da linguagem,
ela é uma reação, ela não é cultural. Porque contracultural é cultural, a
contracultura é uma forma de estar na cultura de uma maneira contracultural,
com drogas etc., e tal. Mas essa poesia da linguagem é quando a cultura letrada
é uma reação ao mundo lá fora, é uma rejeição ao mundo lá fora. Eu acho que a
poesia da linguagem tem esse elemento. Quando essa dimensão foi recuperada pela
geração 90, eu estranhei isso, porque eu sou da contracultura. Então poesia,
pra mim, é cultura. Eu queria ser Maiakóvski. Eu queria que o meu verso fosse
lido numa assembleia de professores. Mas ao mesmo tempo de vanguarda: não é um
galo tecendo a manhã, é uma coisa assim uma camisa amarela, um manifesto gay.
Mas no bojo da cultura, no bojo do movimento, no bojo da vida. Mas a poesia da
linguagem, não, ela é perversa, ela é erudita, ela é aquele encontro onde você
rejeita, fecha as portas para tudo e vivencia tudo sublimado na linguagem.
Então, eu tive uma reação geração 70 contracultural a essa geração 45 ao
quadrado sublime, mas hoje eu vejo que não. Porque o sublime pode ser um ato
político também bastante interessante. Eu tô vendo nos anos 00, ao mesmo tempo
em que eles estão se dessublimando, do ponto de vista da forma poética, eu
também tô tendo muito mais a necessidade da questão do sublime. Por exemplo,
quer ver uma coisa que de vários anos pra cá é claro pra mim? Às vezes quando
eu estou reescrevendo um poema, porque eles existem, apesar de eu estar
completamente hibernando como poeta, eles existem, de vez em quando eu tenho
tempo até escrevo ou reescrevo coisas, em um tempo, a minha utopia é ter tempo
suficiente para mexer nos meus alfarrábios. Mas eu só mexo nos meus alfarrábios
se eu tô com disponibilidade, eu não tenho tido essa disponibilidade. Eu
substituo cu por ânus, eu elimino, eu já não, não acho tão interessante a
linguagem... prefiro usar palavras não-baixo calão. Ou seja, é um movimento
sublimante, quando você troca cu por ânus é um movimento sublimante.
Principalmente quando você troca cu por orifício veludoso, aí nem se fala. Aí
você já entra na metáfora, que também que acho que hoje o potencial metafórico,
eu vejo assim poetas novos, como eles inventam, o potencial metafórico é uma
coragem. É uma coragem letrada. Você criar metáforas explosivas em cima de uma
folha de papel que só quem vai ler são aquelas três ou quatro pessoas que leem
a Azougue, e aquilo, de repente, é um
espaço de uma importância brutal. Do ponto de vista da cultura, é nada. Não tem
mercado nenhum, não vende nada, ninguém conhece. A única coisa que você ganha
de vez em quando é uma primeira página no jornal porque tem um valor de fetiche
imenso, e é isso que alimenta o Narciso de todos, senão vira uma coisa
totalmente privada num certo sentido.
BLISS: Mas essa poesia da
linguagem parece ter uma certa capacidade de tomar e elaborar o que vem da
poesia da cultura. Por exemplo, essa poesia que você chama de poesia da
linguagem também tem uma coisa mais narrativa, também tem um aproveitamento da
mídia.
I: É por isso que eu
digo, são apenas categorias para ajudar a gente a pensar, mas nada disso é
estanque, tudo se mistura. Agora, o que eu tô querendo dizer é o seguinte: o
sublime é esse movimento onde o literário é uma afirmação da cultura letrada
por oposição, uns poderão chamar de banalidade, eu prefiro dizer por oposição à
cultura mesmo. A primeira vez que eu vi a oposição entre cultura e arte, que os
franceses gostam de fazer, foi um fundamento vanguardista, a vanguarda é contra
a cultura, mas não naquele sentido fraco da contracultura.
BLISS: Mas o Caetano tem
isso, naquela música Livros. Acho,
aliás, que você vê na trajetória dele exatamente isso que você tá falando,
porque ele saiu de uma coisa muito contracultural, e ainda muito na cultura, e
quando ele chega nos anos 90, mesmo com a aproximação dele do Jacques
Morelembaum, que ele fala que foi um cara que fez ele perder o medo da Música,
e em Livros ele fala que a ventura e
a desventura são os livros e o luar contra a cultura.
