A postagem de hoje encerra as atividades do
blog de 2014, e dá início ao ano em que já nos encontramos. Vamos às férias,
porque sofremos todos os desastres nesse ano desastroso, e merecemos gozá-las.
O blog e seus editores voltam às atividades periódicas apenas em abril. Mas
antes de irmos ao verão, paramos um momento para Luca Argel.
Organizamos, junto
aos amigos e queridos artistas dos Jardins Portáteis [mais informações aqui e aqui], um evento para que Luca
apresentasse o livro de
reclamações [veja/ouça/sinta
o livro aqui] pela primeira vez no Brasil. O
evento acontecerá no Rio de Janeiro, dia 06/01/2015 e será acompanhado por um
show de Dimitri BR [mais sobre o artista aqui e aqui] em que ele apresentará, pela
primeira vez, seu álbum Música Sólida na íntegra. Além disso, também
teremos apresentações com poemas/cenas/canções dos artistas: Lucas Matos e
Thiago Gallego; Cristina Flores, Eduardo Sande e João Marcelo Iglesias.
Na postagem de hoje,
dedicada à obra de Luca Argel, vídeos da série desinventor e um texto inédito que encomendamos a
Luca sobre a sua experiência em Portugal (ele foi para lá em 2012 logo após o
lançamento de seu primeiro livro, Esqueci de Fixar o
Grafite, 7letras, 2012) e um pequeno ensaio sobre sua poesia, assinado por
Lucas Matos.
Seguimos vivos,
de bliss em bliss.
Sobre o Evento:
Lançamento de O livro de
reclamações (Luca Argel)
& show Música Sólida (Dimitri BR).
Onde: Sede das Cias.
Rua Manuel Carneiro, 12. (Escadaria Selarón). Lapa. Rio de Janeiro.
Quando: 06/01/2015.
Às 20 h.
Apresentam-se:
Cristina Flores, Dimitri BR, Eduardo Sande, João Marcelo Iglesias, Luca Argel,
Lucas Matos e Thiago Gallego.
Mais info: aqui
*
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Foto da capa d' o livro de reclamações (por Bea M. Saiáns) |
PARTIU-ME O PESCOÇO
(Luca Argel, 2014)
-ter uma tag na caixa
de emails com o nome "diaspora". ser essa tag referente a tudo o que
diz respeito à viagem, mas que essa tag acabe por reunir praticamente apenas os
emails relativos a toda a burocracia da mudança: documentos de viagem, visto,
papelada da universidade, seguro saúde, bilhetes de avião, cotação do euro...
-…o que acontece no
mundo quando você se muda é só que mais um monte de papel é criado. mas mantive
o nome da tag, só porque tinha que ser um nome curto.
-aquela grande frase
da llansol, que dizia que só voltava pra portugal quando já não fosse mais um
voltar e sim um ir. (não pelas implicações da frase, mas porque ela faz parecer
que até existe essa possibilidade, digo, essa possibilidade de
"voltar", assim, voltando).
-"partiu-me o
pescoço": causou-me espanto; surpreendeu-me; impressionou-me
(positivamente). a primeira expressão nova que aprendi (e nunca usei). (mas
justiça seja feita: mais por pudor, do que por falta de oportunidade).
-e isso de estar no
país do colonizador? na língua do colonizador? e essa coisa de ser você o
estrangeiro – mas menos estrangeiro do que uns, e mais estrangeiro do que
outros – e lembrar que das últimas vezes que estive em certos bairros do rio de
janeiro também já me sentia um pouco estrangeiro?
-outra coisa é
descobrir que ir "às brasileiras", aqui, quer dizer ir ao puteiro;
outra coisa é ouvir um "volta pra tua terra" numa briga de bar, e
entender a frase não porque você entende aquela língua, mas porque foi dito na
tua própria língua
-mas há "o
garrote", de fernando assis pacheco; "visitação I" de antónio
franco alexandre; "carta aos meus filhos sobre os fuzilamentos de
goya" de jorge de sena; "levadas" de manuel de freitas;
"ritos" de josé miguel silva; "acrobacias", de ana paula
inácio. por isso sim, por isso sim.