I: É, nesse sentido
que eu falei, não é um contra a cultura cultural, a contracultura como
comportamento. Que é um sentido forte, mas fraco em relação a esse outro, onde
a cultura seria mesmo a cultura erudita, pela lógica, ela é vista mesmo como a
rejeição – tem até um poema do Carlito que fala ‘na mercancia da praça pública’
– como uma rejeição da praça pública, da palavra pública. Isso tudo é muito
complexo. Agora, veja bem o meu posicionamento no final das contas é e sempre
será muito via Maiakóvski. Não é à toa que pra mim o que interessa é o BNegão e
o Black Alien. E por exemplo, já naquele artigo de 92, quando eu criticava o
sublime, que eu falava numa retomada culturalizada da contracultura, o que eu
queria era uma poesia que tivesse sintonizada com essa multiplicação de vozes
no espaço público. A coisa mais linda que eu acho, o que eu mais gosto em
poesia é quando você tem uma multiplicidade de vozes traduzida numa forma
poética. Eu acho que o desafio que tá colocado pra poesia hoje é o desafio da
fala, e da fala também como fala pública. E apesar da democracia no Brasil já
ter, mas o problema da democracia não é só a democracia no Brasil, é a
democracia como uma era humana, onde todos falam. Porque a poesia como parte da
cultura letrada, ela é a expressão de uma arte onde alguns escrevem. E o
problema da poesia hoje é outro: é como você vai fazer poesia, ou seja, como
que vai ser essa relação visceral com a filologia num contexto onde todos
falam, todos têm que falar, e é um falatório, uma algaravia total. É isso pra
mim que tem que tá no poema. Uma coisa que a Célia Pedrosa falou da minha
poesia que ela tem toda razão, eu gosto de uma dramaticidade na linguagem, daí
eu acho que o poema metrificado, formal, ele é antidramaticidade. A não ser que
você tenha grandes mestres, onde você tenha uma pulsação da forma. Os new
critics gostam disso num poema, eles gostam do poema como uma coisa que pulsa
pela forma. É toda uma forma amarradinha, autotélica, como dizem, voltada para
dentro de uma totalidade, que é criada toda arrumadinha. A minha estética é
outra, eu gosto de uma coisa aberta, que flerta com o desarrumado. Nesse
sentido que o Kerouac é importante. Eu hoje tô meio digressivo... Vocês vão ter
que editar muito. É o que eu digo: é um paradoxo, uma santíssima trindade, uma
santíssima dualidade. Eu tô inteiro no espaço da poesia da linguagem, mas eu tô
inteiro no espaço da poesia da cultura. Eu acho que eles não se negam. O que eu
acho fascinante no Ricardo Domeneck, como figura, é exatamente o fato de que
nele convivem as duas pulsões. Ele tem um trabalho de poesia, que é um trabalho
de poesia da linguagem, e ao mesmo tempo, ele é um performer. Eu jamais serei
capaz de criticar a poesia da cultura letrada. Isso eu não farei, porque a
cultura letrada, tadinha, ela é uma pobrezinha. Ela é um aleijão, ela é uma
anã, embora tenha um valor de fetiche brutal. Ela é uma míope, coitada, mas eu
sou míope, né? (risos) Mas é verdade, você vai criticar a cultura... a cultura
letrada é no máximo um refúgio, uma defesa perfeitamente legítima. Não é à-toa
que a poesia é chamada de jardim da sensibilidade, é por isso, é um jardim da
sensibilidade, mesmo. Agora, você sempre vai poder criticar a poesia da
linguagem do ponto de vista da cultura. Sempre vai poder fazer essa crítica,
vai chamar ela de alienada. Eu não tô nessa.
BLISS: Eu queria
perguntar um pouco dessas formas de falatório, desses poemas dramatizados com
diferentes vozes. Em geral, o que está se dando nessa poesia: que sujeito está
aparecendo? Quem é o eu dos poemas? Eu estou pedindo para você fazer uma
generalização, mas que sujeito se constrói?
I: Eu não tenho uma
teoria da questão do sujeito, de jeito nenhum. Eu sou capaz de lendo um autor
ou lendo um poema descrever e discutir como que a subjetividade se coloca ali.
E eu tenho algumas visões genéricas da questão da subjetividade tanto na esfera
da cultura, quanto na esfera da linguagem. E eu acho que elas acabam se
cruzando uma à outra. Então eu sou interessado muito por esses temas: da
performatização do eu, da autoficção. Eu acho que no campo da cultura letrada,
você se dissolve totalmente. Eu acho que o exercício poético da linguagem é
constantemente um exercício de subjetivação. Eu vejo poesia como uma
subjetivação permanente. Mas a subjetivação pode ser uma dissolução. Não
acredito, eu acho que é ideológico, eu não acredito nesse princípio mallarmaico
do apagamento do eu. Agora, acho que outros conceitos como a subjetividade em
devir, de Deleuze. Eu gosto muito também da máscara. No fundo no fundo, eu fico
mesmo com a máscara, com a ideia da persona. Na minha poesia, não tô querendo
dizer que ela seja uma grande poesia, não, mas eu vejo muito isso, eu gosto
assim de ser o cachorro, de ser... entendeu? Essa coisa dionisíaca básica. Acho
que a linguagem poética, você coloca a máscara de um bicho, você vira aquele
bicho. Você coloca a máscara do outro, você vira aquele outro. Então, eu
gostaria muito mais de pensar em processos de personificação. Talvez
dessubstancializar a questão do sujeito em função duma noção de produção do
sujeito, de personificação, de máscara. Seria por aí que eu iria.
BLISS: Porque, na poesia,
pelo menos na década de 80/90 vem bem forte esses sujeitos novos, também, né? A
mulher, o gay, o negro.
I: Aí é o que eu
digo: a poesia é um território próprio, é um território circunscrito. Quer
dizer, você pode fazer uma boa poesia panfletária, não tô negando aqui o meu
parâmetro maiakovskiano, não. A coisa mais bonita do mundo é isso, por exemplo
num momento revolucionário – o momento revolucionário que eu digo é uma
subjetividade coletiva explodindo, rompendo, com alguma transgressão – quando
irrompe a arte. Sempre tem o poeta, o que fala, o que é músico. Então, não
tenho nada contra a poesia panfletária, não. Não tenho nada contra poesia ruim.
Não, gente, eu tô tomando a Bastilha, aí chega um cabeludo e fala uma bosta de
um poema panfletário: péssimo poema, maravilhoso poema naquele momento, naquela
performance. Agora, bota no papel, né? Pode ser um documento histórico, pode
ser. Eu acho também que a crítica poética brasileira é muito ingênua nesse
sentido, é muito provinciana e estreita. E acho que os argentinos também
acreditam demais nisso tudo. Então, você começa a estabelecer critérios
estéticos assim: vamos agora então ver quem são os eleitos da humanidade e quem
são os excluídos da humanidade. Sabe, você tem um movimento da palavra. Claro
que assim você tem o bom, o maravilhoso, aquilo que você vai preservar, que
você vai guardar. Onde é que a gente tava?
BLISS: Sobre esses
sujeitos novos.
I: Sujeitos
alternativos. Então, veja bem. Existe a poesia panfletária, a poesia que vai
ser em prol do movimento feminista, da libertação da mulher, do gay, do negro,
do etc. e tal. Mas do ponto de vista mesmo do que eu gosto no final das contas,
que é essa poesia da linguagem, a gente então ficando restrito no quadradinho
[passa os dedos por sobre a capa da edição de um ensaio de Ricardo Domeneck,
intitulado De figurinos possíveis em um
cenário em construção e lançado junto com o primeiro número da revista Modo de Usar & Co.; nela, se vê em
um quadrado destacado uma mão segurando uma melancia], boa essa capa! Ela
corresponde exatamente ao que eu tô querendo dizer. Eu acho que é difícil você
fazer alguma coisa realmente interessante, do ponto de vista de uma poética
erótica – eu não quero ser também aqui taxativo demais – mas do ponto de vista
de uma poética erótica ou amorosa, eu acho que hoje em dia você fazer isso em cima
de uma heteronormatividade é meio sem graça, é muito codificado. Então, por
exemplo, eu dou muita importância a uma poética homoerótica porque eu acho que
ela tá desbravando fronteiras na própria linguagem. Porque por mais livre que a
linguagem poética seja e tenha sido, ela é muito presa. Então eu valorizo
atualmente, por exemplo, na poesia contemporânea, eu valorizo muito uma poesia
homoerótica. Não só porque eu faço poesia homoerótica, ou talvez por isso,
talvez só por isso. Então, por exemplo, como é que uma poesia feminina vai me
pegar? Eu acho que ela vai me pegar – ela vai ser revolucionária pra mim – na
medida em que ela também tá saindo de uma heteronormatividade. O poema
panfletário, ligado ao movimento feminino, ele vai trabalhar um clichê de mulher,
assim como existe o clichê de homem, que é dominador, aí vem o clichê da mulher
dominada que reclama e se liberta. E procura uma igualdade, e que depois que
conquistou a igualdade, afirma a sua diferença. Essa ordem de questões eu acho
ela menos interessante para a poesia. Porque aí acho que a poesia, ela tem que
ser idiossincrática mesmo, ela tem que ser idioletal mesmo. Se ela tá
promovendo um conceito social de homoerotismo, um conceito social de
feminilidade, um conceito social de negritude, eu acho ela menos interessante.