-e mais: o acordo
ortográfico, um crime. não que ele seja respeitado aqui, mas é que
desobedecê-lo em portugal é um prazer ainda maior do que desobedecê-lo no
brasil!
-aprender
definitivamente uma coisa: a odiar a palavra "pátria", seu conceito,
sua etimologia.
-estar sempre em
defasagem, só começar a entender o lugar anterior depois de já estar no lugar
seguinte.
-um péssimo lugar
para ser vegetariano. a maioria nem sabe o que significa essa palavra. em geral
acham que quer dizer "não gosta de churrasco", e te oferecem fiambre.
(fiambre é presunto). no melhor dos casos, peixe. (segue texto explicativo decorado,
interrompido por interjeições de surpresa, indignação, escárnio).
-e toda uma nova
caixa de ferramentas: a segunda pessoa do singular, a segunda pessoa do plural,
pronomes oblíquos, pronomes oblíquos por toda parte!
-ah, sim, a crise. há
outros nomes pra isso, também.
§
*
Nenhum código de
emergência para esse tipo de situação: escutando Luca Argel.
Por Lucas Matos
1.
Ao se referir ao
conjunto de práticas artísticas que envolvem o poético, ou estão no nome da
poesia de Luca Argel, é comum que se usem frases como “ele também faz poesia
textual”, ou que apareçam adjetivos como “tradicional”, e até – o mais curioso
- “clássico” para se referir ao trabalho verbal que não se dá em meios
audiovisuais ou por performance. De fato, Luca tem-se destacado por um trabalho
que se ramifica numa espécie de trânsito entre linguagens diversas.
Nesse sentido, sua
empreitada mais recente, o livro de
reclamações [cujo lançamento
no Rio de Janeiro se dará na terça-feira conforme texto acima], se por um lado
sintoniza-se com uma ideia de livro que vai encontrar sua forma no dispersivo e
no fragmentário (pensemos, por exemplo, n’O livro do
Desassossego), por outro, responde ao afirmar-se como
música-e-poesia-ao-mesmo-tempo (e talvez pudéssemos acrescentar performance e
vídeo) que não se trata de coisas co-extensas, adjuntas. Antes, quando nos
vemos diante da simultaneidade que ele propõe pela recuperação do uso de uma
palavra – mas que não só de uma palavra, senão de uma experiência da arte ou da
cultura – antecedente à Poética aristotélica e suas práticas analíticas e
classificatórias que propiciariam a cisão entre música e poesia, pensamos numa
espécie de implicação.
Então, ao me propor
um exercício de escuta de seu primeiro livro, o Esqueci de fixar o
grafite [7 letras, 2012],
queria dizer que, de algum modo, estou me propondo considerar sua poesia
“textual” não como um também, ou um além de, e sim como um ao mesmo tempo. Isso
se dá pelo reconhecimento de uma unidade de composição em que os desenhos
acústicos que as frases apresentam desempenham um papel fundamental a partir de
recortes/colagens, repetições de padrões rítmicos e sintáticos, etc. em que o
som cotidiano da língua aparece próximo/distante, em deslocamento.
2.
UMA HORA PARA AS
CAIXAS DE SOM PARAREM DE FUNCIONAR
conheci você no
banheiro da cantina
cantando muito alto
uma marchinha famosa
não era roxo ainda
seu cabelo
não era roxa ainda
sua voz
conheci você num
leilão de frangos
fugindo do plantão
não era roxo ainda
seu nome
não era roxa ainda
sua mão
conheci você no maior
município em área deste país
roubando uma canoa
não eram roxas ainda
suas fotos
não era roxa ainda
sua língua
conheci você andando
de bicicleta
na primeira manhã de
uma guerra
não eram roxos ainda
seus amigos e o seu corpo
não era roxo ainda
Os três primeiros
quartetos apresentam uma estrutura sintática semelhante, numa espécie de jogo
de permutação, em que sobre uma forma que se repete, diferentes arranjos de
conteúdo se sucedem, como numa variação sobre um tema, ou num exercício
probabilístico de possíveis. Nos dois primeiros versos de cada uma, temos a
frase “conheci você + local + modo”. Aqui, o tema do a primeira vez que um par
se viu/formou ocorre na estrutura discursiva eu-tu que percorre todo o livro, e
se vê condensado na forma do conhecer como um encontro que envolve um local e
um estado de coisas que dá a situação, o contexto psíquico e físico dos corpos
no momento do encontro. É interessante que as orações subordinadas que apresentariam
esse estado tenham uma indeterminação quanto a seu sujeito (não se sabe quem
estava cantando, fugindo, ou roubando, apenas por uma questão de ordem
presume-se que é o segundo termo (você), mas podia ser o primeiro (eu) ou mesmo
ambos). Também é notável que se a estrutura se repete, o jogo do que se sucede
estabelece uma gradação (do menor espaço para o maior espaço, expresso pelo
maior sintagma, e do potencialmente incômodo/causador de perturbação ao
ilegal). Os dois últimos versos de cada uma dessas estrofes também repetem,
como num refrão, “não era roxa/o ainda” e diferentes elementos ocupam a posição
de sujeito, o par quase sempre apresenta uma parte do corpo (cabelo/mão) e algo
que mais próximo ou mais distante do corpo anuncia uma espécie de linguagem ou
codificação significativa/expressiva (voz/nome/fotos). Aqui, o interessante é
que a ambiguidade da palavra língua vai dar o tom da instabilidade, ou
antecipar o movimento, a reordenação que ocorre na estrofe final.
Nos dois primeiros
versos da estrofe final, há uma inversão da ordem, o estado das coisas, o
contexto físico dos corpos aparece primeiro (“andando de bicicleta”), o que
possibilita um deslocamento e não mais temos um adjunto que informa um local,
mas uma circunstância histórica ou de temporalidade – a primeira manhã de uma
guerra. Os dois versos finais também se reordenam e ganham uma espécie de
ambiguidade sintática, ou mobilidade interpretativa. Quer dizer, podemos ler
tanto “não eram roxos ainda seus amigos e o seu corpo”, quanto “e o seu corpo
não era roxo ainda”. Além disso, quanto ao refrão “não era roxo ainda”, se
considerarmos a repetição e os significados da cor roxa, podemos agora
entendê-lo como uma espécie de prenúncio de desastre, ou de desenvolvimento de
um tema sombrio que afinal vem para o primeiro plano, encerrando a peça. Ao
final, é como se “não era roxo ainda” ficasse ressoando, nota em suspenso,
prolongada no tempo da leitura.
Estamos bastante
próximos de outro poema do livro, que tem estrutura quase complementar:
PARA VOCÊ APRENDER A
PALAVRA NACRE
oi eu estou com o seu
casaco frio
oi eu estou dentro do
seu casaco frio
oi eu estou cobrindo
o meu rosto
com o capuz do seu
casaco frio
agora eu não vejo
mais nada
agora está ficando
mais difícil
respirar
No caso, o tema do
“seu casaco frio” inscreve a estrutura eu-tu no jogo da ausência/presença (você
ausente, mas perceptível através de um objeto que concentra a memória ativa da
sua presença, a princípio) e encarna na relação dicotômica dos seus termos –
aquilo que deveria propiciar calor, ser quente, se revela frio – a dinâmica de
temperaturas do corpo que estão sujeitas à dinâmica do afeto. Aqui, talvez não
seja absurdo uma aproximação com a lírica das febres da paixão e do amor.
As frases do poema
são todas iniciadas por uma partícula que marca uma proximidade com o registro
oral, e que se coloca como que fora, ou na posição “mais externa” do encadeamento
sintático da oração (oi/agora). Os três primeiros versos são também variações
sobre um tema, mas no sentido de uma estrutura que vai se alargando, se
desdobrando tanto do ponto de vista da relação entre os termos da frase quanto
de seu significado. No trabalho de Luca, é bastante comum que haja um
entrelaçamento do tipo, em que uma mudança no padrão sonoro, discursivo, frasal
sempre implique, ou se faça acompanhar de alterações do ponto de vista do
conteúdo do que está sendo dito. Do primeiro ao segundo verso, a variação
operada (com -> dentro) se dá como um deslocamento do referencial espacial
na relação do sujeito que fala e o objeto. O casaco vai de algo que o
acompanha, que está junto dele, para algo que o circunscreve, que o contém. No
terceiro verso, a introdução de uma nova oração na posição final, dilatando a
frase (que se quebra em versos distintos), mais uma vez promove uma alteração
do ponto de vista que se dá como uma intensificação do movimento anterior.