Ela é ruim. Volto a repetir, eu não tenho nada contra a poesia ruim. Mas é
poesia ruim. O que eu quero nesse nível, aqui da poesia da linguagem, é uma
outra coisa, é o idioleto mesmo. É uma vivência. Agora, veja bem, o idioleto não
necessariamente precisa ser a expressão de um fetiche autoral, porque eu acho
muito interessante, embora eu nunca tenha me interessado, quando me fizeram
proposta de escrever poesia a quatro mãos, em dupla, eu nunca quis. Mas também
acho interessante você trabalhar a quatro mãos, trabalhar num coletivo poético,
como os surrealistas criaram, como os concretistas faziam, como todas as
vanguardas fizeram, se dissolver. Então eu tô falando do ponto de vista do
idioleto, porque eu tô falando do sujeito na linguagem, porque é isso também
que acontece, a partir do momento que você faz o poema, aí tem uma questão da
subjetividade colocada no poema, pelo poema, para o poema.
BLISS: Mas é desse
sujeito que eu estava perguntando.
I: Com relação a esse
sujeito que você tava perguntando, eu acho isso. Eu acho que a linguagem
poética, no limite, ela é idioleto, sim, ela é de uma singularidade radical.
Ela só me interessa se tiver singularidade radical. Se ela não tiver
singularidade radical, ela é poesia média, poesia ruim. Todas merecem aplausos.
Todas são filhas de deus. Mas tem que ter o idioleto radical.
BLISS: Adorei essa, tem
que ter o idioleto radical.
I: Então tem que ser
mulher idioletica ou seja idioticamente. Porque a poesia poética, a poesia boa
é uma poesia idiota. É uma idiotia da linguagem. Claro! Do ponto de vista do
senso comum, a linguagem poética é totalmente idiota. Do ponto de vista do
engenheiro que tem que construir pontes e da dona de casa que tem que alimentar
as crianças, tudo que a gente acha bom é uma idiotia em certo sentido. Eu acho
que essas questões são fundamentais, questão da negritude, questão do
homoerostimo, questão da mulher, mas idioleticamente falando, do ponto de vista
estético e linguístico. E não como panfleto, não é para promover uma
subjetividade social. É por isso que sempre vai ter o conflito, a
complementaridade e o conflito entre o espaço da arte e da cultura, naquele
sentido, que eu odiava os franceses falarem, mas hoje eu reconheço isso. Tem um
espaço da arte, que por mais que ela vá ser apropriada socialmente e ela o será
necessariamente, mas por mais também que você tenha essa necessidade normativa
e essa realidade normativa de tudo que é dito, você também tem sempre o espaço,
ou seja, já há uma expectativa para o abalo disso de alguma maneira. Um abalo
até silencioso, no caso de boa parte da poesia. Então é difícil pegar, porque é
uma coisa paradoxal, são valores muito opostos que no final podem ser também
complementares.
BLISS: Na poesia
homoerótica contemporânea, quem você acha que consegue ser idioleticamente
idiota?
I: A maioria. Eu acho
que a poesia homoerótica especificamente não faz muita panfletagem, não. Eu
acho que, é o meu caso, inclusive, nunca quis fazer... também a minha biografia
é muito complicada, eu acho que a palavra gay não define a minha biografia.
Basta dizer que eu sou avô nesse momento. Então muito complicada. Mas eu acho o
seguinte, eu acho que quem tá optando por escrever sobre a questão homoerótica
na poesia é porque também não tá afim de ir pro movimento, entendeu? Ou tá
querendo tá no movimento através da sua poesia. Eu não vejo muita panfletagem,
não. No caso da poesia da mulher, eu acho que o problema da poesia da mulher –
também acho que as nossas grandes poetas são muito legais – só as fracas são
aquelas que ficam contando o cotidiano da mulher. Hoje tô cozinhando, hoje caiu
um ovo, hoje gozei. Eu acho que muita poesia feminina tem a tendência às vezes
até sofisticada de descrever o cotidiano feminino. Eu acho que é uma coisa que
já cansou, que já ficou meio clichê. Mas eu acho que tem muita gente legal
assim. A própria Cláudia Roquette-Pinto. Eu acho que tem lá coisas que você
pode até questionar esteticamente, mas eu acho que ela já tem uma sofisticação
na exploração do feminino que eu acho que é por aí.