Agora, apenas partes do corpo de quem fala e do objeto estão em cena, e quem
fala se confunde com o próprio objeto na ação de circunscrever/constranger o
corpo.
A alteração maior
permite que uma nova estrutura se apresente a partir de uma partícula dêitica
(agora) que concretiza, trazendo para o primeiro plano, o índice de
performatividade do poema. As frases seguintes se aproximam pelo tema da
obstrução progressiva. A primeira delas, obstrução da visão, possibilita um
deslocamento do foco com relação a quem fala, e nas orações finais a palavra
“eu” já não se pronuncia, embora seja o sujeito possível – ou presumido – da
última delas (respirar). É claro que aqui a sugestão do poema é a de um
entrelaçamento de quem fala no poema com quem lê – como se o leitor pudesse
sentir também a dificuldade de respirar. Note-se que a quebra dos versos não
segue a constância sintática anterior, simulando pausas, ou um espaçamento mais
irregular na frequência do ritmo inspiração/expiração. O final, mais uma vez em
suspenso, condensa a performance do poema – sugerindo uma progressão da falta
de ar ao ponto de não se conseguir mais manter a sustentação da fala.
Como se vê, a
sugestão de uma musicalidade, aqui, se dá menos por procedimentos
fonéticos/fonológicos (não que não ocorram rimas e/ou aliterações, assonâncias
localizadas, mas não é nelas que se concentra o que procuro destacar) e mais
pela imbricação entre um movimento da forma/estrutura rítmica – e com sugestões
de desenhos acústicos, frasais claros – e o seu conteúdo temático. Quer dizer,
ela seria perceptível enquanto modo de composição, e não por uma ênfase na
carga sonora da matéria verbal, produzindo a impressão de uma imitação dos
efeitos causados pelo trabalho com melodias e harmonias.
3.
FICAR EM PÉ NUMA
CADEIRA COM RODINHAS
eu vou te dizer o que
eu vejo
daqui
enquanto eu estiver
aqui
e você estiver em
outro lugar
eu direi primeiro eu
vi
um mandarim levando
debaixo do braço
um banco
onde esteve sentado
durante noventa
e nove dias sob a
janela da cortesã
que o receberia
apenas no centésimo
eu direi primeiro eu
vi
uma criança correndo
na direção
de um tigre
eu direi primeiro eu
vi
alguém
tomando por música
o som do alarme
por estar com o corpo
totalmente submerso
as palavras lhe
saindo pela boca
direto à superfície
onde já não
pertenciam à qualquer língua
da superfície
eu vou te dizer o que
eu vejo
porque eu ainda vejo
porque eu estou aqui
porque a queda é uma
grande possibilidade
sim, embora para meu
lado esquerdo
sim, embora para o
lado da mão
com que você escreve
O título de saída nos
coloca numa situação de jogo entre equilíbrio e desequilíbrio de quem fala.
Trata-se não só de uma inversão da função de um objeto cotidiano – ficar em pé
numa cadeira – como também de se colocar em um solo móvel, em um trânsito em que
o corpo se encontrará sob a ameaça iminente de uma queda. O início do poema
insiste não só sobre a marca de um dêitico – aqui – como pela diferença de
ponto de vista que se opera (ver as coisas de cima de uma cadeira que se move,
portanto, do alto, mas em posição instável). Mais uma vez, a sequência se dá
pela jogo com a ausência imediata do interlocutor com relação ao lugar de onde
se fala. Nesse sentido, dizer o que se vê se anuncia como um compromisso, ou
necessidade de dar testemunho ao outro enquanto a diferença de pontos de vista,
ou de lugares de fala se fizer irredutível. Por um lado, a questão da
presença/ausência se articula como consciência do livro e da leitura do
impresso enquanto um meio/contexto específico do poema, por outro, a sugestão constante
de uma situação em que se inscreve o corpo que fala a partir de índices de
certa performatividade – que não deve ser tomado aqui imediatamente como
performance no sentido de arte performática – instaura uma tensão. A forma
livro/impresso nunca parece se apresentar como ponto de estabilidade, ou
fundamento fixo a partir do que se levanta o poema. Diferentemente, a sugestão
é de uma possibilidade de desequilíbrio, ou equilíbrio precário que marca a
abertura constante para outros modos do lance poético se apresentar.
No dizer o que se
viu, entretanto, se instaura um descompasso entre uma imagem e a narratividade
do próprio discurso – o enfrentamento de dois códigos distintos. Acabo por
dizer sempre mais, ou a partir de um referencial que é antes da própria fala do
que o que eu de fato posso ter visto. Expando assim a imagem, como se pudesse
ver no banco que o mandarim leva consigo a história prévia que o marcou.
Consigo, antes, passar pedaços de histórias que acabam colocando outras
matérias que criam opacidades à imaginação da matéria visual, epílogos,
oscilantes entre o fracasso/triunfo, desencontro/encontro, prenúncios, a
inocência diante do perigo, a disposição para o risco. A repetição do verso “eu
direi primeiro eu vi” acaba por refazer o jogo da série de permutas, seja como
uma cena que retorna e se refaz mudando seu arranjo de possibilidades, seja
como afirmação desse dizer que compõe o que se viu ao se enunciar. A ênfase
recai sobre a performance do dizer ao invés da experiência visual.
O termo que altera e
encerra a lógica da série é aquele que diferentemente parece apresentar um
contraponto ao lugar de onde se fala – o corpo submerso não só está abaixo de
algo, mas em outra substância/ambiência que altera o seu equilíbrio também e a
relação com o peso mas de forma completamente distinta. De qualquer modo,
também aqui o que marca, com relação ao equilíbrio, é a ausência da
possibilidade de estabelecer um ponto fixo, ou tão fixo quanto sobre o solo.
Aqui, além da situação, o contraponto também se estabelece por um estar em
deslocamento com relação a linguagens, e/ou códigos específicos. Assim,
escuta-se como música sons a princípio não ordenados numa linguagem musical, e
as palavras encontram um movimento ascendente até à superfície onde não se conseguem
organizar enquanto discurso de uma língua, tornando-se de som obscuro, e bolha,
a algo que somente aparece, sem som. O corpo oscila entre o ruído que ouve como
música, o discurso que se perde, e a imagem que se vê.
O estabelecimento do
contraponto permite o retorno à situação inicial, agora com o tema que apenas
se insinuava entrando em foco. A queda aparece enquanto potência orientada numa
direção numa forma de reafirmar a relação entre quem e com quem se fala através
do movimento da escrita, do movimento da mão na escrita. Nesse sentido, talvez
o que interesse ao livro, de outro modo, seja não uma combinação de diferentes
códigos numa forma estável, mas o registro desse movimento do corpo que oscila,
que está na iminência de uma queda, do corpo que, entre os códigos diversos e
cambiantes, não completamente compatíveis, se movimenta sem ponto de apoio fixo
possível.
COMO FAÇO PARA
RECONHECER PESSOAS DE QUEM NÃO LEMBRO MAIS O ROSTO
nem a voz
de quem não combinou
comigo
nenhum código de
emergência
para esse tipo de
situação
em que por exemplo
você se encontrará
se não soltar logo os
cabelos
nem sujar a ponta dos
meus dedos
de batom
quando entrar nesse
pátio:
vai ser estranho
e eu nunca poderei
ter certeza
e isso é bom
porque é tão pouco
como jogar cartas na
cama
ou pilotar juntos
a carcaça de um
monomotor
O que me parece é que, em Esqueci de fixar o grafite, desde o título até os pontos que procuro rastrear, o trabalho de Luca Argel não é o de quem se move com tranquilidade aceitando as regras de domínios distintos, mas de quem diante da sobredeterminação – pela saturação de todos os códigos – vai criar perfurações, espaços de indeterminação. O que interessa, no sentido do lance que concentra a carga poética, é o limite a partir do qual a série se desfaz, e em seguida ou temos silêncio, ou início de uma sequência de construções distintas – em tom distinto. O que interessa é a cena desse corpo oscilante entre linguagens diversas, em estado de desorientação/desequilíbrio, em busca de qualquer coisa que é como um jogo, ou um risco. Uma zona de indeterminação em que se pode dar algo como um encontro.