BLISS: E Adélia Prado?
I: Olha, Adélia Prado
eu acho uma poeta básica, assim, é o que eu chamo de poeta essencial. Tá um
pouco acima do bem e do mal. Mas também muito assim, muito Bagagem, os primeiros livros dela. Depois já não acho que ela seja
tão interessante assim. Mas ela é sempre muito interessante, mas ela é
interessante até porque ela fala um pouco de dentro da situação da mulher
comum, e ela não seria clichê, ela escreve muito o cotidiano feminino, mas ela
tem sempre uma perspectiva um pouco perversa. Sempre ela tá olhando para esse
cotidiano da dona de casa, mas sempre com alguma coisa... Eu valorizo Adélia
Prado, eu gosto de Adélia Prado, apesar de ela ser uma poeta popular entre
aspas, eu acho ela uma poeta legal, eu gosto. É disso que digo que o meu
universo estético se moveu muito, hoje eu sou uma pessoa que posso gostar de
uma Adélia, posso gostar de um Manoel de Barros. Desde aqueles primeiros tempos
do Metalinguagem, que é...
BLISS: Eu queria falar
sobre isso. Você tem um artigo em que você fala que existiria no Brasil duas
pedagogias do poema básicas. Já tem algum tempo. Que seria a do Antonio Candido
e a do cânone modernista básico e a do Concretismo. Você se considera formado
numa pedagogia do poema concretista?
I: Num primeiro
momento, sim. Mas aí toda minha vida foi uma desconstrução disso. Desconstruir
sempre é uma ampliação. Porque eu acho que a poética concretista é muito
baseada num recorte de exclusões então eu tive que aprender esteticamente a ser
cada vez mais... entendeu?
BLISS: E você acha que
ainda hoje no Brasil teriam essas duas pedagogias ou você acha que já mudou
isso?
I: Não. Eu acho que
ainda existem os herdeiros do Concretismo, que são dogmáticos. Eu acho que
ainda existe uma pedagogia uspiana, que é dogmática, mas é burocrática,
acadêmica, universitária. Mas eu acho que tudo que eu falei vai contra isso.
Essa geração dos núcleos, a Azougue, Inimigo Rumor, ela tá partindo de outros
pressupostos. Por exemplo, Carlito e o pessoal da idade dele, que chegou nos
anos 90, eles chegaram criticando a polarização. O ponto de partida já foi uma
tentativa de conciliação. Então eu acho que inclusive essa tentativa de
conciliação e essa abertura para uma diversidade faz parte do contexto político
e filosófico mais amplo que afetou a América Latina e a intelectualidade
brasileira, principalmente, menos na América Hispânica, que é essa coisa
liberalizante. Ficamos mais liberais. Éramos ideológicos, ou você era
concretista, ou você era comunista, ou não era mais nada. Na esfera da poesia,
o primeiro movimento da geração do Carlito foi o movimento da conciliação.
Poderíamos analisar essa história da conciliação enquanto conciliação, mas o
que foi importante é que a partir dali, ele se tornou o A do ABC do jovem poeta
brasileiro. Quer dizer, não tenho partido. Não sou modernista contra o
concretista. Eu quero o concretismo, eu quero o modernismo e eu tô com tudo. Já
foi a mudança total a partir daí, a partir dos anos 80/90. E aí, nós tamos
vivendo já nas consequências disso. Um outro contexto. Os cadáveres estão mais
do que enterrados. De vez quando, sobe um de repente, se agita, faz beicinho,
entendeu? (risos) E o Arnaut Daniel? Mas eu acho que todo mundo tá partindo de
um outro terreno e sobretudo cheio de gringo. Você não ouve um jovem poeta hoje
falar: ah, eu amo Drummond. Ah, eu amo o Bandeira. Ouve? Os poetas falam isso?
Não. Não sei. Vocês veem isso? Eu tô enganado? Eu tô errado? Ninguém fala eu
amo Murilo Mendes, eu amo Jorge de Lima. Não. A minha geração sim. Eu amo Drummond.
Hoje em dia, não. Hoje em dia, as pessoas partem, sei lá, um é Andy Nachon, o
outro é Carlito Azevedo, é Ana Cristina César, muito. Forte. Porque a Ana
Cristina é uma que a linguagem dela já vai além dessa polarização. A Ana
Cristina tem um perfil parecido com o de todo mundo hoje. Porque junta tudo,
mistura referências eruditas e populares, pops, já tá num terreno que é
concreto e é modernista e é muito cheio de estrangeiro povoando o imaginário
dela. Então acho que ela tem essa presença simbólica forte.