O que me parece é que, em Esqueci de fixar o grafite, desde o título até os pontos que procuro rastrear, o trabalho de Luca Argel não é o de quem se move com tranquilidade aceitando as regras de domínios distintos, mas de quem diante da sobredeterminação – pela saturação de todos os códigos – vai criar perfurações, espaços de indeterminação. O que interessa, no sentido do lance que concentra a carga poética, é o limite a partir do qual a série se desfaz, e em seguida ou temos silêncio, ou início de uma sequência de construções distintas – em tom distinto. O que interessa é a cena desse corpo oscilante entre linguagens diversas, em estado de desorientação/desequilíbrio, em busca de qualquer coisa que é como um jogo, ou um risco. Uma zona de indeterminação em que se pode dar algo como um encontro.
Reconhecer alguém é
um exercício de leitura, decifrado em sua operação de certo conjunto codificado
– os traços fisionômicos do rosto, o registro do conjunto de variações/alcance
sonoro da voz – para fazer encontrar uma informação imediatamente presente com
um conjunto de memórias. Nesse sentido, não se lembrar é de algum modo manter a
memória em seu estado de feixe de experiências, de pequenos acontecimentos
(soltar logo os cabelos/ sujar a ponta dos meus dedos de batom) que não se
traduzem no ato de conferir ao outro uma identidade mais ou menos fixa. O verso
“nenhum código de emergência”, a impossibilidade de resolver a situação a
partir de um sistema de signos pré-combinado, antecipa a situação que será
posteriormente atualizada por um sistema de dêiticos no qual quem fala coloca a
pessoa com quem fala (esse tipo de situação/nesse pátio). É interessante que o
jogo de indeterminação se opere numa oscilação de um “você”, que é genérico,
que pode dizer qualquer um, e a implicação de com quem se fala, e
potencialmente de quem lê no contexto criado.
No encontro encenado,
tanto a estranheza quanto o diminuto da experiência importam pelo seu grau de
incerteza, entre o blefe nas marcas de um jogo entre o cotidiano e o afeto
(cartas na cama) e a sensação de um risco compartilhado nas imediações de um
desastre (pilotar juntos/ a carcaça de um monomotor).
4.
AQUELE DIA EM QUE
VOCÊ ABRE A GELADEIRA DÁ DE CARA COM UM SAQUINHO DE COUVE E DÁ UMA CHORADINHA
e você fecha a porta
da geladeira
quando a geladeira
apita
e olha você
em um corpo
que se recorda
que abre a porta da
geladeira
e olha você
nas condições
normais
de temperatura e
pressão
se estavam todas
amarradas
estavam
naquela fita
que era qualquer fita
que arrebentou semana
passada
e arrebentou hoje de
novo.
Não seria de todo
ocioso tirarmos um momento para falarmos apenas dos títulos dos poemas. São
invariavelmente compostos por frases, que podem se apresentar como plenamente
realizadas do ponto de vista oracional ou como tópicos frasais destacados (cuja
complementação pode residir no primeiro verso ou não existir, apontando apenas
para um contexto maior de onde ela teria sido retirada e que se encontra
subtraído). O interessante, entretanto, é que se a estrutura, na maioria das
vezes, é reconhecível imediatamente como referência construções, lugares comuns
sintáticos do cotidiano de trocas sugerindo um processo de recorte e montagem a
partir de textualidades e hipertextualidades diversas, o conteúdo sempre insere
um elemento cujo encaixe causa surpresa. Não só pelo seu dado inesperado, mas
pelo fato de ele se apresentar simultaneamente como algo inusitado e ordinário.
Inusitado no sentido de que tem uma carga de afeto excessiva, que não é
explicitada, apenas se põe enquanto mistério a partir de sua própria intensidade.
E ordinário porque não se opera um jogo que faça menção a qualquer ordem que
não a das relações que se encontram no dia a dia, coletâneas de pequenos
momentos, instantâneos que se dão numa poética do mínimo e do menor. “MOSTRANDO
AO MUNDO QUE É POSSÍVEL QUEIMAR MACARRÃO”. “NÃO CONFIO NESSE MERTHIOLATE QUE
NÃO ARDE”. “É OFICIAL: ACABARAM MEUS GRAMPOS”. “A ARTE DE TOMAR BANHO E
CONTINUAR AZUL”. “CONTRAÇÃO LOMBAR ÀS SETE DA MANHÃ E O ARREPENDIMENTO DE NÃO
TER ADESTRADO SEU CACHORRO”. São pequenos fragmentos que apontam para situações
que não estão presentes, e que quase poderiam ser tomados enquanto pequenos
acontecimentos linguísticos em si, mas se relacionam com o todo do poema numa
espécie de montagem, podendo ser esclarecidos pela sequência sintática ou
semântica, ou manter-se numa espécie de ressonância conjunta título/texto.
Voltando à geladeira
e ao saquinho de couve: o poema se compõe todo ele a partir de pequenos
recortes, repetições, montagem. Recortes de discursos diversos: do coloquial,
ao científico, ao dramático. Da geladeira que apita e olha/lança luz – num
provável código sonoro que indica o excesso de tempo aberto, e uma vigia,
observação dos usos da luz e eletricidade – à fita frágil que arrebenta uma vez
e de novo sem explicação e sem conseguir manter-se unindo o que tende ao
disperso, ressalta-se o corpo e sua memória física. E do que o corpo recorda
nessa cena simultaneamente inusitada e ordinária, estranha e cotidiana? Do que
se arrebenta, dessa fita que não vale por suas características mas pela sua
função: deveria dar a coesão, a unidade dos múltiplos, e que não se mantém
todos amarrados, reunidos. Sobre essa memória física, daquilo que se borra, do
que se desfaz e não se mantém fixo se faz o livro.
ESQUECI DE FIXAR O
GRAFITE
por que nós filmamos
os acontecimentos
apenas para vê-los em
retrospecto?
para que eu acredite
que este cardume de
pixels
sou eu
é no mínimo preciso
para que você
acredite
de uma história ou
de outra dimensão
mais
espaço
por que nós lembramos
isto é
não esquecemos
para falar
de realidades
semelhantes isto é
desiguais
é preciso
de mais
espaço neste cartão
ora
de memória
A pergunta inicial é
um pouco como um enfrentamento do hábito de tomar o registro em código visual
no lugar da memória, ou melhor como tentativa de ordenação da memória, e em
última análise, do tempo e da história. A frase que vem na sequência, recortada
para recriar o percurso de um discurso com marcas de oralidade, com
interrupções do encadeamento sintático, fragmentação e isolamento de tópicos
frasais, é todo o resto do poema. E ela diz, em suas construções por
semelhanças sonoras (cardume-pixel) e sua quebra de unidades lexicais complexas
(cartão ora de memória) de uma lembrança que não pode ser reduzida às dimensões
do código visual. Mais: uma lembrança do que é desigual, portanto, do que sendo
semelhante revela-se na diferença.
Por um
lado, as novas tecnologias permitem um trabalho que vai reunir saberes que se
tinham separado – na sua saturação de códigos e de diversidade de informações
mais ou menos descontínuas. E é, nesse contexto, ou mesmo a partir desse
contexto, que Luca Argel pode se propor como um poeta que trabalha sobre aquela
palavra que diz música-e-poesia-ao-mesmo-tempo. Todavia, o que se revela na
consideração do seu trabalho é uma espécie de resistência ao que pode haver de
homogeneizante ou de apagamento de diferenças numa submissão a um mesmo
conjunto de padrões técnicos/ estruturas de escritura-leitura. É justamente da
memória física – e afetiva – que se constrói um imaginário de fragmentos e
intensidades que constituem uma espécie de terreno tanto aquém quanto além do
indivíduo. O par eu-tu que estrutura o livro não é tanto pessoal, senão
construção ficcional/discursiva. E esse material de sensações, percepções,
pequenos gestos e acontecimentos, isso que se retém enquanto ação no corpo,
isso que não se esquece, mas que se borra, que constitui uma matéria de
construção ativa do imaginário e da memória é o estofo de qualquer linguagem,
mas o que não pode ser completamente dado por nenhuma delas.